Gabriela Machado
Gabriela Machado
1960
Santa Catarina, Brasil
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, Brasil
A artista é formada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula, 1984. Estudou gravura, pintura, desenho e teoria da arte na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Frequentou cursos em História da Arte, ministrados pelos críticos Paulo Venâncio Filho, Paulo Sérgio Duarte e cursos de Estética e História da Arte, ministrados por Ronaldo Brito, na PUC e UNI/RIO. A poética da artista é um percurso sem ordem. Em suas telas de grande formato, a ordem se encontra no traço. Tudo resumido no gesto humano. Seu trabalho dialoga entre a linha de um braço e a linha desenhada, em constante renovação. A artista procura uma temporalidade de coloração mágica através de cores, fortes, firmes e compostas para formar um corpo natural – expressão da dança.
No ano de 2009, Gabriela Machado foi vencedora do Prêmio de Artes Plásticas FUNARTE Marcantonio Vilaça. Inaugurou o espaço da Caixa Cultural de São Paulo com a exposição Doida Disciplina (2009), curadoria de Ronaldo Brito após realizar a mesma exposição na Caixa Cultural do Rio de Janeiro e lançar um livro homônimo (Doida Disciplina, com sua produção mais recente. Em 2008, Gabriela fez uma exposição individual na Galeria 3 +1 em Lisboa, Portugal, e foi também contemplada com o prêmio Marcantonio Vilaça em aquisição coletiva da Fundação Ecco (Brasília) Em 2008 lançou um livro intitulado Gabriela Machado (Editora Dardo, Santiago de Compostela, Espanha), com um apanhado de textos críticos e imagens de diferentes fases da sua carreira. Entre as suas exposições individuais em anos anteriores destacam-se: Desenhos no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, com texto de Paulo Venâncio (2002); Centro Universitário Maria Antônia, texto de Afonso Luz (São Paulo, 2002); Neuhoff Gallery de Nova York, com texto de Robert Morgan (2003), Largo das Artes, juntamente com o escultor José Spaniol (Rio de Janeiro, 2007), Pinturas, na Galeria Virgílio, com texto de Alberto Tassinari (São Paulo, 2006); Pinturas, H.A.P. Galeria, texto Ronaldo Brito (Rio de Janeiro, 2005); H.A.P. Galeria, texto Paulo Sergio Duarte (Rio de Janeiro, 2002); Projeto Macunaíma, na Funarte (Rio de Janeiro,1992).
Teve seus trabalhos representados em importantes feiras internacionais, com destaque para Valencia Art (2009), Arte Lisboa (2009, 2008 e 2006) e Pinta Art Fair em Nova York (2008 e 2009). Também em 2008 expôs com grande repercussão e reconhecimento na ARCO’08 – Feira de Arte Contemporânea em Madrid (2008). Participações em feiras e exposições coletivas incluem outros anos na ARCO Madrid (2001/1998); SP Arte (São Paulo, 2008/2007/2006/2005); Arquivo Geral (Rio de Janeiro, 2008/2006/2004); Art Chicago (Chicago, 2004); Art Cologne (Alemanha, 2003); San Francisco International Art Exposition (NY, 2002); Desenho Contemporâneo, Centro Cultural São Paulo e Caelum Gallery (NY, 2002); Novas Aquisições Coleção Gilberto Chateaubriand, MAM (Rio de Janeiro, 1998); Paço Imperial (Rio de Janeiro, 1998); Mostra América (1995); 1ª Bienal Nacional da Gravura (São Paulo, 1994); Centro Cultural São Paulo (1993); X Bienal do Desenho de Curitiba (1991); Projeto Macunaíma, na Funarte (Rio de Janeiro, 1992/1990).
A obra de Gabriela Machado alcança gradualmente novos espaços fora do país. Além da exposição lisboeta em 2008, em 2002 a Neuhoff Gallery de Nova York inseriu o trabalho da artista em duas coletivas – uma delas, The Gesture, junto com conceituados pintores americanos como Frank Stella e Franz Kline. Apresentou seus trabalhos em Bergen, na Noruega, a convite da curadora Mallin Barth. Está presente em importantes coleções brasileiras, como as de Gilberto Chateaubriand, José Mindlin, George Kornis, João Carlos Figueredo Ferraz, Charles Cosac, Fundação Castro Maya, Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, Centro Cultural Cândido Mendes e Fundação Catarinense de Cultura (MASC), e mais recentemente, a Fundação ECCO e o Museu de Arte da Pampulha.
