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Cristina Salgado

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Cristina Salgado

Cristina Salgado

Cristina Salgado

1957, Rio de Janeiro, Brasil

Vive e trabalha no Rio de Janeiro

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Pintora, desenhista, escultora, gravadora e professora. Em 1978, Cristina Salgado graduou-se em genética, na Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estuda desenho e pintura com Roberto  Magalhães (1940), Rubens Gerchman (1942-2008) e Astréia El-Jaick (1941), entre 1977 e 1978; e litografia com Antonio Grosso, em 1981, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV/Parque Lage), no Rio de Janeiro. Conclui mestrado em comunicação e cultura na Escola de Comunicações da UFRJ. Desde 1993, atua como professora no Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio). Também é professora assistente no curso de artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), desde 1997. Em 1991, recebe bolsa do British Council de Artista Residente no Yorkshire Sculpture Park, na Inglaterrra, onde expõe individualmente nesse mesmo ano. Em 1999 é contemplada com a bolsa RIOARTE para desenvolvimento de trabalho na área de escultura. Em 2010, a artista recebeu o Prêmio Arte Contemporânea de Ocupação dos Espaços Funarte-BH.

A figura humana em tensão com o espaço é o elemento recorrente no trabalho de Cristina Salgado. Outro tema recorrente na obra da artista é o ser humano em sua aventura errática pelo cotidiano da cidade grande. O conjunto de esculturas em ferro fundido intitulado Humanoinumano, de 1995, é desenvolvido a partir de ações como fragmentar o corpo, dividi-lo em pedaços, perfurá-lo, juntar suas partes de outras maneiras, alterar sua funcionalidade e sua simbologia. Em uma das obras, Cristina Salgado perfura profundas cavidades oculares em uma cabeça de ferro, e no fundo coloca dois olhos 'realistas', feitos com próteses de vidro. O crítico de arte Ricardo Basbaum (1961) observa que as imagens construídas por Salgado nessa série trazem referências de uma certa representação religiosa do corpo humano, por meio do uso de ex-votos de cera como matriz para as peças fundidas em ferro. Essa série de 1995 ressalta as tensões que atravessam os campos do humano e do inumano, considerando suas possibilidades de convergência, hibridizações ou incompatibilidades. Para o crítico Roberto Conduru, a instalação Menina Rezando em sua Cama (2001) conjuga duas vertentes de trabalho com forte presença na obra de Salgado: no desenho e na pintura, figuras diminutas ou agigantadas intranqüilas no seu campo de aparecimento; nas obras tridimensionais, volumes mais ou menos alusivos à corpos humanos, configurando totalidades ao mesmo tempo incisivas e sedutoras.

Participou de inúmeros salões oficiais, recebendo, entre outros, o prêmio CEMIG de pintura no XVIII Salão Nacional de Belo Horizonte. Possui trabalhos nas coleções Museu de Arte do Rio-MAR, Gilberto Chateaubriand (MAM-RJ); João Sattamini (MAC-Niteroi); Shell do Brasil, YSP e UECLAA/University of Essex, Inglaterra; British Council, Rio de Janeiro. Entre as exposições individuais: Exteriores internos, Múltiplo Espaço Arte, 2018; No interior do tempo, 2015 e Ver para olhar, 2012 Paço Imperial; Vista, Cofre, Casa França-Brasil, 2009; Grande nua na poltrona vermelha, Cavalariças, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, 2009. Entre as coletivas: Matéria bruta, MAM-RJ, 2021; A casa Carioca, MAR, 2020, Mulheres na Coleção do MAR, 2018; Nós, Caixa Cultural, RJ/Brasília, 2016; Entre trópicos 46º05 Cuba/Brasil, Caixa Cultural, RJ, 2011. Ganhou o prêmio Arte Contemporânea Situações Brasília, do Museu Nacional de Brasília, 2014; Publicou dois livros sobre sua obra, sendo um deles, Cristina Salgado, 2015, em coautoria com Gloria Ferreira.

 

 

 

 

 

