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Eduardo Climachauska

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Eduardo Climachauska

Eduardo Climachauska

1958 - São Paulo | Brasil

Vive e trabalha em São Paulo, Brasil.

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Eduardo Climachauska é um artista multifacetado, atuando nas áreas de visografia, desenho, pintura, escultura e estruturas que exploram a força motriz. Seus trabalhos podem ser entendidos como um comentário discreto, porém incisivo ao ambiente de espetáculo do mundo em que vivemos, provocando uma "instabilidade estrutural" que reflete momentos de tensão em uma lógica absurda. Elementos como pararraios, bicos de gás, fios de prumo, bacias e lâmpadas são recorrentes em suas criações, servindo como lembretes de que forças poderosas, tanto naturais quanto sociais, não podem ser ignoradas. Climachauska demonstra uma coragem notável ao trabalhar com materiais que parecem inertes, como betume e carvão, que carregam a história do tempo geológico.

Formado na Escola de Comunicações e Artes da USP entre 1976 e 1980, Climachauska tem uma trajetória rica em exposições em renomados museus e galerias, tanto no Brasil quanto no exterior, incluindo o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), o Museu de Arte de São Paulo (MASP) e a Bienal de São Paulo. Além de suas obras visuais, ele também se destaca na produção de filmes e vídeos experimentais, exibidos em festivais e mostras em diversas capitais. Seu trabalho é uma reflexão profunda sobre a realidade contemporânea, desafiando o espectador a confrontar as forças que moldam nosso mundo.

  • O princípio da perda      Francisco Bosco

    O princípio da perda

     

    "Toda vez que o sentido de um debate depende do valor fundamental da palavra útil [...] é possível afirmar que o debate é necessariamente falseado e que a questão fundamental é eludida", sentencia Bataille em seu estudo de economia geral que denunciava, nos anos 1930, uma profunda incompreensão quanto aos princípios de produtividade/conservação e despesa/consumo, e o lugar por eles ocupado na história da experiência humana. A vida mesma é inútil, e um dos logros da modernidade - no duplo sentido da palavra: feito e ilusão -, do racionalismo econômico do modo de vida burguês, é tampar essa inutilidade, no fundo ontológica, com uma produtividade progressiva, exorbitante, e que hoje ameaça, dialeticamente, nos reconduzir ao vazio de que procurara escapar, só que agora como experiência real do fim do mundo, da morte de tudo.

    Na esteira do célebre estudo de Mauss sobre a dádiva, Bataille revê a experiência de diversas civilizações chamando a atenção para o caráter histórico recente do privilégio máximo concedido aos princípios de produção e aquisição. Ao contrário, sociedades não modernas como as dos índios do noroeste dos EUA tinham sua economia social e pulsional orientadas pelo princípio do consumo e da perda. É esse, para evocar seu mais conhecido exemplo, o sentido do ritual do potlacht, pelo qual tribos engajavam outras tribos numa troca de dádivas cuja finalidade não era material, mas simbólica: ostentar o poder de perder, e humilhar e obrigar o outro, o rival, a perder ele também o mais que puder. Assim como os portugueses não puderam entender que os índios do pré-Brasil não queriam objetos sem fim, mas sim uma troca, um contato sem fim, também a economia clássica só enxergou nesse sistema de dádivas uma forma primitiva do comércio, quando seu sentido é o oposto. E esse sentido ensina e orienta necessidades humanas fundamentais. Pois é nesse âmbito de uma verdadeira economia geral que se situa a obra O globo da morte de tudo, de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska.

    Não é por acaso que a obra se estrutura a partir de quatro categorias. A palavra aristotélica remete aos princípios fundamentais do ser, e na obra eles se apresentam em dois pares opositivos: Cerveja x Nanquim, Cerâmica x Porcelana. A categoria Cerveja, dizem-nos os autores, "prende-se à vida cotidiana - eletrodomésticos, troféus, instrumentos musicais, jogos". A categoria Nanquim "tem associações com a noite, a morte e o luto". A categoria Cerâmica "é uma coleção de objetos básicos, associados ao mundo agrário, à culinária, às coisas primárias". A categoria Porcelana "está regida pelo luxo e pelo kitsch - perfumes, produtos de beleza, porcelanas figurativas, vinhos de safra antiga". Pode-se dizer que, estruturalmente, essas categorias formam as seguintes oposições: pulsão de vida (Cerveja) x pulsão de morte (Nanquim), produtividade/conservação (Cerâmica) x consumo/despesa (Porcelana). São os registros fundamentais da experiência humana, e é a partir deles, com eles que as sociedades e indivíduos efetivam suas economias de vida. Que todos eles estejam submetidos, no estágio inicial da obra, a um acontecimento cujo horizonte é a destruição, isso, é claro, situa o gesto dos artistas num amplo desejo de despesa. Desejo de interferir na economia produtivista do mundo com um hino ao desperdício. E esse gesto desencadeia outras ambiguidades e dialéticas.

    Não escapou ao próprio Bataille que os rituais de perda eram movidos por um ganho em outro nível; um ganho simbólico. Perdiam-se, por meio de dádivas ou sacrifícios, bens materiais, mas se ganhava a posição hierárquica, a glória, o reconhecimento da virtude da liberação. Também nessa obra de destruição que é O globo da morte de tudo podem-se identificar princípios simultâneos de perdas e ganhos. No contexto do estatuto moderno da obra de arte, em cuja experiência convivem as lógicas da gratuidade e da mercadoria, é importante compreender esse tema de modo desassombrado. Numa primeira volta do parafuso, a instalação, com sua vasta recolha de objetos - que remete às Exposições Universais do século XIX, só que apresentando, não os objetos desconhecidos do presente que sinalizam o futuro, mas os objetos conhecidos de um mundo prestes a ruir -, sua escala grandiosa, seu alto dispêndio de tempo e dinheiro para a montagem, montagem afinal de uma obra efêmera, invendável, a instalação assoma como um antimonumento à dépense. Em outra volta do parafuso, entretanto, adentra a cena uma economia produtiva indireta (de que esse catálogo é uma das manifestações), e ainda uma economia imaginária (o lucro imaginário dos artistas, dos seus eus). Uma perspectiva vanguardista radical tende a ver nessas ambiguidades uma contradição. Mas uma determinada prática da economia geral não precisa anular alguns de seus elementos internos, e sim privilegiá-los ou diminuí-los, de acordo com seus valores. A obra destruída vive em registros. Utiliza-se de algum modo a utilidade recusada. É uma forma de economia sustentável, só que orientada pelo que a obra de arte privilegia, que sempre foi, é e será (se obra de arte for) o princípio não lucrativo.

    Tão forte quanto essa dimensão performativa da instalação é a sua dimensão constativa. É óbvia a pertinência de uma obra que encena a morte de tudo no momento mesmo em que o mundo se vê obrigado a encarar a possibilidade de seu fim. Mas o comentário da obra se revela agudo a partir, mais uma vez, de seus elementos internos. As estantes abarrotadas indicam o mundo da produtividade exorbitante, e é por causa dela que o mundo poderá ter de encarar o seu fim. Não se consegue imaginar uma outra forma de vida que não seja orientada pelo sistema progressivo da produtividade (Zizek costuma dizer que hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo). Mas a produtividade, que ilude a morte com a sua produção incessante de objetos, ocupando a realidade, a percepção e os sentidos dos sujeitos, a ponto de muitos sentirem uma espécie de horror vacui ao ficar por instantes sem um gadget - essa mesma produtividade desenfreada é quem afinal ameaça os sujeitos com a experiência real da morte, em sua pior versão: o fim de tudo. Por um efeito dialético, assim como os nômades eram forçados a se deslocar justo por serem os mais sedentários dos povos (incapazes de se mover para cultivar), a civilização mais produtivista da história é ameaçada pelo real da improdutividade, a atingir a própria vida da espécie.