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10.Mai.2023 - 05.Ago.2023
Anita Schwartz XXV
A exposição Anita Schwartz XXV é uma celebração aos 25 anos de aniversário da galeria, onde essa história é contada a partir dos artistas e suas obras. A pesquisa curatorial percorreu o arquivo da galeria, fundada em 1998, em busca de imagens e textos críticos das exposições, feiras e publicações, com o intuito de construir uma linguagem possível sobre as experiências artísticas que moldaram o seu programa.
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24.Fev.2021 - 15.Mai.2021
ARAGEM
Em 2019, o Projeto Verão foi criado para idealizar novas ativações no espaço físico junto com os artistas. Um trabalho coletivo no intuito de reforçar o que a arte nos proporciona - reflexões, sensações e propósito. A primeira edição foi um acontecimento importante na história da galeria. A segunda edição tem o objetivo de trazer novos estímulos para todos, incentivando artistas, público e novos interessados a desenvolver uma relação mais afetuosa com a arte. O Projeto Verão é sempre um momento de experimentos na GAS, e agora, mais do que nunca, é essencial para trazer frescor e vitalidade à cena artística carioca.
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25.Mar.2020 - 23.Mai.2020
Para Todos os Mares
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ArteBra Gabriela Machado
https://www.colecaoartebra.com/gabriela-machado
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PINTURAS, ESCULTURAS: VOLÚVEIS E VORAZES
Há um tipo de artista que passa a vida procurando ver o mundo, de novo, pela primeira vez; para quem fazer arte será sempre reaprender a fazê-la. Ele começa por aceitar, e até celebrar, a contingência. O que vem a encontrar pelas ruas e museus, em acasos significativos, torna-se a matéria viva de sua arte. Mas cabe a ele, e só a ele, vitalizá-la. A graça dessa fluência topológica entre vida e arte, entre ser e fazer, não é concedida à toa – é preciso laborar, persistir, merecer-se eleito.
Um experimentalismo despretensioso, que pressupõe uma atitude de permanente disponibilidade, e ainda reservas consideráveis de energia plástica, atravessa a obra de Gabriela Machado desde as suas perecíveis Pinturas de Café (final dos anos 1980) até as recentes esculturas esdrúxulas. Inexistem etapas ou estudos preparatórios porque inexiste antevisão: de saída, a artista se envolve com técnicas e materiais recalcitrantes em busca de formas que parecem resistir, a todo custo, a tomar Forma. O frescor dessas descobertas, quase sempre solares, deriva, pois, de certa agonia. Só o empenho desmesurado, a imponderável disciplina do improviso, podem solucionar o dilema de cada súbito aparecimento. Descobertas só se reconhecem como tais quando as coisas, afinal, se descobrem.
Sob o fascínio de Giorgio Morandi, tão caro a sucessivas gerações de artistas modernos brasileiros, Gabriela Machado realizou nos anos 1990 uma série importante de grandes desenhos. Reaparece aí uma das questões recorrentes da modernidade plástica brasileira: como deixar para trás nosso proverbial intimismo, fruto evidente das condições privadas do exercício da arte no Brasil? Ao ganhar escala, demandar presença ostensiva, esses desenhos forçavam o corpo da artista a movimentos francos e dessublimados. Em seus momentos de rearticulação, ressurge sintomaticamente na obra o desafio da escala – tudo indica que a artista tenha que atuar, e até se perder, dentro do trabalho para que este encontre o seu rumo necessariamente imprevisível. Justo porque nasce de uma percepção nervosa, que encantou e excitou a retina da artista, o quadro deve se expandir e transfigurar-se até o limite do inverossímil. A histórica liberação visual impressionista continua a deter aqui valor de princípio. Agora, contudo, “impressiona” o corpo inteiro, adquire força motora, dimensão comportamental. Na qualidade de arte contemporânea, cada tentativa de pintura enfrenta o teste de nos convencer da potência cognitiva e imaginativa das aparências materiais em um planeta literalmente hipnotizado pelo virtual. Em tais circunstâncias, mesmo supondo um espectador avisado, ou o quadro desperta o olhar, urgente, intrigante, ou passa despercebido.
