Cristina Salgado
Cristina Salgado
Cristina Salgado
1957, Rio de Janeiro, Brasil
Vive e trabalha no Rio de Janeiro
Pintora, desenhista, escultora, gravadora e professora. Em 1978, Cristina Salgado graduou-se em genética, na Faculdade de Ciências Biológicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estuda desenho e pintura com Roberto Magalhães (1940), Rubens Gerchman (1942-2008) e Astréia El-Jaick (1941), entre 1977 e 1978; e litografia com Antonio Grosso, em 1981, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV/Parque Lage), no Rio de Janeiro. Conclui mestrado em comunicação e cultura na Escola de Comunicações da UFRJ. Desde 1993, atua como professora no Departamento de Artes e Design da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio). Também é professora assistente no curso de artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), desde 1997. Em 1991, recebe bolsa do British Council de Artista Residente no Yorkshire Sculpture Park, na Inglaterrra, onde expõe individualmente nesse mesmo ano. Em 1999 é contemplada com a bolsa RIOARTE para desenvolvimento de trabalho na área de escultura. Em 2010, a artista recebeu o Prêmio Arte Contemporânea de Ocupação dos Espaços Funarte-BH.
A figura humana em tensão com o espaço é o elemento recorrente no trabalho de Cristina Salgado. Outro tema recorrente na obra da artista é o ser humano em sua aventura errática pelo cotidiano da cidade grande. O conjunto de esculturas em ferro fundido intitulado Humanoinumano, de 1995, é desenvolvido a partir de ações como fragmentar o corpo, dividi-lo em pedaços, perfurá-lo, juntar suas partes de outras maneiras, alterar sua funcionalidade e sua simbologia. Em uma das obras, Cristina Salgado perfura profundas cavidades oculares em uma cabeça de ferro, e no fundo coloca dois olhos 'realistas', feitos com próteses de vidro. O crítico de arte Ricardo Basbaum (1961) observa que as imagens construídas por Salgado nessa série trazem referências de uma certa representação religiosa do corpo humano, por meio do uso de ex-votos de cera como matriz para as peças fundidas em ferro. Essa série de 1995 ressalta as tensões que atravessam os campos do humano e do inumano, considerando suas possibilidades de convergência, hibridizações ou incompatibilidades. Para o crítico Roberto Conduru, a instalação Menina Rezando em sua Cama (2001) conjuga duas vertentes de trabalho com forte presença na obra de Salgado: no desenho e na pintura, figuras diminutas ou agigantadas intranqüilas no seu campo de aparecimento; nas obras tridimensionais, volumes mais ou menos alusivos à corpos humanos, configurando totalidades ao mesmo tempo incisivas e sedutoras.
Participou de inúmeros salões oficiais, recebendo, entre outros, o prêmio CEMIG de pintura no XVIII Salão Nacional de Belo Horizonte. Possui trabalhos nas coleções Museu de Arte do Rio-MAR, Gilberto Chateaubriand (MAM-RJ); João Sattamini (MAC-Niteroi); Shell do Brasil, YSP e UECLAA/University of Essex, Inglaterra; British Council, Rio de Janeiro. Entre as exposições individuais: Exteriores internos, Múltiplo Espaço Arte, 2018; No interior do tempo, 2015 e Ver para olhar, 2012 Paço Imperial; Vista, Cofre, Casa França-Brasil, 2009; Grande nua na poltrona vermelha, Cavalariças, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, 2009. Entre as coletivas: Matéria bruta, MAM-RJ, 2021; A casa Carioca, MAR, 2020, Mulheres na Coleção do MAR, 2018; Nós, Caixa Cultural, RJ/Brasília, 2016; Entre trópicos 46º05 Cuba/Brasil, Caixa Cultural, RJ, 2011. Ganhou o prêmio Arte Contemporânea Situações Brasília, do Museu Nacional de Brasília, 2014; Publicou dois livros sobre sua obra, sendo um deles, Cristina Salgado, 2015, em coautoria com Gloria Ferreira.
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10.Mai.2023 - 05.Ago.2023
Anita Schwartz XXV
A exposição Anita Schwartz XXV é uma celebração aos 25 anos de aniversário da galeria, onde essa história é contada a partir dos artistas e suas obras. A pesquisa curatorial percorreu o arquivo da galeria, fundada em 1998, em busca de imagens e textos críticos das exposições, feiras e publicações, com o intuito de construir uma linguagem possível sobre as experiências artísticas que moldaram o seu programa.
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20.Abr.2022 - 04.Jun.2022
Mulher ao olhar
Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta “A Mulher ao olhar”, exposição individual de Cristina Salgado no dia 20 de abril de 2022, 16h às 19h. A exposição reúne uma seleção de obras inéditas em diálogo com trabalhos emblemáticos dos últimos 20 anos de produção da artista.
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24.Nov.2021 - 22.Jan.2022
Visitas ao Acervo 3
O programa de exposições Visitas ao acervo, que fornece um panorama de obras do acervo da galeria através de uma seleção curada, chega à sua terceira edição com obras de Alexandre Vogler, Cadu, Cristina Salgado, Eduardo Climachauska, Dudu Garcia, Felipe Barsuglia, Livia Flores, Maritza Caneca, Nuno Ramos, Paulo Vivacqua, Renan Cepeda e Rodrigo Braga.
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24.Fev.2021 - 15.Mai.2021
ARAGEM
Em 2019, o Projeto Verão foi criado para idealizar novas ativações no espaço físico junto com os artistas. Um trabalho coletivo no intuito de reforçar o que a arte nos proporciona - reflexões, sensações e propósito. A primeira edição foi um acontecimento importante na história da galeria. A segunda edição tem o objetivo de trazer novos estímulos para todos, incentivando artistas, público e novos interessados a desenvolver uma relação mais afetuosa com a arte. O Projeto Verão é sempre um momento de experimentos na GAS, e agora, mais do que nunca, é essencial para trazer frescor e vitalidade à cena artística carioca.