    Tudo isso gira no Globo da morte de tudo. A tensão entre a matéria e o imaterial, a voz e o sentido, o signo e a opacidade, que atravessa, constituindo-a, a obra literária e artística de Nuno Ramos, apresenta-se, nessa parceria com Eduardo Climachauska, como um paroxismo e um paradoxo: há tanto mais sentido quanto maior a massa de matéria, as interpretações se avolumam apesar da violência aos objetos, essa espécie de disaster painting revela-se a um tempo mais brutal e mais sublimada. Afinal, é de arte que se trata, e a arte, como na esplêndida definição da Dialética do esclarecimento, é Ulisses amarrado ao mastro ouvindo as sereias. Se esse Globo da morte quer destruir tudo, é apenas para erguer uma criação que lembre ao mundo, a este mundo, que perder é uma verdade fundamental da experiência humana. E quem a acata está mais próximo da vida.

     

    Francisco Bosco

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

     

  • A voz do chão Agnaldo Farias

    Num círculo, o centro é naturalmente imóvel;

    Mas se a circunferência também o fosse,

    não seria ela senão um centro imenso.

    PLOTINO

     

    La noche oscura (2008), trabalho cujo título, quase por casualidade, se contrapõe à conhecida Nuit Blanch parisiense, a noite em que todas as galerias ficam abertas madrugada adentro, foi apresentado na penumbra do porão da Galeria Sycomore, em Paris. Com esse título, Eduardo Climachauska, Clima (chama-lo-emos assim, uma vez que somente os familiares o tratam por Edu), recupera o célebre poema homônimo de San Juan de la Cruz (1542-1591), padre carmelita canonizado em 1726, sobre a purificação espiritual, a cujos primeiros versos

     

    En una noche oscura,

    Con ansiasen amores inflamada,

    Oh dichosa ventura!,

    Salí sin ser notada,

    Estando ya mi casa sosegada;

    inadvertidamente costumamos associar pulsões carnais, bem ao contrário da pia explicação do poeta santo, para quem essas palavras significavam o abandono de si e de todas as coisas para venir a vivir vida dulce y sabrosa con Dios.

     

    Através de um alto-falante desses que tem o tradicional formato cônico, apoiado sobre o chão, ligado a um aparelho portátil de som digital, escuta-se o poema sendo declamado. Preso no teto, caindo diretamente sobre ele a ponto de quase tocar o seu centro, pende um fio de prumo, uma linha de aço em cuja extremidade inferior vem fixado um pequeno cone de chumbo. A concavidade cônica do alto-falante parece contrair-se no cone menor. Embora o som, fluindo do cone do alto-falante, pareça se esparramar pelo ambiente em ondas concêntricas, no encontro entre os dois cones parece acontecer o inverso: o som como que se retrai, anulando-se, calando-se. A presença do fio de prumo sugere a iminência de um movimento pendular, a possibilidade de que um simples deslocamento de ar deixe-o oscilando para lá e para cá. Impressão equivocada. O ímã do alto-falante trava-lhe a leveza, dificulta sua troca com o entorno. Como que coincidindo com o conteúdo do poema, o fio de prumo, embora projetando-se do alto e com sua origem conectada a estratos superiores, comporta-se com passividade, submete-se ao peso, subserviente à força da gravidade que o quer cá embaixo. A mesma voz que entoando o poema transborda pelo chão repercutindo por todo o ambiente volta-se simultaneamente sobre si, condensando-se em matéria densa e opaca. A imaterialidade da voz que preenche o volume do espaço, que se quer ar, contrapõe-se à presença linear e vertical do fio de prumo, fincando-se na sua fonte de origem. Extroversão e introversão. Alto e baixo. Céu e chão. Horizontal e vertical. Palavra e matéria. São estes alguns dos dados do problema que Clima nos coloca. Não são todos até porque, como ele mesmo diz, não sabe, não controla tudo o que faz.

    Segundo o próprio Clima, o ponto de partida foi o momento em que sua mãe, dona Kazimira, professora primária, apresentou-o a uma biblioteca. Deu-lhe mais que um livro, mostrou-lhe esse espaço pletórico, a casa onde todos eles ficam, acomodados, reunidos em prateleiras e estantes, enfileirados, palpitantes. Explicou-lhe que poderiam ser retirados e devolvidos dias depois. Para um garoto ávido por palavras aquela foi a porta.

    Houve um segundo ponto de partida, dessa vez um livro, nada menos que a Bíblia, o livro que Jorge Luis Borges defende como possível fonte de todos os outros. Mas que não era necessariamente lido, antes consultado em função de seus ícones, a vasta coleção de imagens que durante séculos foi sendo produzida sobre as passagens sagradas. Cenas impregnantes, como a dos filmes que Clima assistiria até sabê-los de cor, filmes realizados por diretores como Eisenstein, Ozu, De Sica, Fellini, Antonioni (viu mais de cinquenta vezes O passageiro), entre

    outros cineastas cujas obras ele analisaria em detalhe quando de sua entrada na escola de cinema da USP. Mas isso se daria bem depois. Antes, durante sua adolescência, ocorreram as longas caminhadas pela cidade de São Paulo, as expedições pelos bairros mais distantes e de nomes sugestivos – Freguesia do Ó, Vila Carrão, Mooca etc. - nascidas da pura curiosidade por aquilo que o mapa da cidade, ao final das contas, mais esconde do que mostra, pois como se traduz esse palimpsesto de ruas e nomes?

    Clima lançava-se do Alto do Ipiranga, bairro que até os anos 1970 confundia-se com um dos limites da cidade, onde nasce a Via Anchieta, a estrada por onde se desce do planalto ao mar, em todas as direções, descobrindo os morros, vales e rios escondidos sobre a massa de prédios. Uma peregrinação ociosa animada pela simples curiosidade, o que nos confirma o ensinamento bem-humorado de Eça de Queiroz, de que o impulso que nos leva a olhar pelo buraco da fechadura é o mesmo que nos leva a descobrir a América. Tudo sendo uma questão de escala. Andar pela cidade apresentava-se assim como o recurso possível a um adolescente. Uma legítima aventura. Sobretudo se considera que a cidade é São Paulo de 1970, uma metrópole consumada, com todos os atributos espetaculares concernentes. O artista saía em direção a qualquer bairro, ainda que devotasse especial afeição pelo centro, onde ficava a Biblioteca Mario de Andrade, a maior de todas as bibliotecas. A literatura como complemento ideal dessa vilegiatura que, por força da falta de grana, era feita não no campo ou na praia, mas no meio da cidade. Afinal, com um livro nas mãos qualquer um, ainda que imóvel, pode efetivamente converter-se num viajante.