A meu ver, o trabalho de Jorge Guinle ao longo dos anos 1980 reativou nosso campo pictórico, repôs em condições contemporâneas a pergunta pela pintura. Pergunta que, é óbvio, ultrapassa em larga medida sua produção precoce e cruelmente interrompida. Gabriela Machado, entre outros, agradeceu o incentivo. Não que se debruçasse sobre as telas de Jorge Guinle, girasse em sua órbita; de fato, elas deixaram apenas rastros aqui e ali. Mas o exemplo de uma prática tão culta, livre e desinibida reautorizou uma aventura contemporânea de pintura. E, se pretendia dar sequência à tradição moderna investigativa, no caso específico da iniciante Gabriela Machado, essa pergunta renovada pela pintura haveria de interrogar a sua origem: o fenômeno da visualidade pura. A pronta reação ao estímulo óptico, após tantos anos, segue fator intrínseco ao trabalho. A tal ponto que a própria construção do quadro se confunde com o quanto de intensidade luminosa que é capaz de emitir. Cumpre assim sua obrigação precípua: potencializar a visibilidade do mundo. Repete-se a eterna exigência da metafísica ocidental: salvar as aparências. Só que aqui ela consuma algo muito diverso da manobra original platônica – as aparências, no final das contas, apenas participavam das essências. Dispensemos, por insignificância, o uso corrente da expressão degradada em regra de ouro da hipocrisia. Salvar poeticamente as aparências significa dignificar o elemento comum do Mundo da Vida, atender com gosto a seus impulsos e provocações.
Aparências fugazes fazem parte do metabolismo incessante da vida, enervam a textura do mundo, incitam o exercício de uma lógica da incerteza. Não são, de modo algum, imagens, muito menos representações. Logo que as sedutoras Manchas Vermelhas (1999-2002), por exemplo, pacificam-se, ameaçam virar signos prestigiosos de autoria, acabam sumariamente descartadas. Uma fácil leitura pública congelou sua forma inquieta em belas imagens. O tempo se encarregará, acredito, de ressuscitá-las. Saudável regime de higiene estética – esta artista, pelo menos, quer espantar para bem longe sua sombra. Pinta no presente, sob o apelo irresistível do futuro. Buquês e vasos de flores vão assim se transfigurando em formações pictóricas meio assustadoras, estapafúrdias, prestes a sair da tela e perturbar a paz doméstica. Esta é a melhor Gabriela, sem dúvida alguma. Aquela que consegue implodir a composição, desacatar o senso de equilíbrio e proporção. O estranho e um tanto inexplicável é que, apesar de tudo, essas telas se revelem atraentes, irradiem certa beleza contrária, mas cativante. Em parte, é certo, pelo ardor com que foram pintadas. Quem sabe transmitam a sensação de felicidade ética própria às coisas íntegras, nas quais coincidem pensamento e ação.
Todo e qualquer a priori resulta, portanto, anátema, paralisariam uma atividade compulsiva que desconhece (tem que desconhecer) seu alcance e sua medida. Sem relegá-los ao ostracismo – também eles são produzidos com afinco –, as pequenas telas, aquarelas e desenhos semifigurativos não chegam a transgredir seus motivos, guardam sua memória latente. Prefiro considerá-los pausas contemplativas, indispensáveis ao trabalho para recuperar o fôlego antes de cada recomeço decisivo. Recomeçar, quer dizer, retomar o contato ansioso com o seu destino incompleto de artista.