  • A mãe contempla o mar Marcelo Campos

    “A mãe contempla o mar”. O título da exposição de Cristina Salgado parte de duas
    situações conceitualmente relevantes. A primeira evidencia a relação entre os
    trabalhos apresentados e a figura da mãe, presença latente no imaginário
    ocidental e discussão dileta da psicanálise. Por outro lado, o jogo sonoro entre as
    palavras “mère” e “mer”, mãe e mar em francês. Na frase, a mãe contempla o mar,
    temos uma inflexão quase infantil, como nos exercícios de alfabetização. Há,
    nestes citados caminhos, múltiplos conceitos a serem discutidos.
    O corpo se sobrepõe a qualquer outra vinculação na arte de Cristina Salgado. O
    corpo que atravessara a arte do século XX como ponto de viragem. Em seu
    entorno, discutiu-se a quebra da representação, a desumanização da arte, em
    Ortega y Gasset, e, nos meandros do surrealismo, a presença de imagens que
    tratavam dos recônditos do inconsciente. Cristina Salgado nos expõe o que ela
    denomina “figuração compulsiva”. Sim, uma presença de formas orgânicas que
    simulam peitos, bocas, sexo, mãos e pés. Porém, tal figuração é seccionada, não
    chegando a produzir por completo uma figura. Somente nesta quebra, nesta
    impossibilidade de se completar, poderíamos pensar nos motes da castração. O
    incompleto como algo que abrirá um vazio existencial, aquele que fará a criança
    buscar o peito da mãe. O mesmo que nos fará eternamente desejantes, corpos
    erotizados à procura de fetiches, objetos, próteses para saciar, por instantes,
    nossa veleidade. E o corpo, repete o som gutural, bilabial, “mamãe”, que simula
    na boca o gesto suplicante de sugar o peito, aproximando a palavra “mãe” em
    vários idiomas, como onomatopéia.
    Arthur Danto nos explica que o corpo, o problema do corpo é a crença separada,
    apartada em termos diferentes que representam a mesma coisa. Por exemplo, o
    herói Édipo acreditava que Jocasta seria uma mulher apropriada para ele e que
    sua mãe não o seria, “averiguando tarde demais que uma só mulher é o objeto de
    ambas as crenças incompatíveis”. Quando Cristina Salgado nos diz que, de certa
    forma, todas as obras apresentadas nesta exposição tratam da mãe, parece se
    tornar consciente desta relação recíproca, paradoxal e multifacetada. Ainda que
    tratemos de sapatos, unhas, bocas, toda organicidade representativa nos leva à
    mãe.
    Ao destacar o teor compulsivo da figuração, a artista também nos faz refletir
    sobre outro modo de agir diante da imagem. O compulsivo é externo e interno,
    ao mesmo tempo, expõe códigos mais do que representações objetivadas. O
    surrealista André Breton, como destaca Hal Foster, assinalava uma ruptura com
    as imagens de origem religiosa destacando o temo “maravilhoso”. Aqui se
    observa uma ruptura da ordem natural, sem justificativas religiosas, sem
    solicitar o milagroso. Ao observarmos a construção figurativa de Cristina
    Salgado, podemos refletir sobre a presença de algo que explicita tais
    contradições, ambientes oníricos, gestos convulsivos, tudo em erupção: inflandose,
    excedendo-se. Assim, as formas da artista buscam imagens-próteses, ora em
    suspensão, ora procurando lugares que as sustentem por instantes, parafusos,
    ganchos, sofás, recamiés. É necessário agir para que a imagem não se
    liquidifique.
    Portanto, temos, nas obras selecionadas para esta exposição, um intrincado
    paradoxo entre estados animados e inanimados, estados psíquicos e outros
    mundos, fetiches e próteses.
    São interiores, os ambientes que Cristina Salgado costuma repetir em suas
    pinturas, desenhos e instalações. Como nos filmes de Ingmar Bergman, a
    introspecção e a histeria das personagem são ajudadas por cenas de alcova, entre
    três paredes, já que a quarta a artista oferece ao olho do espectador. E por que,
    então, contemplar o mar, outro lugar, outra paisagem? Aqui, a presença liquida
    pode ser placentária, gestativa, lugar de alimentação e descanso. Ao mesmo
    tempo, a vontade de receber afeto, cuidado, coadunada com o sonho de
    permanecer no ninho, no colo, no quente. Mas, quem contempla o mar é a mãe,
    olhando o líquido placentário, agora, expulso, expelido, expurgado, servindo de
    dádiva ao outro, como um gozo compartilhado.
    Marcelo Campos

  • Sobre Escultura como Imagem, de Cristina Salgado Tania Rivera

    “Quanto mais uma imagem recua, mais cresce.”

    Paul Nougé

     

    Escultura como imagem é a resposta de Cristina Salgado à proposta de André Breton de que “a beleza será convulsiva ou não será”.

    Este enigmático título sustenta uma proposição conceitual que põe em oscilação nossas tradicionais concepções do que é imagem, do que é escultura. Ele denuncia o caráter convencional de tais definições e sua permanência após mais de um século de questionamento modernista. Forjada ao lado, ou melhor, imbricada ao trabalho de doutorado de Cristina na EBA-UFRJ (sob orientação de Glória Ferreira), a principal peça apresentada no Paço Imperial se constrói como superposição e dobra de longas faixas, cortadas a estilete, de carpete vermelho, branco e preto.

    Ela pousa firmemente no chão e, a partir dele, ganha altura. Dispensa pinos, em uma montagem efêmera que deve ser inteiramente desfeita para seu transporte. Ela tem uma estranha organicidade, em sua disposição de camadas reduplicadas. Encarnação barroca domada e inumanizada para melhor trazer as vísceras – aquelas que estão fora, e nos põem entre suas camadas, em seus buracos que atravessam o espaço e desmentem a superfície reduplicada.

    A imagem não deixa de ser aí afirmada, porém ela sofre uma torção fundamental. A escultura se propõe como imagem no espaço, dispensando a presença do suporte que a definiria como imagem. A imagem brota do chão, do inorgânico, do industrial. Brotaria talvez do nada, assim como um vaso se faz pelo vazio que o esculpe de dentro, no exemplo que Lacan retoma de Heidegger. Escultura como imagem desdenha o plano no qual poderia se afirmar como representação, para apresentar-se em sua força de matéria. Ela não chega a dispensar o plano, a superfície, mas o retorce e dobra sucessivamente, com determinação, até torná-lo diretamente matéria apresentada, volume no espaço. Entre as dobras do grosso tecido desenham-se fendas, abertas aqui e ali por rodelas de tubos de borracha que facilitam a passagem do olhar para o outro lado e integram a composição no espaço, incluindo-o definitivamente. Buracos-olhos?

    A imagem se desenha diretamente no espaço, como corte da superfície que, dobrada e justaposta, toma corpo e se torna fato escultórico – fazendo da matéria algo inerente à imagem. Retomando a passagem originária do invisível para o visível, ela se condensa como invisibilidade guardada em suas dobras, autocrítica de seu caráter visível. Ela negocia uma sutil economia entre visível e invisível, querendo-se imagem capaz de recuperar uma força de apresentação transcendente.

    Por sua estrutura espacial, o trabalho é arquitetônico – aliás, como fez ver a crítica Luíza Interlenghi à artista, o carpete é um elemento de arquitetura. Indo além desta constatação, Escultura como imagem quer ser arquitetura no sentido mais pleno – ela pretende ligar-se a uma construção originária do espaço, que realça seu vazio, o vazio da morada do homem, como nas catedrais góticas. A peça ganha, então, monumentalidade, dominando o espaço de exposição, transformando-o, e nele transformando nosso olhar, convulsionando nossos olhos.