    Mas aos olhos do adolescente São Paulo ia se revelando cenário de todas as imagens e de todos os sons. Os bairros e as suas idiossincracias, sua arquitetura desigual a cada passo, sua população mesclada, com portugueses, italianos, espanhóis, japoneses, judeus e nordestinos (os coreanos estavam chegando, os bolivianos ainda chegariam) espalhados por Mooca, Bom Retiro, Freguesia do Ó, Braz, Penha, Itaquera, o estrangeiro mostrava-se familiar ao jovem alto de cabelos claros, quase brancos, filho de uma família de lituanos que veio dar com os costa-dos em São Paulo. Definitivamente a periferia da parte rica do mundo não é onde ele se desagrega, mas onde ele descobre como um cadinho de culturas. A linha do horizonte pode ser associada tanto com a ideia de que o mundo é finito quanto com a ideia de que ele não se acaba. Seja como for, se é fato que nela o sol se põe, também é fato de que é pelo outro lado dela que o sol se levanta. Tudo depende da posição do observador.

    Aparentemente o gosto do garoto pela cidade levou-o, senão a compreender, a travar contato com a espessura material, a ambígua e drástica situação dos aglomerados urbanos da magnitude de São Paulo. Uma situação muito bem retratada nas canções, especialmente nos chorinhos e sambas de Zé Kéti, Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira, Adoniram Barbosa e Germano Mathias, gente que ele desde cedo cultuou, e que o levou a aprender música e a tocar violão, e cujas letras, de várias delas, dispunham sobre a felicidade paradoxal dos humildes, a canção composta sobre a contradição entre as estrelas no céu que se apagam pelo efeito do orvalho enquanto cá embaixo dorme-se sobre uma folha de jornal, o mesmo samba que em seguida explica que meu cortinado é o vasto o céu de anil e o meu despertador é o guarda-civil (que o salário ainda não viu).

    Palavras, imagens e música entrelaçando-se no processo de formação de um jovem peripatético que terminou, quase como um corolário natural, optando pelo cinema. Que outra arte pode reunir todos esses ingredientes? Mas nada é assim tão simples. A título de exemplo, passemos por um trabalho relativamente recente e de título extenso, apresentado na galeria Eduardo Fernandes, em exposição de 2005, que toma emprestado um verso de Jorge de Lima (novamente a poesia) Metade céu, metade terra. Trata-se de Escorpião: Das três estrelas brilhantes da testa, a que fica ao norte / A que fica no sétimo segmento, a mais próxima do aguilhão (2005). O título corresponde à descrição feita por Copérnico da constelação de Escorpião e está relacionado com o desenho da peça, constituída por um fio de cobre grosso que, passando por três roldanas fixadas respectivamente no chão, em uma das paredes da sala expositiva e na parede do corredor em frente a ela, descreve um triângulo esconso que atravessa diagonalmente o ambiente. A ordem celeste vê-se aqui referida na vermelhidão da linha de cobre que, como o movimento de um escorpião que se volta contra si, percorre velozmente o espaço para ao final encontrar-se consigo mesma. Conserva algo da errância dos olhos pelo vazio do céu noturno efetuando a ligação entre os pontos luminosos, um sutil dispêndio de energia traduzido no caráter condutivo desse metal, habitualmente utilizado para a transmissão de corrente elétrica. Mas subjacente a peça vem o movimento e o desgaste de energia nada sutil produzido pelo guincho de alavanca que, aos solavancos ruidosos de seu vaivem, garante a tração que enrijece a corda de cobre, advertindo, não sem alguma ironia, a carga de trabalho objetivado na plasmação de toda e qualquer construção teórica. A expansão referida na obra, sua referência cósmica, contrasta com a contração que ela efetivamente encarna. Tracionadas, as paredes tendem a se arrebentar e a se abalroarem. Mais uma nota sobre o impulso em direção ao movimento sendo refreado por uma força contrária. Embora o

    equilíbrio seja tenso, e a corda de cobre retesada assemelhe-se à de um instrumento, tudo indica movimento. A sala é fixa, pensamos. Mas não é bem assim. As estrelas são que, a distância, parecem imóveis. E foi justamente sua imobilidade quem nos ensinou detalhes acerca da rotação e translação do nosso planeta. A sala se movimenta, está viajando num espaço além do espaço imediato daquele definido pelas quatro paredes.

    Nada é tão simples, dizia. Como clamava Candeia nos primeiros versos do seu Preciso me encontrar (Deixe-me ir, preciso andar), depois de algum tempo de haver concluído o curso, o cinema não mais satisfazia Clima. A rotina, as conversas, a prática, tudo começou a lhe parecer menos intrigante que o retrato de Joseph Beuys, desconhecido até aquele momento, maquiado com folhas de ouro, carregando ternamente uma lebre morta no colo, durante sua ação Como explicar pinturas para uma lebre morta, foto publicada num jornal por ocasião da morte do artista alemão. Aí, acompanhado do irmão Paulo, vieram as idas à Bienal de São Paulo, o acompanhamento de cursos como o de Zé Resende, o estudo de artistas especialmente os ligados à Arte Povera, os primeiros projetos, os inesperados aceites de museus e galerias institucionais para a realização de trabalhos e exposições, o contato com pessoas e grupos que eles não conheciam. Naquele princípio da década de 1990, quando o mercado não era tão atuante, o percurso por dentro das instituições era um dado natural, o que não significa que eles não se surpreendido com a enorme área que o Museu de Arte Moderna de São Paulo destinou à sua exposição Entre o inato e o adquirido. Quando se deram conta, eram tratados como artistas, com todas as prerrogativas garantidas a essa posição, mesmo que para isso, como aconteceu quando da visita de Marcantônio Villaça, na altura ainda colecionador, fossem obrigados a forjar um ateliê no próprio apartamento. O relativo e repentino sucesso foi subitamente interrompido pela parada do próprio Clima, lembrando uma passagem de um de seus artistas favoritos, o lendário Ismael Silva, que, ao escrever os dois primeiros versos de um de seus mais famosos sambas – Nem é bom falar (Nem tudo que se diz se faz; Eu digo que serei capaz), deixou-o cinco anos de lado por não saber ao certo o que seria isso que ele dizia ser capaz. Coincidentemente, o mesmo tempo que Clima levou para retomar o trabalho artístico.

    Há um lapso de quase sete anos entre a exposição individual de Clima, em 1995, no Centro Cultural São Paulo, dentro do programa de Individuais Simultâneas, e a mostra Agosto, já em 2002, que teve lugar na Galeria Baró Senna. Nesse meio tempo, contudo, contabiliza-se participações em mostras coletivas além da realização de alguns filmes. Complementando isso

    tudo, o período marca o encontro do artista com o músico Romulo Fróes, na altura assistente de Nuno Ramos, uma reunião que num futuro próximo reverteria em parcerias com os dois e em duas frentes: música e cinema, além de devolver Clima para a trilha das artes visuais.

    Pelo que foi apresentado até agora, incluindo aí os comentários a propósito de aspectos de obras específicas de Clima, o problema do movimento lhe é basilar; a dialética estabelecida entre o impulso dinâmico e a dificuldade de vencer a força inercial aplica-se a todos os corpos, nomeadamente ao homem, para quem o desejo de se elevar é a marca constitutiva. Qualquer movimento nos é dificultoso, assim como seu contrário não nos é uma condição natural. O fato é que tentamos extrair força dos elementos e da nossa relação com o mundo físico para nos deslocar – não é essa a pretensão contida na famosa frase de Arquimedes Dêem-me um ponto de apoio e eu levantarei o mundo? --, projeto que esbarra nos limites do nosso conhecimento, na nossa incapacidade de percebermos a contento as leis que regem o universo.