A chamada imprevista e imperiosa para a escultura determinou outro recomeço radical da obra. À primeira vista, tudo nesse trato inédito com a argila e a cerâmica seria hostil, avesso ao temperamento volátil da artista. Há três ou quatro anos ela se esfalfa no aprendizado (e desaprendizado) exigente dos rudimentos dessa técnica milenar que só faz contrariar a notória impaciência de seus gestos pictóricos. O tempo de produção é mediado, lento e descontínuo, passa pelo forno, eventualmente culmina no molde de bronze. Sem mencionar as encrencas de praxe, rachaduras, estouros e carbonizações. Para tentar dizê-lo, também eu, de uma só vez: a tarefa espinhosa (e prazerosa!) é conjurar tantas manobras díspares em uma única peça espontânea, rápida e casual. Manipulada à exaustão a argila, levar as peças ao forno, em seguida aplicar tinta à vontade e dispô-las em bases de madeira crua provisórias e intercambiáveis, enfim, toda uma soma de esforços que terminam quase em um objet trouvé surrealista, achados fortuitos, em ocasiões propícias, por aí afora. Lembram bibelôs kitsches em plena metamorfose de qualificação artística. Algumas talvez evoquem as pinceladas oleosas de De Kooning, que, por efeito de extroversão, saltaram ao espaço. A maioria parece mesmo a tinta volúvel de Gabriela Machado em processo acelerado de solidificação.
E, como insistem em crescer, as esculturas agora oscilam entre bolos de noiva e Medusas. Reiteram com isso o funcionamento típico do imaginário do trabalho, sempre ocupado em redimir a beleza caída dos objetos cotidianos, regenerar figuras e formas gastas pelos maus-tratos de um consumo desatento que ignora o mistério das aparências.
Seja lá o que forem, essas esculturas malucas atualizam a vocação prospectiva do trabalho, agravam o seu tônus lírico. Elas se multiplicam, proliferam, invadem o ambiente no despropósito de acrescentar pura e simplesmente suas formações imaginárias à realidade convencional. Pouco importa o que possam sugerir, de início, ao nosso olhar condicionado. O importante é fazer e desfazer a sua experiência, acompanhá-las em seu acidentado, ora divertido, ora sofrido vir-a-ser. Pelo visto, querem se propagar em estágio perene de transformação. Pulsões de vida repugnam o definitivo, sabem muito bem de quem ele é sinônimo.
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HISTÓRIAS QUE EU QUERO CONTAR
“Histórias que eu quero contar”, assim Gabriela Machado denomina este vontade conceitual de buscar a pintura, sua companheira diletante, em pequenos relatos, crônicas, por assim dizer. Com isso, vemos três instâncias de observação sobre este engenho: a história, o querer desejante e a vontade narrativa.
Ao observarmos as pinturas, nos confrontamos com assuntos marginais, quase não-narráveis. Fomenta-se, aqui, um volta da história narrativa exercitada como uma compreensão instantânea dos acontecimentos. Pintura de instantes, alguns instantâneos de pintura. Esta possibilidade é captaneada pelo uso de máquinas produtoras de imagens instantâneas, as polaróides. Gabriela Machado acentua o desejo curioso, tátil, infantil, até, de produzir cliques que acompanham-na em viagens pelo mundo. Assim, vemos uma paisagem estrangeira, o detalhe do mobiliário de hotéis, uma cortina, um gato, um por do sol. A artista se concentra no minúsculo, criando um destaque desproporcional, pois não estamos diante de uma história factual, mas, antes, de uma história biográfica não-factual.
Também poderíamos observar um elogio ao uso da narrativa popularizada, os instantâneos de uma vida que só pode ser grandiosa pela soma dos acontecimentos ordinários. Neste “instante” compartilhado resplandece o desejo. Aquele que nos faz seguidores do que não sabemos. Exercita-se um certo delay, um certo intervalo entre a imagem observada, a câmara escura e sua revelação em slow motion, etapas próprias da máquina de polaróide.
O historiador Eric Hobsbawm destaca que numa “história narrativa popular”, “o evento, o indivíduo, não são fins em si mesmos, mas meios de esclarecer alguma questão mais ampla, que ultrapassa em muito o relato particular e seus personagens”. Perde-se o interesse pelo que o historiador chama de “grandes porquês”. Ao mesmo tempo, o fait diver, os acontecimentos noticiosos, próprios do advento da cultura de massa, passam a ganhar protagonismo. Como estamos diante do ordinário, percebemos uma certa negação do compromisso ideológico. Ativa-se a via de todas as imagens, de todas as pessoas, de quaisquer luzes. Tudo é pictórico, tudo é pitoresco. E a imagem é forçosamente pintada, gravada, num quarto momento, numa quarta geração. Depois da visão, do registro fotográfico, da revelação, temos a pintura.
