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Daisy Xavier

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Daisy Xavier

Daisy Xavier

Daisy Xavier (Rio de Janeiro, 1952)
Vive e trabalha no Rio de Janeiro.

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Formada em psicologia e psicanálise, Daisy Xavier começou
sua formação artística nos anos 1980. Frequentou o núcleo
de aprofundamento da Escola de Artes Visuais – Parque Lage
(1992) e História da Arte com Paulo Sergio Duarte (2000).
Suas obras buscam investigar questões ligadas às identidades
e as alteridades. Seja pela desconstrução ou pela recriação de
formas e conceitos estabelecidos, a artista cria imagens de forte
carga poética onde o corpo deixa de ser meramente físico e
passa a representar zonas permeáveis. Elementos como a rede
e a água são recorrentes nos trabalhos da artista - sejam vídeos,
fotos, instalações, pinturas ou desenhos. Ambos elementos não
deixam definir o que se encontra dentro ou fora, criando campos
intercambiáveis, de constante mutação.
Em pouco mais de três décadas de trabalho artístico, a produção
de Daisy Xavier sempre se interessou em investigar, seja nas
fotografias, nas instalações, nos vídeos ou nas pinturas, a
qualidade de estados entre o sólido e o líquido, entre os cheios e
os vazios, dos corpos em transição, das formas mutantes que os
corpos podem assumir ou simular. A possibilidade de dissolver
limites ou de mostrar o quanto eles podem ser maleáveis é o
norte da pesquisa da artista ao longo dos anos.
“Reconheço que ao longo do meu trabalho venho tentando
responder a uma única questão: o que é um limite? O contorno
definido dos nossos corpos, a demarcação precisa do tempo e as
verdades estabelecidas são coisas que não compreendo e me
desafiam. Gosto de pensar que tudo pode ser diferente do que é.
Me divirto e me exercito desorganizando minhas certezas.
No meu trabalho de arte fico buscando isso: mostrar um corpo
com uma nova anatomia, um espaço com escalas inusitadas,
criar um tempo invertido que vá do futuro para o passado e viceversa”,
explica a artista.

  • As Trocas da Pele Katia Canton

    Eis a tatuagem: minha alma constantemente presente, branca, cintila e difunde-se nos vermelhos que se permutam...Assim, complexa e um tanto assustadora, surge nossa carta de identidade. Cada um tem a sua, original, como a impressão de seu polegar ou a marca de seus maxilares. Nenhuma carta é igual a nenhuma outra, todas mudam com o tempo; fiz tanto progresso desde minha juventude triste e trago na pele o traço e os caminhos abertos por aquelas que me ajudaram a procurar minha alma difusa.  Michel Serres (1)

     

    A única totalidade, o único mundo que existe realmente é aquele que você abraça. Riqueza infinita da vida da alma: só ela existe. Pierre Lévy (2)

     

     

    A preocupação com os limites, as identidades e alteridades do corpo, já apareciam na série anterior da artista, Anfíbios. Ali, Xavier mostrava corpos mal delimitados por contornos de uma rede, que eles vestiam, e que se diluíam no mesmo azul das piscinas onde estavam mergulhados.

    Naquela obras, a idéia de desconstrução do corpo partiu da observação de mendigos de rua, embrulhados em cobertores de feltro e na constatação de que, na procura de abrigo, os limites do corpo vão se esvaindo, dando lugar às massas, aos volumes que se dissolvem e se reinventam gradativamente, no limiar dos gestos e movimentos.

     

    Na recriação desse conceito, a artista usou redes envolvendo corpos mergulhados em água, resgatando a matéria líquida, de que é feita a grande parte do corpo humano. Simulacros de anfíbios, metamorfoses vivas que procuram se reinventar, esses corpos encapsulados, buscavam formas para si mesmos à medida em que gesticulavam, se contorciam, perdiam a memória de suas qualidades individuais e humanas para se materializarem como estranhos corpos naquele plasma azul.

     

    Em Anagramas, Daisy Xavier abre mão das molduras, dos cenários ou  recursos extra-corpo e nos envolve numa simples e  pulsante paisagem de corpos, um denso enfileiramento de peles. São espaços corpóreos que funcionam despidos de suas personas e se tornam volumes sutis, pausas feitas para se adivinhar o sentir dos toques das peles, as texturas dos poros, suas temperaturas.

    Essas montanhas de carnes, em sua verdade e sua vulnerabilidade plenas garantia sublime de sua humanidade se tornam materiais vivos e latejantes, documentos preciosos da memória corporal.

     

    Aqui somos incluídos num jogo poético de incompletudes, onde cada peça conta uma história potente, autobiográfica, desnuda, envolvendo quatro gerações: a avó, a mãe (a artista), a filha, a neta. São quatro mulheres que emprestam as particularidades de suas vidas e de seus corpos para a criação de uma outra natureza. Trata-se, aqui, de uma natureza sem limites precisos, plena de pulsações, de deslocamentos, de respiros, de desigualdades, de pequenas simbioses.

     

    Esses relevos de carnes se tocam, se encaixam, ora se debatem delicadamente; se enroscam, se dobram, se enrugam para esticar-se depois. Esses corpos se entrecruzam feito árvores plantadas muito proximamente, e que crescem e se expandem milimetricamente no tempo.

     

    Nessa movimentação contínua, seja ela congelada na seqüência de obras fotográficas, ou fluída na projeção dos vídeos num aquário--resgate do caráter plasmático das matérias internas de que são feitas o corpo humano e forma que alude ao útero materno--as peles passam a desenhar contornos de afetos.  Os pedaços de corpos, juntos, se tornam caixas, receptáculos de narrativas de vidas enfileiradas, amontoadas, grudadas, miscigenadas, unidas pelas vias da cumplicidade genealógica.