    Ela também é arqui-textura, com sua densa pele de fibra de PVC e resina sintética. Essa textura está em continuidade com a exposição anterior da artista, em 2006 na galeria Anna Maria Niemeyer, no que se refere ao uso das camadas de carpete, às vezes combinados a tecidos emborrachados de cores orgânicas, formando peças em escala humana de aspecto antropomórfico. As Marias Convulsionadas e os Rostos (2006-2007) eram explicitamente antropomórficos, enquanto peças maiores evocavam mais vagamente corpos convulsionados, porém firmes em sua amarração sustentada por grossos pinos de metal que lhes permitiam a posição vertical sobre as paredes da galeria.

    De lá para cá, porém, algo aconteceu. A figura humana é desantropomorfizada, ou melhor, transformada de modo a dela restar apenas algum traçado acessório, quase apêndice. Da figura à imagemescultura, a alteração fundamental está na própria estrutura das peças. Retesadas graças a grossos pinos de metal, as peças mais antigas podiam ser pousadas no chão, mas pareciam destinadas à parede, numa espécie de colagem tridimesional na superfície da tela. Agora, a própria obra descontrói o suporte representativo e se espalha languidamente pelo chão, pelo espaço, não sem marcar, com seu peso, uma presença surgida como de debaixo do chão, de um magma abissal.

    Completando o movimento de expansão desta coisa no espaço arquitetônico, há pinos que pregam na parede da sala do Paço Imperial algumas das camadas de carpete, formando uma dobra que deixa pendidos os únicos elementos antropomórficos que aí restaram: um perfil estilizado e o contorno de um pé. Eles não são vitoriosos sobreviventes de uma catástrofe, propriamente, mas são como os ex-votos com que Cristina também trabalhou extensivamente, nos anos 1990. Fora do corpo, representando-o como dom ao outro. Ex-desejos. Fora do desejo, dentro do desejo. Volteios do desejo que se apresentam como objetos parciais, segundo a noção psicanalítica cara à artista. Partes do corpo que estão entre o eu e o outro, demarcando zonas de prazer e dor. Gozo tão presente nos drapeados e nos êxtases barrocos, e que em Escultura como imagem tornam-se lânguidos desmaios, elegantes convulsões. Refazendo o sofrido caminho de abandono da mímesis por sua própria conta e risco, Cristina quer, como o personagem Freinhofer de Balzac, acariciar o contorno da figura até liberá-la “do desenho e dos meios artificiais”, para atingir uma verdade que talvez seja uma bela leitura atual do que Breton chamava “modelo interior”. Como na tela da famosa “Obra prima desconhecida”, surge de repente, sob camadas superpostas de cores, “um pé vivo”, como um fragmento que teria escapado de uma incrível, uma lenta e progressiva destruição. Como o torso de uma vênus de mármore surgiria entre os escombros de uma cidade incendiada. A súbita descoberta deste pé faz um personagem do conto exclamar, surpreso: “Há uma mulher aí embaixo!”

    Nos jogos escultórios surrealistas da série significativamente entitulada humanoinumano (1995), a figura humana era subvertida, mas sem que jamais fosse abandonada a figuração, em peças maciças de ferro que articulavam elementos díspares como um enorme torso com esquálido membros, ou trazendo uma face de anjo onde brotavam, nos olhos, pungentes mãos infantis (Olhomão). A partir daí, a tensão entre figura e informe torna-se uma tônica na trajetória de Cristina. Por vezes ela toma um partido mais claro a favor do informe, mas para fazer dele surgir notícias da figura: de massas amorfas, porém cuidadosamente lixadas, brota um dedo, por exemplo, na série Instantâneos (2002). Aí, o informe é tornado forma, apesar de, na luta entre figuração e matéria, a primeira parecer sair vitoriosa. Já em Esculturacomoimagem, a resposta figurativa é nuanceada e se autocritica, numa vigorosa reflexão sobre a imagem que não se contenta com a oposição entre figurativo e não figurativo, mas mantém a tensão entre forma e informe, matéria e representação, desenho e cor, na busca corajosa de uma essência da imagem que iria além do visível, pois seria a presença do sujeito em seu gozo.

    Cristina se confessa iconófila e quer compartilhar sua paixão pela imagem. Com a imagem, ela quer ressucitar o poder quase mágico, místico, de evocação direta de algo que transcende a imagem. Como nos ícones religiosos, trata-se aí de forjar uma presença direta – não de Deus, mas do sujeito. Parece ter sido superado o vocabulário imagético auto-refenciado que costumava dar o tom do trabalho da artista, em geral com torções surrealistas – como em sua cama pendurada no teto no belo Menina rezando em sua cama, de 2001. Mas isso se dá em prol de uma auto-indexacão mais sutil, numa negociação entre presença e ausência que deixa entreaberta uma porta para o sujeito. Para isso, talvez seja necessário, como diz ainda Breton, trocar a terceira pessoa pela primeira. “Limite-se apenas a deixar suas memórias”, diz ele a um escritor, “dê-me os nomes reais, prove-me que você não detém o poder total sobre seus heróis”. E conclui: “só me interesso por livros deixados entreabertos, como portas”.