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A mãe contempla o mar
“A mãe contempla o mar”. O título da exposição de Cristina Salgado parte de duas
situações conceitualmente relevantes. A primeira evidencia a relação entre os
trabalhos apresentados e a figura da mãe, presença latente no imaginário
ocidental e discussão dileta da psicanálise. Por outro lado, o jogo sonoro entre as
palavras “mère” e “mer”, mãe e mar em francês. Na frase, a mãe contempla o mar,
temos uma inflexão quase infantil, como nos exercícios de alfabetização. Há,
nestes citados caminhos, múltiplos conceitos a serem discutidos.
O corpo se sobrepõe a qualquer outra vinculação na arte de Cristina Salgado. O
corpo que atravessara a arte do século XX como ponto de viragem. Em seu
entorno, discutiu-se a quebra da representação, a desumanização da arte, em
Ortega y Gasset, e, nos meandros do surrealismo, a presença de imagens que
tratavam dos recônditos do inconsciente. Cristina Salgado nos expõe o que ela
denomina “figuração compulsiva”. Sim, uma presença de formas orgânicas que
simulam peitos, bocas, sexo, mãos e pés. Porém, tal figuração é seccionada, não
chegando a produzir por completo uma figura. Somente nesta quebra, nesta
impossibilidade de se completar, poderíamos pensar nos motes da castração. O
incompleto como algo que abrirá um vazio existencial, aquele que fará a criança
buscar o peito da mãe. O mesmo que nos fará eternamente desejantes, corpos
erotizados à procura de fetiches, objetos, próteses para saciar, por instantes,
nossa veleidade. E o corpo, repete o som gutural, bilabial, “mamãe”, que simula
na boca o gesto suplicante de sugar o peito, aproximando a palavra “mãe” em
vários idiomas, como onomatopéia.
Arthur Danto nos explica que o corpo, o problema do corpo é a crença separada,
apartada em termos diferentes que representam a mesma coisa. Por exemplo, o
herói Édipo acreditava que Jocasta seria uma mulher apropriada para ele e que
sua mãe não o seria, “averiguando tarde demais que uma só mulher é o objeto de
ambas as crenças incompatíveis”. Quando Cristina Salgado nos diz que, de certa
forma, todas as obras apresentadas nesta exposição tratam da mãe, parece se
tornar consciente desta relação recíproca, paradoxal e multifacetada. Ainda que
tratemos de sapatos, unhas, bocas, toda organicidade representativa nos leva à
mãe.
Ao destacar o teor compulsivo da figuração, a artista também nos faz refletir
sobre outro modo de agir diante da imagem. O compulsivo é externo e interno,
ao mesmo tempo, expõe códigos mais do que representações objetivadas. O
surrealista André Breton, como destaca Hal Foster, assinalava uma ruptura com
as imagens de origem religiosa destacando o temo “maravilhoso”. Aqui se
observa uma ruptura da ordem natural, sem justificativas religiosas, sem
solicitar o milagroso. Ao observarmos a construção figurativa de Cristina
Salgado, podemos refletir sobre a presença de algo que explicita tais
contradições, ambientes oníricos, gestos convulsivos, tudo em erupção: inflandose,
excedendo-se. Assim, as formas da artista buscam imagens-próteses, ora em
suspensão, ora procurando lugares que as sustentem por instantes, parafusos,
ganchos, sofás, recamiés. É necessário agir para que a imagem não se
liquidifique.
Portanto, temos, nas obras selecionadas para esta exposição, um intrincado
paradoxo entre estados animados e inanimados, estados psíquicos e outros
mundos, fetiches e próteses.
São interiores, os ambientes que Cristina Salgado costuma repetir em suas
pinturas, desenhos e instalações. Como nos filmes de Ingmar Bergman, a
introspecção e a histeria das personagem são ajudadas por cenas de alcova, entre
três paredes, já que a quarta a artista oferece ao olho do espectador. E por que,
então, contemplar o mar, outro lugar, outra paisagem? Aqui, a presença liquida
pode ser placentária, gestativa, lugar de alimentação e descanso. Ao mesmo
tempo, a vontade de receber afeto, cuidado, coadunada com o sonho de
permanecer no ninho, no colo, no quente. Mas, quem contempla o mar é a mãe,
olhando o líquido placentário, agora, expulso, expelido, expurgado, servindo de
dádiva ao outro, como um gozo compartilhado.
Marcelo Campos -
Sobre Escultura como Imagem, de Cristina Salgado
“Quanto mais uma imagem recua, mais cresce.”
Paul Nougé
Escultura como imagem é a resposta de Cristina Salgado à proposta de André Breton de que “a beleza será convulsiva ou não será”.
Este enigmático título sustenta uma proposição conceitual que põe em oscilação nossas tradicionais concepções do que é imagem, do que é escultura. Ele denuncia o caráter convencional de tais definições e sua permanência após mais de um século de questionamento modernista. Forjada ao lado, ou melhor, imbricada ao trabalho de doutorado de Cristina na EBA-UFRJ (sob orientação de Glória Ferreira), a principal peça apresentada no Paço Imperial se constrói como superposição e dobra de longas faixas, cortadas a estilete, de carpete vermelho, branco e preto.
Ela pousa firmemente no chão e, a partir dele, ganha altura. Dispensa pinos, em uma montagem efêmera que deve ser inteiramente desfeita para seu transporte. Ela tem uma estranha organicidade, em sua disposição de camadas reduplicadas. Encarnação barroca domada e inumanizada para melhor trazer as vísceras – aquelas que estão fora, e nos põem entre suas camadas, em seus buracos que atravessam o espaço e desmentem a superfície reduplicada.