    Agosto, mostra de 2002, marca a volta do artista agora senhor de um caminho singular, cuja profundidade se revelaria nesta como em produções futuras. A exposição compreendeu duas séries de trabalhos, um conjunto de três peças escultóricas compostas por pedras e carrinhos de mão, além de uma pequena série fotográfica. Dispostas pelo espaço da galeria três grandes pedras rosadas, três grandes paralelepípedos, dois deitados e um de pé, juntavam-se às paredes do espaço expositivo, cada um deles prensando um carrinho rudimentar, desses de tração animal mas que ainda hoje vemos sendo utilizados por catadores de lixo, entre outras pessoas que conquistam arduamente sua sobrevivência à custa de um desgaste físico brutal. Semiesmagados contra a parede, os carrinhos, posicionados mais ou menos verticalmente, um arranjo calculado pelo artista como modo de acentuar sua fragilidade e garantir proximidade com o corpo do visitante, ao passo que nos faz lembrar o grande esforço que demandam por parte de quem os conduz, estão presos, enredados, como um inseto que se debate inutilmente nas malhas invísiveis de uma teia de aranha, ou nem isso, como coisa definitivamente abatida. Não importa a ancestralidade do carrinho, prova de que a séculos o homem vem lutando contra a imobilidade, na razão em que busca ampliar seus territórios, facilitar seu trânsito alargado pelo planeta. Aqui mesmo a energia potencial acaba suprimida pelo imperativo da pedra, e o curioso, o intrigante, é que, como se deduz de seu acabamento, são pedras esculpidas, toscamente lapidadas. O homem contra o homem. Seja o que for, tem-se aqui a pedra com sua postura sólida e hierática, afirmando sua presença duradoura, aquém e além da duração da espécie humana.

    A série fotográfica, igualmente sombria em seu resultado, vale-se de estratégia homóloga na medida em que retira sua força da colisão entre dois elementos, uma lição proveniente do cinema, mais precisamente do processo de edição de imagens, ofício que por algum tempo o ocupou em tempo integral. O formato horizontal (60 x 120 cm) recupera a ideia de uma paisagem, da relação corporal que mantemos com o mundo quando nosso olhar, variando da direita para a esquerda e vice-versa, inventariando-o, pesquisando-o, colhe-nos de volta uma maior ou menor sensação de esgarçamento. No caso uma paisagem densamente escura e que portanto é infinita. Duas cenas, duas imagens, dois clarões, rompem o negro goeldiano. São elas um cachorro vira-lata e uma fogueira. Ambos vistos de cima, registrados por um olhar que avança pelas trevas tateando-a, como que sopesando seus mistérios. Do lado esquerdo da primeira foto, admitindo-se a direção da esquerda para direita como natural à leitura, vemos uma fogueira viva; uma fresta momentânea aberta na noite, uma combustão intensa, alimentada por um monturo de sabe-se lá o quê, ilumina a escuridão ao mesmo tempo que a aquece. Separados pelo preto mais estrito chega-nos, à direita, a imagem de um cachorro sem dono; um ser vivo, miserável, é verdade, mas digno, com sua pelagem curta íntima da noite, confundida com ela e que abruptamente, talvez surpreso, irrompe o campo do observador/fotógrafo, este sim o invasor. Já a segunda foto começa pelo cão visto a distância, de corpo inteiro, olhando-nos (nosso ponto de vista coincide com a do fotógrafo) tanto quanto está sendo olhado. Ao seu lado uma mesa (?), uma dessas malbaratadas mobílias urbanas cuja existência nos é indiferente. Segue-se o intervalo em negativo e chega-nos novamente a fogueira, agora praticamente reduzida aos seus despojos, ao crepitar de uma pequena chama. De tudo sobra como notável a presença persistente da vida, mesmo que numa dimensão apequenada, evanescente, rente ao chão.

    Fogueira e cachorro são arrolados numa mesma sintaxe; irmanam-se na medida em que ambos rompem a capa da noite, mas é fato que a presença de ambos, lado a lado, têm a força de um enigma. Por que estão juntos? Não sabemos. Resta-nos conjecturar sobre a razão dos acontecimentos, os desastres que, não obstantes iminentes, não adivinhamos. Esquerdo (2007), obra apresentada no Centro Cultural Maria Antonia, encena esse problema. De fora, antes de se atravessar o batente situado no meio da parede, a sensação era que a sala estivesse desocupada. Entrando, o visitante era surpreendido por um aglomerado de cristaleiras de madeira atracados entre o teto e a parede às suas costas, trespassados entre si e prensados nessa situação periclitante, sob o risco de um desabamento estrepitoso, com

    vidros e espelhos e madeira partindo-se e se estilhaçando. A fixação dessa nuvem insólita e pesada de objetos era obtida por dois feixes de hastes metálicas que, apoiadas em dois macacos mecânicos, desses ordinariamente empregados para a troca de pneus, despachavam-se como raios, como dois pontos de fuga que nesse caso tem a função de distribuir o peso do conjunto. A massa da peça dissolvia-se em linhas e volumes leves, acristalados, nos reflexos produzidos pelos espelhos. A promessa do desastre, é claro, não se cumpria, mas o resultado comprovava que a fruição estética é uma espécie de momento especialmente agudo e que a desorganização das sintaxes as quais estamos submetidos empurra-nos para a beira do abismo.

    Há uma ordem que não se revela e à qual nós persistentemente tentamos nos engatar. Para Clima, leitor compulsivo de todo o material de divulgação publicado em nome da ciência, que dele retira o mesmo prazer de um espectador interessado pelas explicações cristalinas que nos oferece o Discovery Channel, esses livrinhos que explicam em versão pedestre as conquistas das ciências, da física de Einstein e da teoria Quântica à teoria das Catástofres, conseguidas nos altos extratos intelectuais, funciona como espécie de consolo. O debate prossegue, e qualquer notícia de que haja mesmo uma lógica nos fascina.

    O importante é, tanto quanto possível, mudar o ponto de vista, contemplar as coisas sobre outro ângulo, para que o mundo, quem sabe, desvende-nos sua lógica. Apostando suas fichas nesse procedimento, nosso artista rendeu sua homenagem ao polonês Nicolau Copérnico, o homem que, mirando as estrelas, ousou contrariar Ptolomeu, o genial autor de uma carta celeste sobre o movimento dos planetas baseada naquilo que via, ou seja, entendendo a Terra como centro do sistema. Copérnico, desconfiando de seus olhos, propôs, em lugar disto, uma outra carta celeste, fundada na ideia de que o Sol, um lugar que ele só poderia visitar em pensamento, era o ponto central do sistema.