    Na brecha da porta, na dobra entreaberta da matéria, perfila-se a possibilidade de um profundo reconhecimento. Cristina nos entreabre algo que nos levaria, é certo, para fora de nós, trazendo notícias de um corpo. Ela busca tornar sensível o que ela chama “epiderme dos objetos”. Em contraponto à grande peça, temos na exposição no Paço Imperial, pendurada no teto, uma peça bem menor, num formato aproximado de punho terminando em inúmeras dobras: Vermelho. A epiderme da cor, num floreio pungente porém delicado. Quase uma flor. Brincando em reproduzir essa imagem escultórica, quatro fotos fazem com ela um jogo cruzado. Este jogo sutil tenta capturar algo de nós que não é propriamente nosso, mas reconstrói, surpreendente, algo profundamente íntimo. Como dizia Bellmer de sua Boneca, “uma garota artificial com múltiplas possibilidades anatômicas” seria capaz de “refisiologizar as vertigens da paixão até inventar desejos”.

     

  • Imagem-corpo posto a nu Viviane Matesco

    Imagem-corpo posto a nu
    Na obra de Cristina Salgado três elementos constantes se entrelaçam
    na mesma questão – nu, imagem e corpo. Presença preponderante nas
    recentes instalações na quais explora a imagem efetivada em corporeidade
    escultórica, o corpo é via de pensamento, de questionamento de tradições
    artísticas, mas, sobretudo de elaboração de uma linguagem singular.
    Fragmentos como pernas, dedos e peitos, bonecas pesadas e perversas,
    tapetes carnais, cadeiras e poltronas que acolhem corpos, tecidos viscerais
    interrogados por olhos atentos, pontuam que o corpo na trajetória da artista se
    desvela como processo, é posto a nu. Estamos longe do ideal clássico, o Nu
    como gênero artístico que configura a imagem não de um corpo desnudo, mas
    da própria humanidade. No entanto, é por intermédio da relação constituinte
    entre corpo e imagem que podemos compreender a complexidade de sua
    poética.
    1. Nua
    Instalação realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do
    Parque Lage em 2009, Grande Nua na poltrona vermelha constituiu-se de
    inúmeras faixas de tapete, predominantemente em tons de vermelho, que
    pendiam das estacas do teto chamando atenção tanto para a imensidão da
    escala arquitetônica como para aquela do trabalho. As camadas de tapetes
    eram conformadas em dobras em torno de tubos de borracha e praticamente
    cobriam uma poltrona vermelha. Visto mais detalhadamente, o conjunto
    apresentava em algumas extremidades recortes de corpos, pernas e pés
    espalhados pelo chão, bem como o perfil de rostos em algumas das camadas
    penduradas ao teto ou ainda entre as dobras esparramadas na poltrona. Um
    diminuto espelho se comparado com a escala da instalação refletia esses
    corpos despedaçados. Grande Nua na poltrona vermelha tem como referência
    Grande nu no sofá vermelho, obra realizada por Picasso em 1929 que por sua
    vez relaciona-se a uma série pinturas modernas nas quais a singularidade de
    corpos nus geralmente deformados ou fragmentados destitui o paradigma do
    Nu impessoal e fora do tempo. A total desconsideração pela anatomia e a
    decomposição do corpo humano marcas da estética modernista rompem com a
    2
    representação tradicional uma vez que o corpo passa a ser compreendido
    como linguagem.
    A instalação do Parque Lage não é uma referência apenas à imagem da
    pintura de Picasso, cifra em escala e compreensão contemporânea, a dinâmica
    planar cubista. Isso se torna claro se a relacionarmos às primeiros esculturas
    da artista. Nos anos 1980, após breve experiência com a pintura, suas
    primeiras peças em madeira resultaram, segundo a artista, ‘do desejo de dar
    maior concretude às imagens’, 1 de buscar nitidez em recortes pintados de
    corpos fragmentados; como se o dilaceramento da imagem fosse via para
    introdução de referências corpóreas/escultóricas. O que inicialmente era
    desenho recortado abriu-se em planos e emprestou corpo ao vazio. Trabalhos
    como Introvertida e Dois pensamentos ecoam em Miolo, matriz do pensamento
    imagem-corpo presente nos tapetes carnais de a Grande Nua e em outras
    séries. No ano anterior, em Escultura como Imagem realizada no Paço
    Imperial, a operação carnal de a Grande Nua já era evidente, embora as
    dobras efetivassem materialidade mais concentrada do que o espalhamento de
    corpos recortados nas Cavalariças. Em Escultura como Imagem, os perfis de
    pés e rostos eram suspensos na parede; mais velados, contrastavam com a
    grande massa de dobras de tapetes, dispostas como vísceras ou camadas de
    carne seccionadas por cutelo. A materialidade dos tapetes adquire significado
    por sua maleabilidade, consistência e coloração. Nas duas instalações a
    dinâmica de planos não inviabiliza a projeções de imagens, uma vez que o
    processo escultórico cria ambiguidade que desvirtua qualquer possibilidade de
    pureza formal. Cristina Salgado tem nítido interesse pelos processos
    escultóricos, no entanto, a forma, enquanto processo de construção da
    escultura, não se desvincula da imagem e inviabiliza qualquer antinomia.
    Processo escultórico e imagem situam-se como campos de forças, expressas e
    qualificadas pelo material e desafiam o dualismo tradicional de corpo/mente,
    matéria/espírito. A ambiguidade criada entre concretude processual e imagem
    1 Em entrevista a Luiz Camilo Osório em Cristina Salgado Nuas, Rio de Janeiro: Paço Imperial,
    1999.
    3
    na série dos ‘tapetes carnais’2 evidencia o corpo como esse “entre”, entidade
    indefinível, processo aqui poeticamente posto a nu.
    2. Olympia