A imagem não deixa de ser aí afirmada, porém ela sofre uma torção fundamental. A escultura se propõe como imagem no espaço, dispensando a presença do suporte que a definiria como imagem. A imagem brota do chão, do inorgânico, do industrial. Brotaria talvez do nada, assim como um vaso se faz pelo vazio que o esculpe de dentro, no exemplo que Lacan retoma de Heidegger. Escultura como imagem desdenha o plano no qual poderia se afirmar como representação, para apresentar-se em sua força de matéria. Ela não chega a dispensar o plano, a superfície, mas o retorce e dobra sucessivamente, com determinação, até torná-lo diretamente matéria apresentada, volume no espaço. Entre as dobras do grosso tecido desenham-se fendas, abertas aqui e ali por rodelas de tubos de borracha que facilitam a passagem do olhar para o outro lado e integram a composição no espaço, incluindo-o definitivamente. Buracos-olhos?
A imagem se desenha diretamente no espaço, como corte da superfície que, dobrada e justaposta, toma corpo e se torna fato escultórico – fazendo da matéria algo inerente à imagem. Retomando a passagem originária do invisível para o visível, ela se condensa como invisibilidade guardada em suas dobras, autocrítica de seu caráter visível. Ela negocia uma sutil economia entre visível e invisível, querendo-se imagem capaz de recuperar uma força de apresentação transcendente.
Por sua estrutura espacial, o trabalho é arquitetônico – aliás, como fez ver a crítica Luíza Interlenghi à artista, o carpete é um elemento de arquitetura. Indo além desta constatação, Escultura como imagem quer ser arquitetura no sentido mais pleno – ela pretende ligar-se a uma construção originária do espaço, que realça seu vazio, o vazio da morada do homem, como nas catedrais góticas. A peça ganha, então, monumentalidade, dominando o espaço de exposição, transformando-o, e nele transformando nosso olhar, convulsionando nossos olhos.
Ela também é arqui-textura, com sua densa pele de fibra de PVC e resina sintética. Essa textura está em continuidade com a exposição anterior da artista, em 2006 na galeria Anna Maria Niemeyer, no que se refere ao uso das camadas de carpete, às vezes combinados a tecidos emborrachados de cores orgânicas, formando peças em escala humana de aspecto antropomórfico. As Marias Convulsionadas e os Rostos (2006-2007) eram explicitamente antropomórficos, enquanto peças maiores evocavam mais vagamente corpos convulsionados, porém firmes em sua amarração sustentada por grossos pinos de metal que lhes permitiam a posição vertical sobre as paredes da galeria.
De lá para cá, porém, algo aconteceu. A figura humana é desantropomorfizada, ou melhor, transformada de modo a dela restar apenas algum traçado acessório, quase apêndice. Da figura à imagemescultura, a alteração fundamental está na própria estrutura das peças. Retesadas graças a grossos pinos de metal, as peças mais antigas podiam ser pousadas no chão, mas pareciam destinadas à parede, numa espécie de colagem tridimesional na superfície da tela. Agora, a própria obra descontrói o suporte representativo e se espalha languidamente pelo chão, pelo espaço, não sem marcar, com seu peso, uma presença surgida como de debaixo do chão, de um magma abissal.
Completando o movimento de expansão desta coisa no espaço arquitetônico, há pinos que pregam na parede da sala do Paço Imperial algumas das camadas de carpete, formando uma dobra que deixa pendidos os únicos elementos antropomórficos que aí restaram: um perfil estilizado e o contorno de um pé. Eles não são vitoriosos sobreviventes de uma catástrofe, propriamente, mas são como os ex-votos com que Cristina também trabalhou extensivamente, nos anos 1990. Fora do corpo, representando-o como dom ao outro. Ex-desejos. Fora do desejo, dentro do desejo. Volteios do desejo que se apresentam como objetos parciais, segundo a noção psicanalítica cara à artista. Partes do corpo que estão entre o eu e o outro, demarcando zonas de prazer e dor. Gozo tão presente nos drapeados e nos êxtases barrocos, e que em Escultura como imagem tornam-se lânguidos desmaios, elegantes convulsões. Refazendo o sofrido caminho de abandono da mímesis por sua própria conta e risco, Cristina quer, como o personagem Freinhofer de Balzac, acariciar o contorno da figura até liberá-la “do desenho e dos meios artificiais”, para atingir uma verdade que talvez seja uma bela leitura atual do que Breton chamava “modelo interior”. Como na tela da famosa “Obra prima desconhecida”, surge de repente, sob camadas superpostas de cores, “um pé vivo”, como um fragmento que teria escapado de uma incrível, uma lenta e progressiva destruição. Como o torso de uma vênus de mármore surgiria entre os escombros de uma cidade incendiada. A súbita descoberta deste pé faz um personagem do conto exclamar, surpreso: “Há uma mulher aí embaixo!”
Nos jogos escultórios surrealistas da série significativamente entitulada humanoinumano (1995), a figura humana era subvertida, mas sem que jamais fosse abandonada a figuração, em peças maciças de ferro que articulavam elementos díspares como um enorme torso com esquálido membros, ou trazendo uma face de anjo onde brotavam, nos olhos, pungentes mãos infantis (Olhomão). A partir daí, a tensão entre figura e informe torna-se uma tônica na trajetória de Cristina. Por vezes ela toma um partido mais claro a favor do informe, mas para fazer dele surgir notícias da figura: de massas amorfas, porém cuidadosamente lixadas, brota um dedo, por exemplo, na série Instantâneos (2002). Aí, o informe é tornado forma, apesar de, na luta entre figuração e matéria, a primeira parecer sair vitoriosa. Já em Esculturacomoimagem, a resposta figurativa é nuanceada e se autocritica, numa vigorosa reflexão sobre a imagem que não se contenta com a oposição entre figurativo e não figurativo, mas mantém a tensão entre forma e informe, matéria e representação, desenho e cor, na busca corajosa de uma essência da imagem que iria além do visível, pois seria a presença do sujeito em seu gozo.