    Copérnico I: Paisagem com figura, filme realizado em 2005 com Daniel Augusto, também integrou a mostra Metade céu, metade terra. O filme nos traz uma mulher pedalando uma bicicleta. A bicicleta está situada na clareira de um bosque, ligeiramente suspensa do solo. Ao invés de se deslocar pelo chão, o movimento produzido pela mulher, ao mesmo tempo que faz girar em falso as rodas da bicicleta, é transmitido através de um conjunto encadeado de engrenagens, correia e motor para uma roda maior, achatada como as rodas do veículo, situada mais ao alto com uma inclinação da ordem de 40º em relação ao chão e fixada num eixo que vai ainda mais alto do que ela. Acompanhando o movimento desse eixo, a grande

    roda gira no mesmo ritmo ditado pela ciclista. De início a câmera limita-se a captar a distância a imagem da mulher pedalando na paisagem. A mulher, longe de parecer comprometida com o papel de agir como dínamo do sistema, pedala com a desenvoltura de quem está passeando pela paisagem, sensação reforçada pelo som do chilreio dos pássaros e do farfalhar das folhagens. As tomadas privilegiam a relação entre as rodas se movimentando, a sincronia entre as rodas da bicicleta, a roda intermediária que, através de uma correia, transmite o movimento para o eixo em que está fixada a roda maior, o movimento da roda maior. As mudanças de ângulos vão se sucedendo lentamente, sempre ao sabor do ritmo imposto pela ciclista, quando então apanha-se a grande roda por cima, deixando ver que nela existem duas câmeras engastadas: uma no seu anel periférico, descrevendo uma translação em torno do eixo, outra no próprio eixo em que ela está presa, descrevendo um movimento rotativo. Repentinamente o conjunto se afigura como leitura dos movimentos que a Terra realiza em torno de si e do Sol. A alteração da narrativa, não do seu ritmo, mas da sequência de imagens produzidas por câmeras exteriores ao processo, chega num terceiro momento, quando entram em cena as imagens produzidas pelas duas câmeras engastadas nas engrenagens. Como uma roda-gigante, a câmara posicionada na periferia da roda maior oferece-nos um plano contínuo em que céu e chão vão se alternando, como se não houvesse separação entre um e outro. Já a câmara posicionada na extremidade do eixo, como um olho monotonamente circular, vai-nos mostrando obsessivamente o que acontece à volta, girando sempre com a velocidade imposta pela ciclista, a mesma ciclista que ele, em seu deslocamento uniforme, alcança, ultrapassa para mais adiante tornar a alcançar. Quanto à trilha, troca-se os sons naturais pela melodia das Cartas celestes, de Almeida Prado, a série obstinada, percussiva, obtida nas teclas de um piano. A circularidade como tema, a sugestão que o movimento do pé ao redor do eixo de um pedal de bicicleta desencadeia um movimento espiralado e ascensional, que reverbera até as regiões mais elevadas.

    Se é verdade que tudo tem um ritmo, haveria a possibilidade de um uníssono, uma harmonia entre o ritmo do mundo e o nosso próprio ritmo, um meio de desvendar os segredos do mundo? A compreensão de Clima vai ainda mais longe, embora sob a forma de uma outra pergunta: o mundo gira porque somos nós que, com nossas ações elementares, o pomos a girar? Com os nossos afazeres triviais, com a nossa indiferença aos grandes temas, com a nossa humildade e arrogância, como os vira-latas que fulguram na noite, somos os responsáveis por tudo? Embora colados ao chão, é mesmo verdade que nossa voz pode alçar-se assim, tão alto?

    Aula de esfera (2005) o conjunto de trabalhos em papel produzidos a partir de acrílica, betume e resina acrílica, todos com a mesma dimensão, 115 x 78 cm, problematiza as formas de representação, esta prática que se configura simultaneamente como nossa maior virtude e nosso maior limite. As duas folhas de papel dispostas uma sobre a outra, pintadas homogeneamente de cobre, compõem uma superfície viva, um campo condutor e captador de energia por discreta que ela seja, como os meridianos e paralelos, as linhas obtidas por seções na esfera terrestre e que atravessam o espaço real sem quem tenhamos consciência delas. As curvas brancas e abertas que fendem o campo avermelhado parecem manifestações palpáveis dessas construções imaginárias, como se nesses papéis as representações efetivamente ganhem matéria, uma sorte de mapeamento mais concreto, ainda que inevitavelmente parcial, uma vez que é mesmo impossível obter a completude do objeto representado. Nelas o papel, esse material simples, comum como as roldanas, cabos, macacos e pedras, entre outros artefatos comumente empregados por Clima, consagra-se como chão fértil, o terreno onde medra a nossa imaginação.

  • Apresentação de um amigo: Clima Tales A.M. Ab’Sáber

    Canalha !

    Comentário de aluna da Escola da Cidade, quando da performance de Clima “Eu sou Geraldo Pereira”

    1: Noite

    É próprio das crianças acreditar que a noite é povoada de seres fantásticos. Nas origens de nossa hiper modernidade artistas sensíveis como Maupassant anotaram o momento exato em que a noite perdeu todo o mistério. Alguns anos antes os românticos alemães acreditavam que o gênio trabalhava à noite, e que o espírito elevado era irmão do sonho. Como seria possível comparar esta experiência com a da arte moderna de Monet e Lautrec, que já conhecia a noite

    como espaço de continuidade feérica do dia? Naquele tempo as estrelas brilhavam mais que o sol; e a balconista e a prostituta, tão próximas à alegria do consumo e da circulação monetária, ocupavam o lugar da esposa na nova ordem da noite.

    A organização de nosso mundo há muito já equacionou a noite como hora privada de reposição das energies para a mera reprodução totalitária do dia, ou então como espaço contido do lazer, onde pessoas, sem experiência, trocam experiências. Vista deste ponto de vista a noite é o lugar de nossa boemia administrada, do consumo de diversão e do sexual onipresente, mas também de pouco valor simbólico, como tudo aquilo que se torna indústria. Para os que só conhecem a indústria da noite, ela é apenas a continuidade embebedada do banal e cada vez mais impossível trabalho do dia.

    No entanto há uma hora em toda noite que, aquele que fica acordado – pensando nas batalhas de papel e aço do dia que virá, mas nunca chega, ou escrevendo o texto que necessita atravessar uma noite para guardar a assinatura de alguém – aquele que não pode dormir reconhece prontamente: a hora secreta em que olhamos do alto para a cidade que dorme e sabemos que, enquanto sós, deeve haver um outro, sobrevivente da noite que, como nós, no extremo do tempo, vive o vazio sem objeto, prenhe de horizontes contidos, de uma opaca experiência de nossa humanidade, que só aparece neste momento, diante do outro da noite. Como se sabe, os cineastas modernos se interessaram muito por este ponto suspenso e negativo no tempo e no espaço de nossa experiência do mundo.

    Ainda não ocorreu a ninguém escrever uma história da noite, embora algumas páginas importantes desta história já tenham sido escritas. Os cachorrinhos, ou, melhor dizendo, os vira-latas nobres, que Eduardo Climachauska fotografou e montou nos finos painéis negros de sua exposição Agosto (2002) surgiam exatamente daquele momento de anulação do ultimo humano na noite, na hora em que o ultimo de nós dorme. Eles traziam o segundo exato, marca essencial da fotografia, em que à noite nos desidentificamos de nosso mundo e suportamos o vazio que ele absolutamente desconhece. Os animais lembravam também o fato de que este lugar possível do não afetado, do avesso a todo excesso, da possibilidade de ficarmos sós, em suspensão objetiva – em um tempo em que tudo está em contato no brilho excessivo do sempre exposto – este lugar potencial, caverna da rua, caótico e enegrecido em que os cães da noite vivem, este ultimo lugar neste tempo limite, apenas fala a nossa humanidade na forma do mero sobrevivente. Tais manchas vivas no escuro evocam o sobrevivente universal, mas tão

    brasileiro, ser que resiste sem saber como a um mundo já acabado, cão vira-lata e a intimidade desértica de sua noite.