A artista exercita, em contrapartida, uma “leitura íntima”, na associação de formas, blocos, empilhamentos, fato já presente na produção de Gabriela. “Não há nada de novo em preferir olhar o mundo por meio de um microscópio em lugar de um telescópio”, afirmará Hobsbawm. Ao que podemos responder com a constatação de Arthur Danto que afirmara: “perguntar pela significação de um acontecimento no sentido histórico do termo, é perguntar algo que só pode ser respondido no contexto de um relato (story)”. Vemos, então, Gabriela Machado testar, brincar, corromper esta ambivalência, grandes relatos, pequenas escalas, fotos domésticas, acontecimentos relevantes. Aqui subverte-se a noção de que a “autêntica história considera a crônica como um exercício preparatório”. O exercício preparatório é uma finalidade ambiciosa, ainda que sem fins grandiosos. Ativa-se, de outro modo, o sentido de colecionar, acumular, fazer museus de tudo, atlas imagéticos.
Quais são os acontecimentos significativos, nos perguntamos? A narração como ensaio, como crônica, liberta os recursos narrativos para se concentrar numa suposta liberdade de gerar relações significativas por dentro das micro-histórias. E as histórias são aquelas que nos acompanham na vida, como contos prosaicos. Gabriela, em outra medida, assume: “quero contar”, trazendo a imagem para uma relação direta com a pessoalidade. Qualquer coisa, qualquer fato, qualquer vazio torna-se pictórico. E, assim, “a mera crônica” é a “autêntica história”.
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PARA TODOS OS MARES: O BRILHO SEGUNDO GABRIELA MACHADO
Já é Março, e a cidade ainda está toda cheia de purpurina. Um de nós entra no ónibus e lá está ela, cintilante, marcando o lugar de uma mulher que há um mês atrás se sentou ali fantasiada. Ou caminhamos um pouco na calçada, e na nossa frente alguém deixa ficar para trás uma pegada de brilho. Encostamos um ombro ao poste elétrico, esperando o sinal abrir, e quando finalmente chega a nossa vez de avançar na estrada, notamos uma mancha colorida que nos ficou camisa. Estas coisas, já sabemos, ainda hão de acontecer por muitos meses. O Carnaval deixa um rastro fluorescente na cidade, difícil de apagar. E se existem aqueles que se esforçam por esfregar o fulgor colorido até que desbote, existem outros que fazem por ele permanecer. Gabriela Machado é desse grupo: através do seu trabalho, ela faz por recordar que o brilho ainda é a marca forte desta cidade.
O Carnaval é a grande festa pública. Traz para a rua o circo, a canção, a máscara e a liberdade. Durante dias a fio mulheres e homens desfilam em comunhão, oferecendo a cada passo banal o ritmo da dança. Até na hora de pedir um café o folião agita um pouco o pé, ou a cabeça, quem sabe até só os olhinhos. Dentro da máscara- mesmo que a máscara nalguns dias seja só um risco amarelo no rosto- alguma coisa visceral e livre se sacode sem parar. Não importa se aquele que veste a fantasia é alto ou baixo, gordo ou magro, se tem o cabelo escuro ou claro, nem sequer importa a língua que fala ou o lugar de onde vem: dentro do círculo carnavalesco que ocupa a cidade durante um par de semanas, cada um é aquilo que deseja ser. E do centro de si brota, girando, uma bola de fogo. Cada uma das pinturas de Gabriela expostas nas paredes dessa sala traz para a tela esse clarão. Repare: tal como acontece com as pessoas que passeiam pela cidade inteira nos dias da folia, há nesta exposição trabalhos de corpo maior e trabalhos de corpo menor. Algumas telas parecem ocupar o nosso olho inteiro, outras se alojam com aparente cuidado num canto mínimo de nossa retina. Mas como sucede com todas as coisas vivas que brilham, de nenhuma delas conseguimos afastar o olhar. E olhando-as, seja lá em que mês for, regressa ao nosso corpo aquele agitar de pé ou de cabeça, um que nos recorda de nosso ritmo natural. Nada disso é por acaso.