Cristina se confessa iconófila e quer compartilhar sua paixão pela imagem. Com a imagem, ela quer ressucitar o poder quase mágico, místico, de evocação direta de algo que transcende a imagem. Como nos ícones religiosos, trata-se aí de forjar uma presença direta – não de Deus, mas do sujeito. Parece ter sido superado o vocabulário imagético auto-refenciado que costumava dar o tom do trabalho da artista, em geral com torções surrealistas – como em sua cama pendurada no teto no belo Menina rezando em sua cama, de 2001. Mas isso se dá em prol de uma auto-indexacão mais sutil, numa negociação entre presença e ausência que deixa entreaberta uma porta para o sujeito. Para isso, talvez seja necessário, como diz ainda Breton, trocar a terceira pessoa pela primeira. “Limite-se apenas a deixar suas memórias”, diz ele a um escritor, “dê-me os nomes reais, prove-me que você não detém o poder total sobre seus heróis”. E conclui: “só me interesso por livros deixados entreabertos, como portas”.
Na brecha da porta, na dobra entreaberta da matéria, perfila-se a possibilidade de um profundo reconhecimento. Cristina nos entreabre algo que nos levaria, é certo, para fora de nós, trazendo notícias de um corpo. Ela busca tornar sensível o que ela chama “epiderme dos objetos”. Em contraponto à grande peça, temos na exposição no Paço Imperial, pendurada no teto, uma peça bem menor, num formato aproximado de punho terminando em inúmeras dobras: Vermelho. A epiderme da cor, num floreio pungente porém delicado. Quase uma flor. Brincando em reproduzir essa imagem escultórica, quatro fotos fazem com ela um jogo cruzado. Este jogo sutil tenta capturar algo de nós que não é propriamente nosso, mas reconstrói, surpreendente, algo profundamente íntimo. Como dizia Bellmer de sua Boneca, “uma garota artificial com múltiplas possibilidades anatômicas” seria capaz de “refisiologizar as vertigens da paixão até inventar desejos”.
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Imagem-corpo posto a nu
Imagem-corpo posto a nu
Na obra de Cristina Salgado três elementos constantes se entrelaçam
na mesma questão – nu, imagem e corpo. Presença preponderante nas
recentes instalações na quais explora a imagem efetivada em corporeidade
escultórica, o corpo é via de pensamento, de questionamento de tradições
artísticas, mas, sobretudo de elaboração de uma linguagem singular.
Fragmentos como pernas, dedos e peitos, bonecas pesadas e perversas,
tapetes carnais, cadeiras e poltronas que acolhem corpos, tecidos viscerais
interrogados por olhos atentos, pontuam que o corpo na trajetória da artista se
desvela como processo, é posto a nu. Estamos longe do ideal clássico, o Nu
como gênero artístico que configura a imagem não de um corpo desnudo, mas
da própria humanidade. No entanto, é por intermédio da relação constituinte
entre corpo e imagem que podemos compreender a complexidade de sua
poética.
1. Nua
Instalação realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do
Parque Lage em 2009, Grande Nua na poltrona vermelha constituiu-se de
inúmeras faixas de tapete, predominantemente em tons de vermelho, que
pendiam das estacas do teto chamando atenção tanto para a imensidão da
escala arquitetônica como para aquela do trabalho. As camadas de tapetes
eram conformadas em dobras em torno de tubos de borracha e praticamente
cobriam uma poltrona vermelha. Visto mais detalhadamente, o conjunto
apresentava em algumas extremidades recortes de corpos, pernas e pés
espalhados pelo chão, bem como o perfil de rostos em algumas das camadas
penduradas ao teto ou ainda entre as dobras esparramadas na poltrona. Um
diminuto espelho se comparado com a escala da instalação refletia esses
corpos despedaçados. Grande Nua na poltrona vermelha tem como referência
Grande nu no sofá vermelho, obra realizada por Picasso em 1929 que por sua
vez relaciona-se a uma série pinturas modernas nas quais a singularidade de
corpos nus geralmente deformados ou fragmentados destitui o paradigma do
Nu impessoal e fora do tempo. A total desconsideração pela anatomia e a
decomposição do corpo humano marcas da estética modernista rompem com a
2
representação tradicional uma vez que o corpo passa a ser compreendido
como linguagem.
A instalação do Parque Lage não é uma referência apenas à imagem da
pintura de Picasso, cifra em escala e compreensão contemporânea, a dinâmica
planar cubista. Isso se torna claro se a relacionarmos às primeiros esculturas
da artista. Nos anos 1980, após breve experiência com a pintura, suas
primeiras peças em madeira resultaram, segundo a artista, ‘do desejo de dar
maior concretude às imagens’, 1 de buscar nitidez em recortes pintados de
corpos fragmentados; como se o dilaceramento da imagem fosse via para
introdução de referências corpóreas/escultóricas. O que inicialmente era
desenho recortado abriu-se em planos e emprestou corpo ao vazio. Trabalhos
como Introvertida e Dois pensamentos ecoam em Miolo, matriz do pensamento
imagem-corpo presente nos tapetes carnais de a Grande Nua e em outras
séries. No ano anterior, em Escultura como Imagem realizada no Paço
Imperial, a operação carnal de a Grande Nua já era evidente, embora as
dobras efetivassem materialidade mais concentrada do que o espalhamento de
corpos recortados nas Cavalariças. Em Escultura como Imagem, os perfis de
pés e rostos eram suspensos na parede; mais velados, contrastavam com a
grande massa de dobras de tapetes, dispostas como vísceras ou camadas de
carne seccionadas por cutelo. A materialidade dos tapetes adquire significado
por sua maleabilidade, consistência e coloração. Nas duas instalações a
dinâmica de planos não inviabiliza a projeções de imagens, uma vez que o
processo escultórico cria ambiguidade que desvirtua qualquer possibilidade de
pureza formal. Cristina Salgado tem nítido interesse pelos processos
escultóricos, no entanto, a forma, enquanto processo de construção da
escultura, não se desvincula da imagem e inviabiliza qualquer antinomia.