    De fato, esta noite densamente negra é radicalmente não metafísica: lixo, bueiro, o fogo de algum mendigo ausente, o cão. Essa constelação opaca, esta seriação de coisas, poucas coisas, quase nada, que são apenas as coisas que são, sem nenhum contexto, na hora em que o mundo não está, é caverna do real em nosso tempo, o que, como já foi dito na luz de um filme ou na chama do filósofo, é um deserto.

    Quando nos identificamos com aqueles lindos animais, miseráveis, resilientes, radicalmente marginais, mas tão potentes na sua sobrevivência avessa ao nosso próprio mundo, descobrimos no não humano e no momento em que o mundo se desarma com a noite algo de nossa própria antiga humanidade, ameaçada. Ela só parece mais verdadeira diante do ato desrespeitoso de sobreviver, de manter-se íntegro no espaço social esgarçado, que apenas existe, mas a muito não é para nós, nem para ninguém.

    O sobrevivente íntegro a toda essa violéncia imaginável, e sem destino, no mundo que se tornou coisa, o mero sobrevivente, no mero mundo, o corpo do cão, é o nosso melhor auto-retrato. Ele brilha uma esperança corpórea, estranha esperança sem redenção, em uma noite que se tornou tão verdadeiramente escura quanto a antiga, e ainda humanista, noite dos solitários, bêbados, guarda-chuvas, cães e urubus, de outros tempos. Não deixa de fazer parte de tais obras o fato de que o artista que olha os olhos em chama do cachorro, seus pêlos que mimetizam a coisa da noite, o asfalto da noite, estava lá, no tempo extremo.

    Deste modo, na mesma exposição sensível, desafiadora do insensível, as grandes esculturas de pedras baianas cor-de-rosa que esmagavam as nostálgicas carrocinhas do interior, que ainda tentavam sobreviver irônicas, como as velhas tias, já sem função histórica, sujeitos desejantes sem nenhuma teleologia, repunham em outra configuração, agora constrangida, o problema do que é vivo e do que equaliza tudo à mesma massa informe que é a potência de nosso tempo – a noite ou o lixo da rua – Frente a elas, ressalta a idéia de como as qualidades sensíveis estremecem e tendem ao passado impossível, diante do presente inviável. Também, em um passado mais animado que o nosso tempo, o poeta moderno flagrou a história entre a masssa do bonde e a frágil carroça, figurando na imagem minima daquele impasse um tanto de nosso lugar inviável nos tempos modernos.

    Este dia travado das carrocinhas, entre a massa inominável que ameaça a resistência de todo material, e aquela noite densa, nas quais emergiam os únicos melhores homens, os cães da noite, resistindo com elegância ao peso obscuro e total do que não é, criam um diálogo impossível entre o corpo integro, o tempo impiedoso, o passado constrangido e a noite suja e real, que, desencantada e material, ainda guarda os segredos do mundo que acabou.

    2: Samba

    Conheci meu amigo Clima como as crianças de antigamente encontravam seus melhores amigos: na rua. Experiência extemporânea, que nos trouxe de volta a memória perdida, pelo trabalho que tende à coisa, das finas potencias da boemia e da amizade, quando assumidas plenamente.

    Andando pelas duas ou três quadras de Pinheiros que circundam meu consultório, durante meses eu via de vez em quando aquele moço, alto, com seus precoces cabelos prateados de europeu, vagabundo e elegante. Uma vez o vi em uma padaria, outra passando, tendo a frente de si uma meta clara e muito pessoal, que o movia, outra vez e ainda outra vez, sentado sozinho em uma mesa de um bar de esquina, com uma cerveja e uma cachaça solitária.

    Por vezes um grupo de amigos podia se unir a ele naquela mesa, mas, imagino, sua condição de presença ali era sempre um estar dentro, mas igualmente, um sempre estar fora. Alguns anos depois ele me diria, depois do quinto whisky: “Eu sempre escolho um bar de esquina, onde possa sentar e ver a encruzilhada, tudo que acontece. É a posição do cachorro, e, nos filmes, a do matador…” Nessa esquina, que ele vive buscando pela cidade, o centro da sua atenção, durante a noite, cai no ponto em que habita o demônio, o exu mensageiro, o tranca ruas: o meio do asfalto.

    Nós, que conhecemos a cidade antes da radical cisão social iniciada na década de sessenta, guardamos em algum lugar a tecnologia humana, nacional, da amizade e da rua. Esta arte, hoje, nas grandes cidades, está extinta. Ainda me lembro do prazer de um ou outro amigo mais velho quando, já há muitos anos, ainda podíamos ir de bar em bar, pelas ruas do centro boêmio, desejando o mundo e seu pensamento. Eu havia esquecido o lugar da noite, da bebida e da amizade na constituição do pensamento e de nossa possibilidade de vida

    subjetiva. O pequeno burguês dorme mal, e pesadamernte, para tudo que não seja trabalho e conquista na desgraça de seu próprio mercado.

    Com a amizade, a cachaça e o whisky restaurados, depois de dez anos de esquecimento, foi curioso ser apresentado ao samba, depois de passar praticamente a vida alheio à materia e, provávelmente, estar definitivamente velho para tanto. Não sei como chegamos ao asunto, mas quando percebi, eu queria saber mais e mais sobre a velha arte brasileira. Clima, de tão grande conhecedor da história do samba e de todo sambista, de tanto ouvir o tributo final de Batatinha, e os três únicos sambas, obras primas, de Bororó, de tanto prezar o espaço aberto da rua e da noite, deveria mesmo ter se tornado o sambista que ele também é. Com ele, um grupo de homens banalmente aburguesados redescobriu o indestrutível pacto de vida e forma do samba brasileiro, sobrevivente da noite, experiência estética e humana alta, daqueles que não tiveram nenhum valor no andamento geral da história de nosso pior.

    Sendo Clima compositor para o neo-samba de Romulo Fróes, parceiro de Nuno Ramos em sambas novos, mas de estilo velho, bem como parceiro do artista em filmes-samba, para mim não foi surpresa ver um imenso samba exaltação do amor – e creio que só mesmo em samba isto é viável como verdade – composto pelos dois ser gravado por Gal Costa (Jurei), e fazer um suave sucesso no Rio de Janeiro e na Bahia, terras de terreiros, morros e pandeiros. A profunda iniciação de Clima no samba talvez lhe seja mais cara e encarnada do que sua própria relação, turbulenta, com as artes plásticas.

    Pois o samba ele sempre o leva consigo, e nada lhe custa. Diferente das revistas e livros de arte contemporânea e das exposições classistas, que uma vez por mês, como cachorro vagabundo e de forma despercebida, ele lê, em alguma livraria chic, ou vê em alguma galeria pela qual passa voando, deste mundo muito chic que é o nosso.