    Nua e recebendo flores de um possível cliente, Olympia nos olha
    friamente ao expor sua nudez no famoso trabalho de Manet3. A pintura
    realizada a partir da modelo Victorine, revela um corpo singular que contraria a
    longa tradição de idealização das Vênus. Na série de carimbos de Vênus
    (2006), a subversão de Cristina Salgado se dá em outro registro; entinta
    partes do carimbo ou faz uma "máscara" para desintegrar a imagem. Dessa
    maneira, tal qual uma brincadeira de boneca, coloca a vênus de cabeça para
    baixo, as pernas na cabeça, partidas ou mesmo duplicadas. A fragmentação,
    deslocamento e junção de partes de corpos já predominava nos trabalhos da
    artista desde os anos de 1990, primeiro na série Humanoinumano (1995) e em
    Meninas (1993/95) ambas em ferro fundido e também nas séries com papel
    machê, entre elas, Instantâneos (2002) .
    A fragmentação e junção de diferentes partes do corpo evidenciam humor
    pelo inusitado como nas pernas portando bebê(Homem bebê/2002) ou nas
    pernas que sobem paredes aparafusadas em hastes de ferro, nos dedos que
    saem de cálices, nos sapatos/dedos ou ainda no Mulher boca. As operações
    se assemelham àquelas das crianças ao torcer os corpos das bonecas para
    efetivar como brincadeira um processo de linguagem. As operações/objetos de
    Cristina Salgado nos despertam ao mesmo tempo para um mundo sedutor e
    perverso. É interessante enfatizar que esses fragmentos de corpos não são
    realistas, mas fragmentos de imagens de corpos, tal como brinquedos e
    particularmente as bonecas. Os trabalhos em papel machê eram realizados
    partir de estruturas internas muito híbridas, como ripas de madeira, arames ou
    algo rígido que pudesse servir de esqueleto para modelar a massa de papel.
    O acabamento em massa acrílica e tinta pva era lixado, processo refeito
    inúmeras vezes para corrigir imperfeições e até que a superfície estivesse lisa.
    Na série Instantâneos (2002), volumes arredondados flutuam pendurados ao
    teto da galeria; deles saem fragmentos de corpos como dedos alongados,
    2 A designação tapetes carnais é realizada por mim e refere-se não só às duas instalações
    analisadas, mas também a toda uma série de trabalhos como Mulher em dobras e Dupla.
    3 Édouard Manet . Olympia, 1865, óleo s/ tela. Paris, Musée d’Orsay.
    4
    olhos que com ironia exploram imaginário infantil.4 Apelidados de “batatas”
    diferiam dos trabalhos anteriores por serem esculpidos em blocos de isopor por
    profissional de escola de samba a partir de modelo reais de batata inglesa,
    batata doce e berinjela. As superfícies recobertas em um tom rosado tal qual
    uma pele dissimulam o interior e recebem detalhes como olhos de vidro, dedos,
    seios. Com isso projetam-se no espaço como se configurassem em imagenscorpos.
    Em alguns deles como Mulher boca ou Mulher com ferro na cabeça a
    artista utilizava bonequinhas de plástico que eram cortadas e remontadas;
    também eram modeladas com papel maché e repetia-se todo processo de
    acabamento. É importante ressaltar que a relação ambígua entre imagem e
    materialidade, ou seja um espaçamento, o ‘entre’, como já dissemos, do
    processo escultórico tem um significado central na linguagem da artista.
    Na séria Humanoinumano, Salgado utilizava ex-votos como molde para
    peças realizadas em metal maciço. Apesar do material implicar rigidez de
    movimento, os trabalhos sugerem desenvoltura, pois a fragmentação e o fato
    das partes do corpo serem interligadas por parafusos insinuam a possibilidade
    de montagem e desmontagem. Na série Meninas, as figuras em escala
    diminuta contrastam com o peso do ferro, bonecas atravessadas por barra e
    olhos perfurados tornam literal a questão do atravessamento do olhar. Muitas
    vezes perversas5, as brincadeiras infantis despedaçam ou alteram a anatomia
    das bonecas. Objetos inanimados, as bonecas ganham vida por intermédio do
    nosso olhar. Imagem em miniatura de um corpo humano, a boneca nas mãos
    e sob o olhar da criança é capaz de se alterar, de se abrir cruelmente, de ser
    assassinada e, com isso, ter acesso ao estatuto de imagem bem mais eficaz;
    sua visualidade, como afirma Didi-Huberman6 torna-se ‘o despedaçamento de
    seu aspecto visível, sua desfiguração corporal: a imagem brinca com a
    imitação, pois só a utiliza para subvertê-la; abre a imitação aos poderes da
    ‘figurabilidade’: ao mesmo tempo jogo de palavras e jogo de imagens’. Imagem
    4 Ver análise de Luisa Interlenghi ‘Corpo como Espaço’ In Grande Nua na Poltrona Vermelha ,
    Rio de Janeiro: UERJ, 2009, p. 53
    5 Menina atravessada por um pau participou da exposição Infância Perversa no Museu de Arte
    Moderna em 1995.
    6 Didi-Huberman defende que as imagens da arte sabem compacificar esse jogo da criança
    ao impor sua visualidade como abertura, uma perda praticada no espaço de nossa certeza
    visível a seu respeito. E é exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar. Didi-
    Huberman O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 80 a 87.
    5
    fundida também é fendida, pois deixa transparecer a pulsação das brincadeiras
    infantis, como também aquela das preces e desejos das formas votivas. 7As
    bonecas de Hans Bellmer, a Olympia dos contos de Hoffman, bem como a
    interpretação de Freud relacionam-se com as operações suscitadas por essas
    séries de Cristina Salgado. O número 6 da revista Minotaure, de 1935, traz as
    fotografias de uma boneca que Bellmer construiu em madeira e papel machê e,
    depois, fotografou em partes.8 As versões posteriores das bonecas acentuam