Quem conhece a Gabriela sabe que o seu é um trabalho feito em cima da verdade, e um para o qual ela transporta a própria vida. O pandeiro que ela toca, reverbera na pintura. O mar que ela atravessa, seja nadando ou equilibrada sobre a prancha, salpica de água salgada os pigmentos. E do asfalto das cidades sobre as quais ela caminha, sobra sempre alguma pedra de gravilha que se mistura na penugem de seu pincel. A este aparente trabalho do acaso alia-se ainda a constante busca de Gabriela pelos materiais certos que, como não poderia deixar de ser, são muitas vezes os mais vulgares. A vida é vulgar, e é por isso que ela brilha tanto. Então a artista vagueia pelos mercados à procura dos papeis mais fluorescentes, mais sonoros, muitas vezes até melodiosos, e embrulha neles a pintura. Consegue assim fazer com cada um dos seus trabalhos um reflexo muito puro daquilo que é mais humano: envolvendo o tesouro, está quase sempre o banal. Veja-se, por exemplo, aquela pinturinha com um mar estrondoso e sereno ao centro – delineando-o, um papel de todas as cores grita a alegria. Veja-se um outro jarro de flores, quieto e abandonado sobre um fundo amarelo – em volta dele, a cor laranja toda viva. Ou uma concha, cheia de movimento e ao mesmo tempo suspensa – emoldurando-a estão dois tipos de papeis brilhantes, e eles cantam o carnaval na beira do mar. Há ainda aquela montanha noturna, uma de minhas preferidas, pintada dentro de uma forma oval e aparentemente fechada – a envolvê-la estão dezenas de salpicos de tinta rosa choque. A chuva de cor que embrulha a paisagem está ali para lembrar-nos que ao fim da noite escura está sempre um fogo de artifício, mesmo que silencioso. E que a solidão não é, não pode ser, o constante sinonimo da melancolia.
No Carnaval, para além da música que toca nas ruas noite e dia, e para além dos fatos coloridos que esvoaçam por todos os lados, há cartazes sendo levantados a toda a hora. Os foliões seguem o bloco, e carregam nas mãos as frases curtas, que na maioria das vezes incitam à alegria. Frases do tipo “Vem com a Gente”, “A Rua é Nossa”, ou até “Casa Comigo” avançam na cidade desfiando palavras pela rua. É a linguagem se expandindo, e dançando com os corpos. Gabriela Machado, nas suas pinturas, transporta esse mesmo movimento verbal para a tela. E da mesma forma, faz com que ele avance. São sussurros, às vezes. Aparentes gritos, outras vezes. Chegam até a ser apenas inquietações, porque mesmo alguém que dança se inquieta de vez em quando. Numa pintura muito serena, feita de um sol ao centro, a frase aquele que sabe o que é meu surge ali como um afago no tempo. Numa outra, de um azul celestial, aparece de repente isto: foi ontem que eu vi. Quem observa, vê também. Não ontem, quando o carnaval ainda estava nas ruas, mas hoje, em qualquer hoje do ano. Que, se suceder num dia em que você se depare frente a frente com uma pintura de Gabriela Machado, cai num dia de Carnaval de qualquer jeito. Feito de brilho e de canção, feito do rasto cintilante que atravessa as coisas a toda a hora.
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FORÇA BRUTA
Como um refrão de partido alto, a pintura de Gabriela Machado nos atinge em cheio. As telas, como as possíveis plantas que suas imagens emulam, alimentam-se do que há ao seu redor. Mas esse olhar não só se vê, como também escuta. Porque ter música ao redor das telas é fundamental para que esse universo estético ganhe vida em gesto. A música é a argamassa poética que cola as imagens, o espaço inventado em que a artista põe em circulação o que seus olhos e seu corpo pedem diante das telas em branco, prontas para serem compostas. Para Gabriela, a liberdade de um pincel em suas mãos vibra no mesmo diapasão que a liberdade de bater no couro do pandeiro nas rodas de samba da cidade. A pintura e a música trocam uma energia sonora que embala sua pesquisa pictórica e nos apresenta a exposição que o Centro Cultural de São Paulo oferece ao público. Nas telas de Gabriela Machado, onde se veem cores, ouve-se música. Onde se vê movimento, sentimos a cadência dessa Força Bruta que restitui a beleza do mundo em cada um de nós. Uma força que, se colocarmos bem os ouvidos nas telas, quem sabe, possa-se escutar.