    3: Arte

    Um dia, no meio da semana, Clima me liga e me convida para acompanhá-lo na montagem de uma obra, que ele fez para uma exposição coletiva em homenagem a Marcantônio Vilaça, que tomaria o MAC, na Cidade Universitária. É curioso os elogios que os comerciantes tem recebido no esquisito mundo da arte contemporânea no Brasil. Talvez isto seja fruto dos seus nomes pomposos expostos em letras de açø na frente de seus prédios tão modernos. Esses

    vendedores e negociantes realmente se acreditam melhores do que os outros vendedores deste mundo de vendedores. Eles ajudam os artistas a terem seus nomes expostos nas portas e nos vidros de suas lojas, e assim poderem vender a sua arte e sobreviver adequadamente neste mundo. Sem eles, certamente, não haveria mais arte a venda.

    Como tudo aconteceria muito cedo, na hora em que a noite inaugura o dia, às cinco da manhã, eu podia acompanhá-lo e estar, no horário, em meu trabalho, a minha própria loja. Na Cidade Universitária vazia da madrugada não se via uma alma viva. Até que ouvimos, vindo do horizonte de alguma rotatória, o caminhão que trazia a material da arte. Tratavam-se de centenas de quilos de grandes ossos, descarnados e cortados, ossos de boi.

    Uma montanha de ossos cortados como cilindros, de um diâmetro razoável. Eles seriam colocados em um grande triângulo, uma cunha, uma pirâmide cortada ao meio e aparada, de uma grossa lona transparente, que se encaixaria, muito grande, em alguma parede do museu, criando uma rampa, uma casa de ossos. A coisa toda tinha uns três metros de altura, por mais três de largura e uns quarto de profundidade e, com os dias, a materia orgânica e viva ali condensada se manifestaria. Após uma semana o grande saco transparente chovia por dentro.

    Mas antes do Clima carregar a ossaria para o seu continente, sarcófago e vitrine, dentro do museu, um fenômeno nos surpreendeu. Gradualmente, junto com o amanhecer, foram surgindo cachorros. Vindos de todas as direções eles chegavam desconfiados, mas hábeis na aproximação do humano. No auge do encontro, antes ainda de qualquer pessoa aparecer, contamos dezessete cachorros, dos mais variados formatos. Todos, interessados, fortes e simpáticos, se encontravam no fim da noite, proporcionada pelo Clima.

    Este trabalho teve o título de Herói.

    4: Céu.

    Muitas coisas bonitas podem ser ditas sobre Metade céu, metade terra, a exposição de setembro de 2005 de Clima. Mas o que eu prefiro pensar é que ela revela, até segunda ordem, o outro lado da moeda do mundo, o céu sublime das razões modernas, a elegância rigorosa do vagabundo.

    A escultura do Escorpião, por exemplo, fina, transponível, desenho do espaço, como se tivéssemos soltos em sua própria constelação, tira o peso de um mundo para lá de pesado. Não é por acaso que nela os tirfors, mini guindastes manuais que podem atrair um caminhão, que figuram, como coisa mesma, a mecânica irregular das estrelas, estão em condições de atrair, e arrebentar, as próprias paredes da mínima galeria. Um pouco de força – e todos desejamos mover aquelas alavancas – e as paredes se romperiam. Tudo isso diz respeito acomo ter força para conter a velha invasão do mundo, e desenhar um mundo de razões plenas, que se contenham em suas próprias linhas, de forças necessárias. Talvez isto explique também os desenhos de cobre, objeto misto entre material, luz, minério e papel: em uma mineração do mundo, um gesto puro de luz deseja sobreviver ao que lhe é inteiramente alheio. Uma aula de esfera.

    Mas estas heteronímias onde a razão irônica tenta se equilibrar aparecem aqui como necessárias uma à outra. Tudo se torna por fim visível, sobre esse jogo de necessidade e forças, constância e salto, repetição e equilíbrio, no video ícone de Clima e Daniel Augusto: a iconografia cifrada da arte ocidental, deslocada e condensada, do Renascimento a Duchamp, sustenta o salto nas razões do fluxo, do sem centro, do infinito movimento nos limites do informe. Mas sabemos que toda agitação dos pensamentos sem ponto fixo de nosso tempo é apenas um truque, plenamente revelado pelo dispositivo. Tal mundo insólito é produto da acumulação histórica de uma ordem de razões que o sustenta, a sua metafísica de fundo, teórica e material, sem a qual nada de nossas agitações do espírito, aparentemente tão livres, se daria. Afinal, quem trabalha para girar a máquina de nosso aparente descentramento?

    Certa vez, Clima escreveu um pequeno texto em que comparava e tentava compreender as posições estéticas e humanas dos maiores sambistas brasileiros, Nelson Cavaquinho e Cartola. Para ele Nelson era o homem que desaparecia na rua e na noite, nos botecos e puteiros, o homem que pisa o morro onde sabe que morrerá e será enterrado. Seu universo é o chão, a terra, o concreto de seu violão e de seu corpo, de seus pés sobre as folhas, a densidade real da tristeza, e a morte. Tratar-se-ia de uma divindade ctônica, encantatória desde o atrito do real das coisas: corpo, vida, desencanto, morte.

    Enquanto a alvorada no morro de Cartola, suas rosas que falam seu perfume, seu ponto de vista sublime da forma poética, sua recusa apolínea ao amor proibido, sua exaltação delicada

    da vida, indicavam todo um movimento aberto ao alto, desde o ponto de vista do elevado, o equilíbrio do sublime, o clássico, o céu. No Olimpo da forma de Cartola, o mundo ganha a luz de sua criação, de sua emergência no necessário, onde seu reflexo se faz exato na forma.

    Por fim, entre o céu de Cartola, e o seu Nelson Cavaquinho vestido de Hades, Clima posicionou o movimento de fuga e ligação do elevado com o terreno. Este seria o lugar de Zé Keti, entre os clássicos de nosso samba, homem de grandes maravilhas e grandes baixezas, mas, mais simplesmente, homem de ligação entre os mundos, do movimento pela vida: diz que fui por aí.

    Tudo isto é muito sugestivo da metade céu e da metade terra do próprio Eduardo Climachauska. Assumir o apelido que os amigos lhe deram, Clima, talvez também diga respeito a esta luta entre o concreto e o sublime que se verifica em seu trabalho até o momento. Nada é mais determinante da vida e mais real, geográfico, do que o clima, nenhuma dimensão de nossa existência material é mais aberta ao tempo, mais histórica, e vem tão do alto, do ponto de vista do todo, do que o clima.

    Eu mesmo, de minha parte, quis escrever este texto do ponto de vista do terceiro personagem, o vagabundo, o cachorro vira-lata, o exu mensageiro. Do ponto de vista daquilo que os críticos de arte de hoje gostam de desprezar, e os psicanalistas preferem acentuar: o corpo vivo, o ser encarnado, o dado biográfico, ali onde ele se mistura às condições de forma e do pensável. Quis escrever sobre a arte daquele Clima que primeiro conheci, nas ruas mais comuns de São Paulo, e com quem muito tenho aprendido. Diz que fui por aí.

  • Embaixo a vida, metade de nada Guilherme Wisnick

    Há uma engenharia secreta governando a idéia que temos das coisas. É como se a “máquina do mundo” fosse de fato impulsionada por um Deus (mulher), numa operosidade tão despropositada e espontânea que desarma qualquer suspeita de intencionalidade a governar o seu funcionamento. Nós, ao sermos engolfados nessa “estranha ordem geométrica”, somos expostos à vertigem de suas lentes divergentes, que nos descortinam, num relance, a unidade curva do universo: árvores curvas, céu curvo, um campo de terra batida inclinando-se indefinidamente. Porções da esfera imperfeita que sabemos existir sob os nossos pés, e que de repente deixamos de pisar.