    o sistema operatório de uma anatomia metamórfica: isolar uma parte,
    desmembrar, mutilar, depois desarticular e reatircular diferentemente, combinar
    montagens corporais improváveis e mesmo monstruosas. A inspiração das
    bonecas foi uma versão de ópera dos contos de Hoffmann vista por Bellmer.
    No conto de Hoffmann o temor de ser ferido no olho e a revelação de que
    Olympia é uma boneca conjugam-se para formar “o estranho’, na leitura de
    Freud”. 9 Esta interpretação não se relaciona apenas à boneca, mas ao seu
    desmembramento, que a priva de seus olhos, o que remete à experiência
    infantil do medo de castração. Como a boneca Olympia que Freud invoca para
    unir as pulsões fundamentais, morte e desejo, ao olhar, as bonecas de Bellmer
    objetivam a tensão entre possibilidades integradoras e desintegradoras e a
    natureza sadomasoquista da sexualidade.10 Hal Foster em Compulsive
    Beauty11 propõe uma reflexão do surrealismo pelo conceito do ‘estranho’, como
    objeto teórico produtivo em seus próprios conceitos críticos; aponta os vários
    7 A Forma votiva é forma de um voto e, portanto forma de um desejo. Antes de representar
    alguém, o ex-voto representa o sintoma e as preces de alguém; é lá onde sofre e lá que quer
    ser curado. Ver Didi-Huberman, G. Ex-voto image, organe, temps. Paris: Bayard, 2006. A
    relação com os ex-vostos é explorada por Ricardo Basbaum em BASBAUM, Ricardo
    HUMANA/INUMANA. Catálogo da exposição Humanoinumano, Paço Imperial do Rio de
    Janeiro, 1995. 8 Ver Hans Bellmer, Anatomie du désir. Paris: Gallimard/ Centre Pompidou, 2006.
    9 O estranho ou Inquietante estranheza, escrito por Freud em 1919, baseia-se no conto O
    homem de areia, de Hoffmann que começa na infância do protagonista com o episódio da
    morte de seu pai, transcorrida em circunstâncias inquietantes; a vida do jovem homem é
    marcada por coincidências que se opõem a seus projetos amorosos, e a estória acaba com a
    morte do herói, que se suicida num acesso de demência. O homem de areia é aquele que
    arranca os olhos das crianças que não querem dormir. A angústia horrível e desmesurada de
    perder os olhos é para Freud um substituto da castração. ver Hoffman, Ernst Theodor
    Amadeus. O Homem de areia. In: Calvino, Ítalo, org. Contos fantásticos do século XIX, São
    Paulo: Companhia das letras, 2004. Freud, S. L’inquiétante étrangeté In Claude This, (org.). De
    l’art et de la psychanalyse, Freud et Lacan. Paris : École National Supérieure des Beaux-Arts,
    1999, p.156.
    10 Krauss. R. Corpus delict. In O Fotográfico. Barcelona: Editorial Gili, 2002. p.194-197.
    11 Foster, Hal. Compulsive Beauty. Massachusetts: The Mit Press, 2000.
    6
    aspectos do estranho nos dois manifestos do surrealismo: a confusão entre
    animado e inanimado, exemplificada em figuras de ceras, bonecas, manequins
    e autômatos, todas imagens cruciais no repertório surrealista; a usurpação do
    referente pelo signo ou da realidade física pela física realidade. Aqui o surreal
    seria vivenciado num eclipse do referencial pelo simbólico, ou seja, pela
    submissão de sujeito por um sintoma, que teria como efeito aquele do
    estranho.
    Bellmer ilustrou a História do olho de Bataille em 1947; criou a boneca
    Jointure à boule na qual coloca um olho-vulva entre ‘pernas/ braços’. 12 As
    bonecas de Bellmer, mutiladas ou monstruosas, conjugam impulsos sádicos e
    amorosos, como uma rede de emoções e ansiedades em circulação.13 A
    relação das bonecas de Bellmer com os trabalhos de
    Cristina Salgado não se limita à transposição dos
    limites anatômicos, mas à operação que invoca
    analogias em imagens virtuais, pois ambos relacionam
    não apenas a imagem do corpo, mas o corpo da
    imagem. A labilidade da imagem do corpo ultrapassa a
    anatomia, pois lida não só com as imagens
    fragmentadas das bonecas como também com as
    pulsões que as originaram e aquelas desencadeadas quando as olhamos.
    Olympia Sentada14 realizada pela artista em 2012, nada tem da
    anatomia humana das séries anteriores, embora incorpore suas questões
    mediante outra lógica. O trabalho é composto por uma caixa de madeira com
    frente e verso pousada em uma cadeira; pela vista frontal ela é totalmente
    preenchida com tecido róseo emborrachado e franzido por parafusos. Na parte
    traseira, a superfície de madeira exibe uma abertura circular que deixa
    entrever varias camadas de tapetes em tons de vermelho; elas são enroladas
    de maneira a conformar uma cavidade que implica o desejo de adentrar e
    investigar a interioridade. Entidade aparafusada, apresenta-se como enigma
    12 Ver Hal Foster. ‘Violation and veiling in surrealist photography: woman as fetish, as shattered
    object, as phallus’ In Surrealism desire unbound. London: Tate, 2001, p. 203-237.
    13 Ver a análise de Rosalind Krauss em Corpus delicti. In O fotográfico. Op. cit., p.196.
    14 Segundo a artista o nome Olympia foi sugerido pela crítica Marisa Flórido ao relacionar a
    contenção do encarnado pelo limite da caixa à contenção de Olympia de Manet, figura
    impassível cuja sensualidade seria traída pelo eriçado do gato.
    7
    pela duplicidade ambígua da visão; perfurada supõe olhar vazado que se deixa
    olhar. Fendida e convulsa, Olympia Sentada é contida pelos limites da caixa o
    que supõe o Encarnado15 como questão: significa que é pela mediação entre
    imagem e matéria que concebemos essa vida. Apesar da complexidade do
    debate sobre a Encarnação, é importante destacar aqui como o pensamento de