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Frederico Coelho
Pesquisador, ensaísta e professor de Literatura Brasileira e Artes Cênicas da PUC-Rio. É doutor em literatura pela PUC-Rio e mestre em história pelo IFCS/UFRJ. Foi assistente de curadoria do MAM-RJ (2009/2010). Organizou o livro Museu de Arte Moderna – Arquitetura e Construção (Cobogó, 2010) e publicou os livros Eu brasileiro confesso minha culpa e meu pecado – cultura marginal no Brasil das décadas de 1960 e 1970 (Civilização Brasileira 2010) e Livro ou livro-me – os escritos babilônicos de Hélio Oiticica(EdUERJ, 2010).
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E, AINDA POR CIMA, SÃO VERMELHAS…
A cor de sangue domina o branco impuro do papel, parece fustigá-lo num drama romântico. Poder-se-ia imaginar cada pintura como um pequeno teatro comprimido, monólogos do vermelho, como um grito contemporâneo. Mas nessa cor não reside nenhuma angústia e, se é gritante, nela está presente uma satisfação, uma alegria mesmo do fazer que contraria a memória da escolha cromática e suas alusões.
Primeiro vemos somente cor, mas, no mesmo instante, move-se intensamente nos rastros do pincel. A tinta não flutua, adere à superfície, no entanto não vai entranhá-la. A pincelada larga e sanguínea se opõe fortemente ao plano claro. Reina sozinha sobre o que antes parecia uma imensidão branca. Agora se impõe e redimensiona a superfície na escala do corpo. O gesto é contínuo, rápido e sobrepõe-se a si mesmo algumas vezes. Sua velocidade varia dependendo do suporte: mais rápido e suave sobre o papel, seria mais lento diante da resistência áspera da tela e traria outras surpresas. A gestalt do resultado final é convulsionada pelo movimento que sugere ter ido até onde o braço alcançava. É evidente que estamos muito longe de um passado – já moderno – quando os pintores trabalhavam com o pulso. Nessa pintura, Gabriela Machado mobiliza o corpo inteiro. E sua forma é, também, este movimento. Então, a presença do corpo é literal e constitutiva da pintura. Insisto: não há alusão a uma fantasmática do corpo ou memória de figura. Encontramos, sim, a presença do corpo nos seus rastros na superfície.
Mas o gesto não é tão livre quanto parece. Não se trata de algo instintivo e pulsional. Na verdade, a artista olha um modelo, seu ponto de partida, cuja imagem será transformada pela ação da pintura. São grandes instalações de tiras contínuas do prosaico papel higiênico que ocupam parte do atelier. Um caminho tortuoso foi meticulosamente construído e está suspenso no ar, quase escultórico: o seu “modelo”. São seções dessa trilha aérea que o olhar segue e o braço tenta acompanhar. A metamorfose da instalação branca de papel em pintura sanguínea torna-se uma mimésis sem representação. Para os que vivem matando a pintura, o trabalho de Gabriela é uma lição. No reino de objetos banais, de cambalhotas performáticas, de primitivos digitais e suas paletas eletrônicas com milhões de cores, nessa empáfia regressiva chamada de “pós-moderna”, uma investigação como a que temos diante dos olhos nos renova a crença na persistência da arte.
A questão do belo, apesar de banida da estética por exigências históricas, retorna de tempos em tempos de seu exílio para obras contemporâneas, como nessas pinturas de Gabriela. Por que são belas essas pinceladas sanguíneas sobre o papel? Colabora para isso a solidão do vermelho escuro, condição necessária, mas, sem dúvida, não suficiente. A concisão do resultado final e a crueza da pincelada única e contínua, sem retoques ou macetes, também contribuem. Há, portanto, um dado moral, se quiserem, ético, nesse fazer que o dignifica. Mas também a mimésis sem representação na busca de uma forma que seja capaz de traduzir o espaço em um plano abandonando qualquer ilusionismo, anulando qualquer profundidade, reduzindo este espaço a puro movimento convulsivo na superfície. Finalmente, a escala do corpo humano que produz uma empatia imediata com o próprio corpo do observador, como se suas dimensões não pudessem ser outras. Tudo isso, para mim, colabora para a beleza dessas pinturas. E, ainda por cima, são vermelhas…
Paulo Sergio Duarte
Crítico de arte, professor de história da arte e pesquisador do Centro de Estudos Sociais Aplicados / Cesap da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. Lecionou Teoria e História da Arte na Escola de Artes Visuais do Rio de Janeiro, Parque Lage. Foi Assessor-Chefe do RIOARTE (1983-85) e primeiro diretor geral do Paço Imperial / Iphan, de 1986 a 1990, responsável pela sua implantação como um centro cultural, período em que foram realizadas, entre outras, exposições de Lygia Clark e Hélio Oiticica, Sergio Camargo, Miró, Gaudi entre outros, Expedição Langsdorf, Amílcar de Castro (única retrospectiva do artista em vida), Tesouros do Kremlim e Carlos Vergara. Publicou os livros: Anos 60 – Transformações da arte no Brasil (1998); Waltercio Caldas (Cosac & Naify, 2001); Carlos Vergara (Porto Alegre: Instituto Santander Cultural, 2003).