    Mas não é apenas como forma que esse contorno abstrato se insinua. Dentro da máquina em que nos percebemos capturados, são as forças invisíveis que desenham os seus limites: a energia estacionária e o impulso de movimento contínuo. Nesse cruzamento, entrevemos os abismos de um mundo todo fendido por dentro, como se uma tela cubista fosse levada ao espaço pela engenharia mecânica de Leonardo da Vinci, ou de Marcel Duchamp. Então, a cena bucólica inicial (“Paisagem com figura”) se dobra sobre si mesma, para fora da vida. Não há

    escape possível nesse circuito fechado, só um constante repuxar de forças em tensão, “escorpião encravado na sua própria ferida”. Aqui, a harmonia das esferas foi envenenada, é um anti-mecanismo. E a seqüência de rodas e catracas girando, como no movimento de um projetor, multiplica a sensação de que a realidade é construída, de que a coisa é idéia. Mas a “idéia” nos escapa. É brumosa, multi-facetada, anti-platônica.

    Na convergência dos três trabalhos (em mídias diferentes) expostos por Eduardo Climachauska, algo tenta se recortar na opacidade de uma superfície inabarcável, como iminente estouro de um foguete a romper a camada atmosférica. Que, imediatamente, volta a enterrar-se no próprio umbigo, na “treva espessa que entre os raios de sol inda se filtra”.

     

  • Baião do samba Clarissa Diniz

    Pensar o espaço ao prescindir do plano é como pensar a linguagem à revelia da significação. Com Lygia Clark, a arte brasileira já sabia que “o plano é um conceito criado pelo homem com um objetivo prático: satisfazer sua necessidade de equilíbrio”[1]. Com Hélio Oiticica, também sabia que a obra deveria fugir “à busca da interpretação. Todas essas são coisas velhas: a interpretação, a tentativa de buscar significados e de vivenciar estruturas significantes, todas essas coisas são coisas superadas (...).”[2]

    Abster-se de ancoragem – fosse plano, fosse significado – era exercício de libertação e, ao mesmo tempo, de coragem, pois há sempre algum tipo de gravidade que tende a tudo sedimentar: havendo tanto magnetismo ao centro, o impulso para as bordas é sempre um ato de força.

    “No princípio, era o ato”[3]. Do princípio verbal bíblico (“no princípio, era o verbo”) ao princípio de ação proposto na literatura de Goethe, não teríamos apenas uma questão de tradução (verbo = ação), mas uma demarcação de diferença (verbo x ação). O agir se dá, portanto, para além da teia de sentidos da linguagem: o ato instaura um espaço-tempo próprio – inarrável –, que o verbo anseia restaurar. Também para Lygia, “o instante do ato não se renova. Existe por si mesmo: repeti-lo é dar-lhe um novo significado”[4]. Há, na ação, uma possibilidade de existência e de contentamento: a instauração é o horizonte da utopia.

    Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bim bom / Bim bom bim bim bom bom / Bim bom bim bim bom bim bimÀ expressão (vocalizada) de João Gilberto – experiência refundada a cada canto –, e apesar de sua assertiva de que “é só isso o meu baião / e não tem mais nada não / o meu coração pediu assim, só[5], teimamos em agregar planos significantes. Como aponta Lorenzo Mammi, não é “por acaso que os únicos dois textos musicados do autor se baseiam sobre assonâncias sem sentido: Bim Bom e Oba-la-lá[6]. Há um campo da linguagem que, contínuo ato de instauração, se esquiva à significação – nele, ironicamente, interpretar perde o sentido, e se torna anteparo.

    Arquitetura amplificada. O Centro Cultural São Paulo se fez com menos paredes que de hábito – poucos planos e muito espaço: “com o Centro Cultural, nós estávamos projetando um espaço de encontro o tempo inteiro. (...) Queríamos a redução dos controles. Lutávamos pela liberdade, que quase não tinha sobrado nesse País. Queríamos uma arquitetura que permitisse que os transeuntes, de repente, se perdessem e caíssem aqui dentro, sem porta principal, sem saguões incríveis e nem amedrontamento”[7]. Atuar libertariamente no CCSP requer, assim, uma espacialização feita no tempo, não no plano; demanda outra habilidade de equilíbrio. Como percebia Lygia Clark: “o espaço arquitetural me transtorna. Pintar um quadro ou fazer uma escultura é tão diferente de viver em termos de arquitetura. Agora, não estou mais só. Sou aspirada pelos outros. Percepção tão impressionante que me sinto arrancada de minhas raízes. Instável no espaço, parece que estou me desagregando.”[8] Aspirada pelo outro, desenraizada, instável, desagregada: atuar no vazio é o máximo do equilíbrio.

    Acionar. De alguma forma, a Linha Orgânica (1954) de Clark é como o Bim Bom de João Gilberto: ambos transformam o espaço do entre, do encontro entre dois “planos”[9], em protagonista. Percebê-los é encaminhar o olhar/escuta do centro à borda, revelando as fissuras do encaixe: vazio aberto à experiência da dissonância e do recomeço.

     

    Essa concepção de conjunção – que conserva sua dimensão não matemática pela incorporação da experiência, do espaço-tempo em que se dá – atravessa o trabalho de Eduardo Climachauska. Já em trabalhos “bidimensionais” como Metade terra (2005) ou Aula de esfera (2005), o plano geométrico se apresenta como espaço vivenciado, revelando linhas orgânicas (Aula de esfera) ou percursos (incisões) temporais sobre o plano, que então se dilata em espaço – e seus vazios. A partir desse momento, na obra do artista, a concepção espacial se complexifica para além da ideia de plano ou composição (como, mais tradicionalmente, há na série de pinturas Rua Belgrado, 2000-2008), instaurando uma espacialidade relacional que Climachauska realiza em instalações como Escorpião... (2005), Esquerdo (2007), La Noche Oscura (2008), Ascensor (2008) e em Bim Bom (2010), pensado a partir do espaço do Centro Cultural São Paulo.

    Em sua obra, Climachauska percorre trajeto similar àquele – radical – de Lygia Clark entre a Linha Orgânica e o Caminhando (1963): expansão da potência (e do espaço) de ação, que, podemos vislumbrar, faz-se também no percurso de João Gilberto entre compor Bim Bom e hoje atuar apenas sobre músicas alheias, refundando – no gerúndio, tal qual Caminhando – múltiplos espaços-tempo. No princípio, era o ato.

    Assim, só. Na espacialidade e na linguagem, a questão que se coloca é, então, abrir espaço para o espaço-tempo, para a dimensão da experiência que pede uma existência ambiental, relacional, dialética. Climachauska secciona, em Bim Bom, a matéria-plano (mármore ou madeira), atravessando-a de vazio e suspendendo o tempo do ato do corte: nas peças que estiveram no CCSP, o tempo parece congelado na ação dos fixadores que, sobretudo ficcionalmente, não se sabe se afastam ou comprimem a matéria. Sem planos de anteparo – senão o chão –, o equilíbrio se faz no jogo de forças que habita o vazio. “O “vazio-pleno” contém todas as potencialidades. É o ato que lhe dá sentido”[10].

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