    Bataille interfere nessa na interdição bíblica da semelhança divina, pois suas
    concepções, depois desenvolvidas por Didi-Huberman nos ajudam a
    compreender as questões investigadas por Cristina Salgado: como a relação
    corpo-imagem constitui-se por meio de olhar e como essa labilidade desloca
    sentidos fixos e determinados.
    Bataille fala de um método pensado em termos de contágio
    desarranjador. Como um dilaceramento prolongado, como uma rasgadura que
    passaria através de contato, de sujeito a sujeito e de experiência a experiência,
    fundindo as semelhanças inconvenientes e materiais. Na revista Documents,16
    exprime sua empresa transgressiva ao reivindicar uma semelhança informe
    que desfazia e decompunha toda uma construção mítica da semelhança.
    Inverte a hierarquia do modelo e da cópia, embaralha todas as relações do alto
    e do baixo e com isso despedaça o tabu do tocar sob o qual todo mito cristão
    da semelhança parecia se construir. Quando se diz que duas coisas ou duas
    pessoas se assemelham, supomos normalmente que elas não se tocam e
    permanecem num distanciamento material. O retrato assemelha-se ao
    retratado e a cópia a seu modelo, justamente porque o retrato não tem a
    substância do retratado, ou seja, a conformidade ideal exige qualquer coisa
    15 O pensamento sobre a Encarnação é elemento constituinte do pensamento sobre corpo e
    imagem. Ao encarnar, Deus se oferece aos humanos sob uma forma que participa ao mesmo
    tempo da transcendência espiritual e do corpo humano. Foi pelo modo como a doutrina cristã
    interpretou a interdição judaica de representação de Deus que a concepção de corpo e pôde se
    constituir em categoria. O criacionismo monoteísta impõe uma relação de semelhança entre o
    homem e Deus assimétrica. A semelhança cristã se exprime hierarquicamente, pois fixa uma
    cópia que se assemelha a seu modelo e que o inverso nunca deve ser dito, pois
    desclassificaria a relação de semelhança. A possibilidade dessa relação é introduzida pela
    doutrina da Encarnação, pois permite compreender que apesar do caráter irrepresentável de
    Deus, uma circulação possa existir entre ele e o homem. Graças à imitação de Cristo o homem
    aproxima-se de Deus, o que significa uma mediação entre o corpo humano e seu modelo. Em
    função desses elementos o pensamento do corpo é inseparável do pensamento da imagem na
    Europa. A esse respeito ver Schaeffer, J.M. O Corpo é imagem Arte& Ensaio. Rio de Janeiro,
    EBA/UFRJ, 2008 e Matesco, Viviane. Corpo, Imagem e Representação. Rio de Janeiro: Zahar,
    2009.
    16 Bataille, Georges. Documents.Paris: Mercure de France/Gallimard, 1968.
    8
    com a recíproca de uma não comaterialidade: a matéria não deve tocar a
    forma. Bataille propõe uma iconografia cujo caráter é desarranjado e
    deslocado, pois ao invés de tratar as imagens como termos substancializados e
    fixados na sua significação intrínseca, estabelece um regime que tende a
    mobilidade e a imagem é sentida como indefinidamente lábil. A transgressão
    não é uma recusa, afirma Didi-Huberman, 17 mas uma abertura, pois Bataille
    não considerava o corpo humano como uma forma substancial. Dilacerar tal
    substancialismo significa privilegiar as relações mais que os termos. O corpo
    torna-se lugar de transgressão realizada através de deslizamentos nos quais
    seus fragmentos enredam-se numa série de associações que deslocam seu
    sentido familiar. Assim, a parte é afirmada na sua obscena fragmentação
    apagando sua integração na totalidade e impossibilitando a construção de uma
    imagem de corpo completa. É essa fragmentação e deslocamento que Bataille
    chamaria mais tarde de erotismo.
    3 Convulsionada
    Nas instalações Vista (2010) e Ver para olhar (2013), ambas
    relacionadas à Olympia Sentada, a pesquisa da artista em torno da imagem
    distancia-se do visível enquanto dado descritível para uma conformação
    transitiva a partir da implicação do olhar. 18 Em Vista realizada no cofre da
    Casa França-Brasil, a superfície do exíguo espaço é recoberta com tecido
    emborrachado; pregueada por parafusos que perfuram e pressionam suas
    dobras produz corporeidade semelhante àquela da pele. Um olho encravado
    entre as dobras pontua o ambiente: um cofre, que supostamente esconde e
    guarda segredos, é aberto e nos olha mostrando suas entranhas. Tal como
    Olympia Sentada, apresenta um olhar olhado como enigma; ao menos
    simbolicamente os olhos são relacionados à função de orifício por intermédio
    do qual o mundo nos penetra. Aqui se privilegia o processo, como uma
    17 Sigo aqui Didi-Huberman, G. La ressemblance informe ou lê gai savoir selon Georges
    Bataille. Paris: Macula, 1995.
    18 A partir da tese de doutoramento da artista Escultura como imagem (2008), a pesquisa sobre
    a imagem, segundo ela, partia da certeza de que se tratava de outra coisa que não a imagem
    material e visível “ era do olhar, e não da visão, que eu, sem saber, queria me aproximar.
    Salgado, C. A Imagem Incógnita (comunicação) Anais do 20o Encontro Nacional da Anpap. Rio
    de Janeiro: UERJ, 2012, p. 3382-3396.
    9
    configuração uma vez que a pele é uma contingência, pois nela, por ela, com
    ela toca-se o mundo e o meu corpo, ela define uma borda comum19.
    Ver para olhar 20 trabalho realizado no Paço Imperial é proposto,
    segundo a artista, “como um dispositivo que coloca o olhar, ele próprio como
    objeto a ser contemplado em suas múltiplas dinâmicas: o olhar potencializado e
    simultaneamente o olhar mediado, na exposição de sua construção íntima a