Processo escultórico e imagem situam-se como campos de forças, expressas e
qualificadas pelo material e desafiam o dualismo tradicional de corpo/mente,
matéria/espírito. A ambiguidade criada entre concretude processual e imagem
1 Em entrevista a Luiz Camilo Osório em Cristina Salgado Nuas, Rio de Janeiro: Paço Imperial,
1999.
3
na série dos ‘tapetes carnais’2 evidencia o corpo como esse “entre”, entidade
indefinível, processo aqui poeticamente posto a nu.
2. Olympia
Nua e recebendo flores de um possível cliente, Olympia nos olha
friamente ao expor sua nudez no famoso trabalho de Manet3. A pintura
realizada a partir da modelo Victorine, revela um corpo singular que contraria a
longa tradição de idealização das Vênus. Na série de carimbos de Vênus
(2006), a subversão de Cristina Salgado se dá em outro registro; entinta
partes do carimbo ou faz uma "máscara" para desintegrar a imagem. Dessa
maneira, tal qual uma brincadeira de boneca, coloca a vênus de cabeça para
baixo, as pernas na cabeça, partidas ou mesmo duplicadas. A fragmentação,
deslocamento e junção de partes de corpos já predominava nos trabalhos da
artista desde os anos de 1990, primeiro na série Humanoinumano (1995) e em
Meninas (1993/95) ambas em ferro fundido e também nas séries com papel
machê, entre elas, Instantâneos (2002) .
A fragmentação e junção de diferentes partes do corpo evidenciam humor
pelo inusitado como nas pernas portando bebê(Homem bebê/2002) ou nas
pernas que sobem paredes aparafusadas em hastes de ferro, nos dedos que
saem de cálices, nos sapatos/dedos ou ainda no Mulher boca. As operações
se assemelham àquelas das crianças ao torcer os corpos das bonecas para
efetivar como brincadeira um processo de linguagem. As operações/objetos de
Cristina Salgado nos despertam ao mesmo tempo para um mundo sedutor e
perverso. É interessante enfatizar que esses fragmentos de corpos não são
realistas, mas fragmentos de imagens de corpos, tal como brinquedos e
particularmente as bonecas. Os trabalhos em papel machê eram realizados
partir de estruturas internas muito híbridas, como ripas de madeira, arames ou
algo rígido que pudesse servir de esqueleto para modelar a massa de papel.
O acabamento em massa acrílica e tinta pva era lixado, processo refeito
inúmeras vezes para corrigir imperfeições e até que a superfície estivesse lisa.
Na série Instantâneos (2002), volumes arredondados flutuam pendurados ao
teto da galeria; deles saem fragmentos de corpos como dedos alongados,
2 A designação tapetes carnais é realizada por mim e refere-se não só às duas instalações
analisadas, mas também a toda uma série de trabalhos como Mulher em dobras e Dupla.
3 Édouard Manet . Olympia, 1865, óleo s/ tela. Paris, Musée d’Orsay.
4
olhos que com ironia exploram imaginário infantil.4 Apelidados de “batatas”
diferiam dos trabalhos anteriores por serem esculpidos em blocos de isopor por
profissional de escola de samba a partir de modelo reais de batata inglesa,
batata doce e berinjela. As superfícies recobertas em um tom rosado tal qual
uma pele dissimulam o interior e recebem detalhes como olhos de vidro, dedos,
seios. Com isso projetam-se no espaço como se configurassem em imagenscorpos.
Em alguns deles como Mulher boca ou Mulher com ferro na cabeça a
artista utilizava bonequinhas de plástico que eram cortadas e remontadas;
também eram modeladas com papel maché e repetia-se todo processo de
acabamento. É importante ressaltar que a relação ambígua entre imagem e
materialidade, ou seja um espaçamento, o ‘entre’, como já dissemos, do
processo escultórico tem um significado central na linguagem da artista.
Na séria Humanoinumano, Salgado utilizava ex-votos como molde para
peças realizadas em metal maciço. Apesar do material implicar rigidez de
movimento, os trabalhos sugerem desenvoltura, pois a fragmentação e o fato
das partes do corpo serem interligadas por parafusos insinuam a possibilidade
de montagem e desmontagem. Na série Meninas, as figuras em escala
diminuta contrastam com o peso do ferro, bonecas atravessadas por barra e
olhos perfurados tornam literal a questão do atravessamento do olhar. Muitas
vezes perversas5, as brincadeiras infantis despedaçam ou alteram a anatomia
das bonecas. Objetos inanimados, as bonecas ganham vida por intermédio do
nosso olhar. Imagem em miniatura de um corpo humano, a boneca nas mãos
e sob o olhar da criança é capaz de se alterar, de se abrir cruelmente, de ser
assassinada e, com isso, ter acesso ao estatuto de imagem bem mais eficaz;
sua visualidade, como afirma Didi-Huberman6 torna-se ‘o despedaçamento de
seu aspecto visível, sua desfiguração corporal: a imagem brinca com a
imitação, pois só a utiliza para subvertê-la; abre a imitação aos poderes da
‘figurabilidade’: ao mesmo tempo jogo de palavras e jogo de imagens’. Imagem
4 Ver análise de Luisa Interlenghi ‘Corpo como Espaço’ In Grande Nua na Poltrona Vermelha ,
Rio de Janeiro: UERJ, 2009, p. 53
5 Menina atravessada por um pau participou da exposição Infância Perversa no Museu de Arte
Moderna em 1995.
6 Didi-Huberman defende que as imagens da arte sabem compacificar esse jogo da criança
ao impor sua visualidade como abertura, uma perda praticada no espaço de nossa certeza
visível a seu respeito. E é exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar. Didi-
Huberman O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 80 a 87.