     

     

     

    No contato, na fricção, no roçar constante de uma pele contra a outra, toma corpo uma ação que leva aos aprofundamentos da superfície do corpo, aproximando almas, aguçando sentidos, adensando os momentos presentes de cada uma das experiências de vida.

     

    Nesse contínuo reinventar-se da pele, os tempos se expandem. Na direção inversa da equação dos vários espaços cruzados num só tempo, algo garantido pelo desenvolvimento tecnológico dos aviões a jato, pela cultura cibernética, pela internet, temos nesses anagramas, um acúmulo de tempos amontoados num só espaço. A existência  de quatro mulheres, quatro histórias vividas em quatro gerações, se torna uma grande e única massa, ocupando compactamente o espaço de uma obra de arte.

     

    Finalmente, os contornos precisos de cada um dos corpos, de cada um dos eus, agora, se apagam lentamente e se permitem uma troca sutil. Uma somatória de volumes se organiza, se recompõe lenta e provisoriamente, num aglomerado instável, num pacote de alteridades que constitui a identidade contemporânea.

    É, afinal, pelos muitos “outros” que confrontamos que o eu se define.

     

    De fato, no mundo pós-moderno, globalizado e desigual, o processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades, tornou-se mais variável, problemático e provisório. Nas palavras do sociólogo britânico Stuart Hall, “esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente”(3). De acordo com Hall, a identidade hoje se torna uma celebração móvel, algo como a montanha de corpos friccionados com que Daisy Xavier nos oferece.

     

    Nesse jogo de hibridismos, de identidades que parecem próximas a entrar em fusão, a embaralhar seus limites e se tornar corpos mutantes,  o que a artista nos oferece é, na verdade, um desmascaramento da idéia de pele como limite do eu. Ela se torna, ao contrário, um repositório de transfusões, de contaminações múltiplas, e de recombinações imprevisíveis.

     

    No decorrer do tempo, afinal, através das experiências corpóreas, das trocas cotidianas, do entra e sai de ar, de suor, de fluídos e de emoções canalizados pelas vias dos poros, nos misturamos com o mundo, nos nutrimos uns dos outros, deixamos nas alteridades algo de nosso e até nos juntamos a elas e ora confundimos os limites de nossos corpos.

     

    *Katia Canton é PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York. É professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de S. Paulo.

     

    Notas:

    1em Os Cinco Sentidos (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001).

    2-em O Fogo Libertador (São Paulo, Iluminuras, 2000).

    3-em A Identidade Cultural na Era da Pós-Modernidade (lRio de Janeiro, DP&A, 2000).

  • Duplo movimento Agnaldo Farias

    Realizadas em co-autoria com a cineasta Célia Freitas, Nadando e Passantes, as duas obras de Daisy Xavier aqui apresentadas não são propriamente vídeos mas videoinstalações – mais que um detalhe de ordem técnica, essa designação implica a incorporação do espaço arquitetônico e, por conseguinte, o envolvimento do corpo daquele que as contempla.

    Ao invés de obras voltadas exclusivamente aos olhos, obras para serem vistas de fora, com uma distância que você, visitante do Instituto Tomie Ohtake, pode calcular, na razão de seu desejo de envolver-se mais ou menos com elas, Nadando e Passantes, as duas protagonistas dessa exposição, exigem bem mais do que isso. Vê-las significa estar dentro delas, acompanhando, no caso de Nadando, a cadência compassada com que uma nadadora vai ferindo longitudinalmente o plano d’água; girando o próprio corpo como se estivesse sendo enovelado pela imagem. O mesmo tipo de adesão acontece com Passantes, que, composta por duas projeções simultâneas, exige decisões intermitentes e bruscas acerca de qual delas deverá ser acompanhada. Também nela, leitor – isto é, uma vez dentro dela –, seu corpo será ativado, obrigado a um movimento feito em obediência à obra. Experimentando-as, percebendo essa peculiar experiência em que as dimensões espaço-tempo se fundem, é provável que lhe venha a indagação: quem se movimenta?

    O problema do movimento parece ser a pedra de toque da poética de Daisy Xavier. A começar pela proposição da imagem, que se comporta como um duplo daquele que a observa. Pois a questão principia por aí: quem é esse que eu vejo cortando a água horizontalmente, vencendo com disciplina, sem mostras de cansaço ou esmorecimento, sem sofrear o ritmo? De quem é esse corpo que me leva consigo, arrasta-me à tona d’água, uma quilha longilínea, opondo-se com a decisão imperturbável de uma linha reta à inconsutilidade e infinitude do azul?

    De modo homólogo, em Passantes assiste-se à tensão entre corpo e casa. Corpo que se entrevê pelas malhas de uma rede, esse curioso aparato que, conquanto seja capaz de reter as coisas, garante que se mantenham visíveis. Um modo de assinalar a reciprocidade entre o dentro e o fora, a comunicação e o intercâmbio constante entre esses dois termos. Vai-se vendo um corpo que evolui de um contorno difuso a uma forma definida, dentro e fora de uma casa. Percorremos essa casa desde dentro, rente às suas paredes e piso e sempre em velocidade, num fluxo que se interrompe para que sejamos golpeados pelas máquinas que a vão demolindo. O corpo como o outro, a rede como pele, a casa como corpo. Os escombros, os pedaços de paredes que caem em movimentos desencontrados, verticais e horizontais, contam-nos sobre uma desagregação iminente promovida pela passagem do tempo, esse senhor implacável, que abre poros nos espaços, que transborda da tela arrojando-se para o espaço da sala onde estamos, colhendo nosso próprio corpo, assaltando-nos, nós que insistimos em nos supor a salvo dele.

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