    partir do desejo”. 21 A instalação disposta em ambiência em penumbra e
    esfumaçada tem o sentido desvendado mediante a experiência de percurso
    espacialmente orientado. Composto de três segmentos apresenta duas
    extremidades com função distinta, uma no início que projeta e outra no final
    que recebe, mesmo que esses termos sejam invertidos posteriormente. De um
    lado, uma poltrona recoberta com drapeado em tom róseo ladeia um refletor
    que produz um jato de luz; no outro extremo, uma poltrona rosa acolhe a
    projeção. Entre as duas, uma série de trinta caixas de madeira pousadas em
    mobiliário diversificado como cadeiras e poltronas é atravessada por uma barra
    de ferro e, paralelamente, é perpassada pelo forte feixe de luz proveniente do
    projetor. As caixas côncavas e em diferentes dimensões revelam ambiguidade
    pelo contraste entre o formato geométrico e a relação com as cadeiras: como
    estivessem sentadas. 22 Embora variado e usado, o mobiliário não manifesta
    nenhum outro significado alheio à sua função: acolher corpos. A relação entre
    as caixas e o feixe de luz institui uma potência, significa tanto projeção que
    penetra esses diversos corpos quanto fonte que captura e significa esse
    atravessamento. A poltrona em tom de rosa posicionada no lado oposto do
    percurso atua como anteparo para a barra de ferro e para o feixe de luz agora
    revelado em imagem. Diminuta, porém potente, ela focaliza uma mulher de
    mãos dadas com uma menina, a sugerir tanto pela diferença de grandeza,
    quanto pelo gesto, a relação simbólica entre mãe e filha, analogia central para
    a rede de significados engendrada pelo trabalho. A proximidade entre o final
    19 Serres, Michel. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, ,p. 16.
    20 Sigo parte da análise desenvolvida em artigo da revista Poiésis; Matesco, V. ‘Olhar para ser’
    In Poiésis, Niterói: UFF, 2013, n. 21-22 p 13 a 24.
    21 Salgado, Cristina. Olhando para ver para Olhar. (comunicação) Anais do 22o Encontro
    Nacional da Anpap. Belém: UFPA, 2013, p. 1374-1377.
    22 Como em Olympia sentada, a recorrência de cadeiras e poltronas na obra da artista não é
    mero acaso, mas fato em si significante.
    10
    da barra de ferro em ponta e área da imagem atribui direcionamento espacial
    ao feixe de luz e funciona como se o projetor a olhasse em retrospecto
    buscando atualizá-la. O atravessamento sugere mobilidade proveniente da
    extensão espaço-temporal entre projeção e imagem: trata-se não de uma
    cronologia, mas de cena que se reatualiza. Também a perfuração da barra de
    ferro confere caráter intenso ao cruzamento, qualificado simultaneamente como
    potencia e resistência. A imagem é aberta por intermédio desse
    atravessamento, operação que entrelaça e, ao mesmo tempo, dissolve
    passado, presente e futuro pela ativação de uma latência. A percepção do
    trabalho implica, portanto, olhar ambivalente que borra as fronteiras entre real,
    fictício e imaginário e, por isso, põe em colapso noções tradicionais de
    princípio e fim, bem como de espaço interno e externo.
    Ver para olhar funda-se como aparelho simbólico cujo funcionamento
    revela laço indissociável entre imagem e corpo. Dois elementos da instalação
    impõem corporeidade, mas o fazem por lógica oposta; as caixas sentadas
    perpassadas por luz e a poltrona recoberta com drapeado. Ambas pressupõem
    a imagem do corpo humano. No entanto, artista estabelece relação dúbia entre
    imagem e materialidade, ambiguidade implicada aí como processo significante.
    A relação entre processo escultórico, a materialidade e a imagem em Vista,
    Olympia Sentada e Ver para Olhar se impõe como processo no qual um
    depende do outro: há um contágio desarranjador. A sequência de caixas
    pousadas no mobiliário sugere a imagem de corpos sentados e
    consequentemente uma analogia antropomórfica. Já na poltrona drapeada, a
    imagem atua em duplicidade: do corpo que senta e de seu invólucro - a pele
    encarnada. Tal como em Vista, é por intermédio do contágio e desarranjo da
    materialidade que se incorpora a imagem de pele, a cobertura do corpo.
    Podemos identificar aí três termos: o material em tecido drapeado, o processo
    escultórico de costurar e a semelhança - a imagem de pele. A artista institui
    conexão entre os três em que um qualifica o outro; a maleabilidade do tecido
    tanto evoca o processo de costura e sua correlata gestualidade, como a
    consistência da pele. A matéria é tratada como substância condutora de
    sentido e o processo de construção da escultura não se desvincula da imagem
    o que inviabiliza qualquer antinomia. Processo construtivo e imagem situam11
    se como campos complementares qualificados no trânsito do material, e
    desafiam, portanto, dualidades clássicas. A poltrona recoberta com o drapeado
    róseo invoca a pele como limite, mas também clama por vísceras, expressão
    convulsionada. Esse ser convulso dimensão sensível que corporifica o
    processo escultórico impõe o ‘Encarnado’ como questão
    Ao invés de uma pura imagem-representação, o trabalho de Salgado
    introduz um processo. A poltrona encarna o sentido do trabalho, pois ao
    mesmo tempo em que confere vida, é tomada: a imagem ganha vida como se
    figurasse o olhar que a constitui. A partir de Didi-Huberman compreendemos
    como a relação corpo e imagem é indissociável uma vez que a imagem
    enquanto ‘figuralibilidade’ se impõe como uma abertura, uma perda praticada
    no espaço de nossa certeza visível a seu respeito.

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