5
fundida também é fendida, pois deixa transparecer a pulsação das brincadeiras
infantis, como também aquela das preces e desejos das formas votivas. 7As
bonecas de Hans Bellmer, a Olympia dos contos de Hoffman, bem como a
interpretação de Freud relacionam-se com as operações suscitadas por essas
séries de Cristina Salgado. O número 6 da revista Minotaure, de 1935, traz as
fotografias de uma boneca que Bellmer construiu em madeira e papel machê e,
depois, fotografou em partes.8 As versões posteriores das bonecas acentuam
o sistema operatório de uma anatomia metamórfica: isolar uma parte,
desmembrar, mutilar, depois desarticular e reatircular diferentemente, combinar
montagens corporais improváveis e mesmo monstruosas. A inspiração das
bonecas foi uma versão de ópera dos contos de Hoffmann vista por Bellmer.
No conto de Hoffmann o temor de ser ferido no olho e a revelação de que
Olympia é uma boneca conjugam-se para formar “o estranho’, na leitura de
Freud”. 9 Esta interpretação não se relaciona apenas à boneca, mas ao seu
desmembramento, que a priva de seus olhos, o que remete à experiência
infantil do medo de castração. Como a boneca Olympia que Freud invoca para
unir as pulsões fundamentais, morte e desejo, ao olhar, as bonecas de Bellmer
objetivam a tensão entre possibilidades integradoras e desintegradoras e a
natureza sadomasoquista da sexualidade.10 Hal Foster em Compulsive
Beauty11 propõe uma reflexão do surrealismo pelo conceito do ‘estranho’, como
objeto teórico produtivo em seus próprios conceitos críticos; aponta os vários
7 A Forma votiva é forma de um voto e, portanto forma de um desejo. Antes de representar
alguém, o ex-voto representa o sintoma e as preces de alguém; é lá onde sofre e lá que quer
ser curado. Ver Didi-Huberman, G. Ex-voto image, organe, temps. Paris: Bayard, 2006. A
relação com os ex-vostos é explorada por Ricardo Basbaum em BASBAUM, Ricardo
HUMANA/INUMANA. Catálogo da exposição Humanoinumano, Paço Imperial do Rio de
Janeiro, 1995. 8 Ver Hans Bellmer, Anatomie du désir. Paris: Gallimard/ Centre Pompidou, 2006.
9 O estranho ou Inquietante estranheza, escrito por Freud em 1919, baseia-se no conto O
homem de areia, de Hoffmann que começa na infância do protagonista com o episódio da
morte de seu pai, transcorrida em circunstâncias inquietantes; a vida do jovem homem é
marcada por coincidências que se opõem a seus projetos amorosos, e a estória acaba com a
morte do herói, que se suicida num acesso de demência. O homem de areia é aquele que
arranca os olhos das crianças que não querem dormir. A angústia horrível e desmesurada de
perder os olhos é para Freud um substituto da castração. ver Hoffman, Ernst Theodor
Amadeus. O Homem de areia. In: Calvino, Ítalo, org. Contos fantásticos do século XIX, São
Paulo: Companhia das letras, 2004. Freud, S. L’inquiétante étrangeté In Claude This, (org.). De
l’art et de la psychanalyse, Freud et Lacan. Paris : École National Supérieure des Beaux-Arts,
1999, p.156.
10 Krauss. R. Corpus delict. In O Fotográfico. Barcelona: Editorial Gili, 2002. p.194-197.
11 Foster, Hal. Compulsive Beauty. Massachusetts: The Mit Press, 2000.
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aspectos do estranho nos dois manifestos do surrealismo: a confusão entre
animado e inanimado, exemplificada em figuras de ceras, bonecas, manequins
e autômatos, todas imagens cruciais no repertório surrealista; a usurpação do
referente pelo signo ou da realidade física pela física realidade. Aqui o surreal
seria vivenciado num eclipse do referencial pelo simbólico, ou seja, pela
submissão de sujeito por um sintoma, que teria como efeito aquele do
estranho.
Bellmer ilustrou a História do olho de Bataille em 1947; criou a boneca
Jointure à boule na qual coloca um olho-vulva entre ‘pernas/ braços’. 12 As
bonecas de Bellmer, mutiladas ou monstruosas, conjugam impulsos sádicos e
amorosos, como uma rede de emoções e ansiedades em circulação.13 A
relação das bonecas de Bellmer com os trabalhos de
Cristina Salgado não se limita à transposição dos
limites anatômicos, mas à operação que invoca
analogias em imagens virtuais, pois ambos relacionam
não apenas a imagem do corpo, mas o corpo da
imagem. A labilidade da imagem do corpo ultrapassa a
anatomia, pois lida não só com as imagens
fragmentadas das bonecas como também com as
pulsões que as originaram e aquelas desencadeadas quando as olhamos.
Olympia Sentada14 realizada pela artista em 2012, nada tem da
anatomia humana das séries anteriores, embora incorpore suas questões
mediante outra lógica. O trabalho é composto por uma caixa de madeira com
frente e verso pousada em uma cadeira; pela vista frontal ela é totalmente
preenchida com tecido róseo emborrachado e franzido por parafusos. Na parte
traseira, a superfície de madeira exibe uma abertura circular que deixa
entrever varias camadas de tapetes em tons de vermelho; elas são enroladas
de maneira a conformar uma cavidade que implica o desejo de adentrar e
investigar a interioridade. Entidade aparafusada, apresenta-se como enigma
12 Ver Hal Foster. ‘Violation and veiling in surrealist photography: woman as fetish, as shattered
object, as phallus’ In Surrealism desire unbound. London: Tate, 2001, p. 203-237.