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GABRIELA MACHADO
Tratar a pintura (ou desenho) a partir da gestualidade é um procedimento já explorado pela arte, desde que o expressionismo abstrato e, antes dela, também o surrealismo apareceram em cena. Com eles, em alguns momentos, o aleatório também fez sua aparição e constitui um modo específico de pôr em xeque paradigmas que o precederam. No caso presente, o desta mostra, trata-se não de retomar a manobra – o que poderia resultar menos em uma retomada e mais esvaziamento da história – , mas de atualizá-la dentro de certos princípios menos evidentes, reecontrando uma nova ordem em um novo conjunto.
O trabalho de Gabriela tem início com o gesto, marcando no papel um percurso súbito e imediato. Não instintivo, mas consciente a despeito de automatizado. Não se esgota nisto, porém: este é apenas o início do processo, com que apenas parcialmente precisamos tomar contato. Aí é que começa a obra propriamente dita, na qual o desenho exerce apenas o papel de matéria primeira do raciocínio. A partir daí, o que interessa são os desdobramentos serializados que ela desenvolve.
Já um artista como Milton Machado mostrou ser possível decompor a pintura, não a partir de dentro, de seus elementos constituintes, mas a partir de um princípio serial e combinatório extremos ao trabalho original (melhor dizendo, inicial) e incorporá-lo em seguida à obra como um de seus elementos primários. Como ele, Gabriela compreendeu a possibilidade de refazer o trabalho tendo como princípio uma “arquitetura” que não será encontrada na matéria-prima, ou na pintura inicial (embora vá dela depender na medida em que aquela arquitetura oferece possibilidades a priori limitadas). Gabriela, contudo, estendeu a estrutura arquitetônica revelada por Milton para a arquitetura real, aquela do lugar onde o espectador vive efetivamente a obra, com resultado de que a ênfase recai menos nesta do que naquele.
Não é necessário insistir no fato de que não há qualquer intenção de limitar o trabalho a um situacionismo existencialista, onde a arte vale unicamente por aquilo que ela “dá a viver ao espectador” – afinal de contas, qualquer obra de arte digna deste nome o faz, com maior ou menor intensidade -, e sim de incorporar a ele um elemento sensorial explícito, dialogando com procedimentos que não necessariamente ou somente de maneira assistemática permitem sua explicação (é bom não esquecermos que existe entre nós toda a tradição neoconcreta para sustentar tal atitude). Embora, Como é evidente, não se trate aqui de um único trabalho (uma “instalação”) mas de um conjunto de trabalhos (uma “exposição”, no sentido tradicional do termo).
O que se oferece ao espectador, assim, é a confluência de uma série de postulados, todos já presentes na tradição da arte contemporânea (históricos, portanto), reorganizados de modo a possibilitar uma leitura onde sua pertinência seja evidenciada. Pois, entre simplesmente absolver uma tradição, por relevante que seja, e potencializá-la no real, não cabe dúvidas quanto atitude a adotar.
Reynaldo Roels
O crítico e professor de história e teoria da arte Reynaldo Roels, foi diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, RJ. Entre 1985 e 1990 crítico de arte do Jornal do Brasil; coordenador do Centro de Documentação e Pesquisa do MAM, de 1990 a 1993; e curador da Coleção Gilberto Chateaubriand durante três anos.