13 Ver a análise de Rosalind Krauss em Corpus delicti. In O fotográfico. Op. cit., p.196.
14 Segundo a artista o nome Olympia foi sugerido pela crítica Marisa Flórido ao relacionar a
contenção do encarnado pelo limite da caixa à contenção de Olympia de Manet, figura
impassível cuja sensualidade seria traída pelo eriçado do gato.
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pela duplicidade ambígua da visão; perfurada supõe olhar vazado que se deixa
olhar. Fendida e convulsa, Olympia Sentada é contida pelos limites da caixa o
que supõe o Encarnado15 como questão: significa que é pela mediação entre
imagem e matéria que concebemos essa vida. Apesar da complexidade do
debate sobre a Encarnação, é importante destacar aqui como o pensamento de
Bataille interfere nessa na interdição bíblica da semelhança divina, pois suas
concepções, depois desenvolvidas por Didi-Huberman nos ajudam a
compreender as questões investigadas por Cristina Salgado: como a relação
corpo-imagem constitui-se por meio de olhar e como essa labilidade desloca
sentidos fixos e determinados.
Bataille fala de um método pensado em termos de contágio
desarranjador. Como um dilaceramento prolongado, como uma rasgadura que
passaria através de contato, de sujeito a sujeito e de experiência a experiência,
fundindo as semelhanças inconvenientes e materiais. Na revista Documents,16
exprime sua empresa transgressiva ao reivindicar uma semelhança informe
que desfazia e decompunha toda uma construção mítica da semelhança.
Inverte a hierarquia do modelo e da cópia, embaralha todas as relações do alto
e do baixo e com isso despedaça o tabu do tocar sob o qual todo mito cristão
da semelhança parecia se construir. Quando se diz que duas coisas ou duas
pessoas se assemelham, supomos normalmente que elas não se tocam e
permanecem num distanciamento material. O retrato assemelha-se ao
retratado e a cópia a seu modelo, justamente porque o retrato não tem a
substância do retratado, ou seja, a conformidade ideal exige qualquer coisa
15 O pensamento sobre a Encarnação é elemento constituinte do pensamento sobre corpo e
imagem. Ao encarnar, Deus se oferece aos humanos sob uma forma que participa ao mesmo
tempo da transcendência espiritual e do corpo humano. Foi pelo modo como a doutrina cristã
interpretou a interdição judaica de representação de Deus que a concepção de corpo e pôde se
constituir em categoria. O criacionismo monoteísta impõe uma relação de semelhança entre o
homem e Deus assimétrica. A semelhança cristã se exprime hierarquicamente, pois fixa uma
cópia que se assemelha a seu modelo e que o inverso nunca deve ser dito, pois
desclassificaria a relação de semelhança. A possibilidade dessa relação é introduzida pela
doutrina da Encarnação, pois permite compreender que apesar do caráter irrepresentável de
Deus, uma circulação possa existir entre ele e o homem. Graças à imitação de Cristo o homem
aproxima-se de Deus, o que significa uma mediação entre o corpo humano e seu modelo. Em
função desses elementos o pensamento do corpo é inseparável do pensamento da imagem na
Europa. A esse respeito ver Schaeffer, J.M. O Corpo é imagem Arte& Ensaio. Rio de Janeiro,
EBA/UFRJ, 2008 e Matesco, Viviane. Corpo, Imagem e Representação. Rio de Janeiro: Zahar,
2009.
16 Bataille, Georges. Documents.Paris: Mercure de France/Gallimard, 1968.
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com a recíproca de uma não comaterialidade: a matéria não deve tocar a
forma. Bataille propõe uma iconografia cujo caráter é desarranjado e
deslocado, pois ao invés de tratar as imagens como termos substancializados e
fixados na sua significação intrínseca, estabelece um regime que tende a
mobilidade e a imagem é sentida como indefinidamente lábil. A transgressão
não é uma recusa, afirma Didi-Huberman, 17 mas uma abertura, pois Bataille
não considerava o corpo humano como uma forma substancial. Dilacerar tal
substancialismo significa privilegiar as relações mais que os termos. O corpo
torna-se lugar de transgressão realizada através de deslizamentos nos quais
seus fragmentos enredam-se numa série de associações que deslocam seu
sentido familiar. Assim, a parte é afirmada na sua obscena fragmentação
apagando sua integração na totalidade e impossibilitando a construção de uma
imagem de corpo completa. É essa fragmentação e deslocamento que Bataille
chamaria mais tarde de erotismo.
3 Convulsionada
Nas instalações Vista (2010) e Ver para olhar (2013), ambas
relacionadas à Olympia Sentada, a pesquisa da artista em torno da imagem
distancia-se do visível enquanto dado descritível para uma conformação
transitiva a partir da implicação do olhar. 18 Em Vista realizada no cofre da
Casa França-Brasil, a superfície do exíguo espaço é recoberta com tecido
emborrachado; pregueada por parafusos que perfuram e pressionam suas
dobras produz corporeidade semelhante àquela da pele. Um olho encravado
entre as dobras pontua o ambiente: um cofre, que supostamente esconde e
guarda segredos, é aberto e nos olha mostrando suas entranhas. Tal como
Olympia Sentada, apresenta um olhar olhado como enigma; ao menos
simbolicamente os olhos são relacionados à função de orifício por intermédio
do qual o mundo nos penetra. Aqui se privilegia o processo, como uma
17 Sigo aqui Didi-Huberman, G. La ressemblance informe ou lê gai savoir selon Georges
Bataille. Paris: Macula, 1995.
18 A partir da tese de doutoramento da artista Escultura como imagem (2008), a pesquisa sobre
a imagem, segundo ela, partia da certeza de que se tratava de outra coisa que não a imagem
material e visível “ era do olhar, e não da visão, que eu, sem saber, queria me aproximar.
Salgado, C. A Imagem Incógnita (comunicação) Anais do 20o Encontro Nacional da Anpap. Rio
de Janeiro: UERJ, 2012, p. 3382-3396.
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configuração uma vez que a pele é uma contingência, pois nela, por ela, com
ela toca-se o mundo e o meu corpo, ela define uma borda comum19.
Ver para olhar 20 trabalho realizado no Paço Imperial é proposto,
segundo a artista, “como um dispositivo que coloca o olhar, ele próprio como
objeto a ser contemplado em suas múltiplas dinâmicas: o olhar potencializado e
simultaneamente o olhar mediado, na exposição de sua construção íntima a
partir do desejo”. 21 A instalação disposta em ambiência em penumbra e
esfumaçada tem o sentido desvendado mediante a experiência de percurso
espacialmente orientado. Composto de três segmentos apresenta duas
extremidades com função distinta, uma no início que projeta e outra no final
que recebe, mesmo que esses termos sejam invertidos posteriormente. De um
lado, uma poltrona recoberta com drapeado em tom róseo ladeia um refletor
que produz um jato de luz; no outro extremo, uma poltrona rosa acolhe a
projeção. Entre as duas, uma série de trinta caixas de madeira pousadas em
mobiliário diversificado como cadeiras e poltronas é atravessada por uma barra
de ferro e, paralelamente, é perpassada pelo forte feixe de luz proveniente do
projetor. As caixas côncavas e em diferentes dimensões revelam ambiguidade
pelo contraste entre o formato geométrico e a relação com as cadeiras: como
estivessem sentadas. 22 Embora variado e usado, o mobiliário não manifesta
nenhum outro significado alheio à sua função: acolher corpos. A relação entre
as caixas e o feixe de luz institui uma potência, significa tanto projeção que
penetra esses diversos corpos quanto fonte que captura e significa esse
atravessamento. A poltrona em tom de rosa posicionada no lado oposto do
percurso atua como anteparo para a barra de ferro e para o feixe de luz agora
revelado em imagem. Diminuta, porém potente, ela focaliza uma mulher de
mãos dadas com uma menina, a sugerir tanto pela diferença de grandeza,
quanto pelo gesto, a relação simbólica entre mãe e filha, analogia central para
a rede de significados engendrada pelo trabalho. A proximidade entre o final
19 Serres, Michel. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, ,p. 16.
20 Sigo parte da análise desenvolvida em artigo da revista Poiésis; Matesco, V. ‘Olhar para ser’
In Poiésis, Niterói: UFF, 2013, n. 21-22 p 13 a 24.
21 Salgado, Cristina. Olhando para ver para Olhar. (comunicação) Anais do 22o Encontro
Nacional da Anpap. Belém: UFPA, 2013, p. 1374-1377.
22 Como em Olympia sentada, a recorrência de cadeiras e poltronas na obra da artista não é
mero acaso, mas fato em si significante.
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da barra de ferro em ponta e área da imagem atribui direcionamento espacial
ao feixe de luz e funciona como se o projetor a olhasse em retrospecto
buscando atualizá-la. O atravessamento sugere mobilidade proveniente da
extensão espaço-temporal entre projeção e imagem: trata-se não de uma
cronologia, mas de cena que se reatualiza. Também a perfuração da barra de
ferro confere caráter intenso ao cruzamento, qualificado simultaneamente como
potencia e resistência. A imagem é aberta por intermédio desse
atravessamento, operação que entrelaça e, ao mesmo tempo, dissolve
passado, presente e futuro pela ativação de uma latência. A percepção do
trabalho implica, portanto, olhar ambivalente que borra as fronteiras entre real,
fictício e imaginário e, por isso, põe em colapso noções tradicionais de
princípio e fim, bem como de espaço interno e externo.
Ver para olhar funda-se como aparelho simbólico cujo funcionamento
revela laço indissociável entre imagem e corpo. Dois elementos da instalação
impõem corporeidade, mas o fazem por lógica oposta; as caixas sentadas
perpassadas por luz e a poltrona recoberta com drapeado. Ambas pressupõem
a imagem do corpo humano. No entanto, artista estabelece relação dúbia entre
imagem e materialidade, ambiguidade implicada aí como processo significante.
A relação entre processo escultórico, a materialidade e a imagem em Vista,
Olympia Sentada e Ver para Olhar se impõe como processo no qual um
depende do outro: há um contágio desarranjador. A sequência de caixas
pousadas no mobiliário sugere a imagem de corpos sentados e
consequentemente uma analogia antropomórfica. Já na poltrona drapeada, a
imagem atua em duplicidade: do corpo que senta e de seu invólucro - a pele
encarnada. Tal como em Vista, é por intermédio do contágio e desarranjo da
materialidade que se incorpora a imagem de pele, a cobertura do corpo.
Podemos identificar aí três termos: o material em tecido drapeado, o processo
escultórico de costurar e a semelhança - a imagem de pele. A artista institui
conexão entre os três em que um qualifica o outro; a maleabilidade do tecido
tanto evoca o processo de costura e sua correlata gestualidade, como a
consistência da pele. A matéria é tratada como substância condutora de
sentido e o processo de construção da escultura não se desvincula da imagem
o que inviabiliza qualquer antinomia. Processo construtivo e imagem situam11
se como campos complementares qualificados no trânsito do material, e
desafiam, portanto, dualidades clássicas. A poltrona recoberta com o drapeado
róseo invoca a pele como limite, mas também clama por vísceras, expressão
convulsionada. Esse ser convulso dimensão sensível que corporifica o
processo escultórico impõe o ‘Encarnado’ como questão
Ao invés de uma pura imagem-representação, o trabalho de Salgado
introduz um processo. A poltrona encarna o sentido do trabalho, pois ao
mesmo tempo em que confere vida, é tomada: a imagem ganha vida como se
figurasse o olhar que a constitui. A partir de Didi-Huberman compreendemos
como a relação corpo e imagem é indissociável uma vez que a imagem
enquanto ‘figuralibilidade’ se impõe como uma abertura, uma perda praticada
no espaço de nossa certeza visível a seu respeito.