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Ivens Machado

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Ivens Machado

  • Saber blefar Fernando Cocchiarale

    Saber blefar

     

    A veiculação dos poderes na sociedade e a manutenção da dominação deixam suas marcas profundas nos espaços concretos que a constituem. A configuração destes espaços, o modo pelo qual são concebidos e distribuídos, são parte inseparável do exercício do poder, revelando em sua materialidade as regras do jogo e o lugar de seus jogadores. Cidades, edifícios, prisões, estádios, escolas, hospitais etc., ao regularem sua construção de modo a assegurar o bom desempenho das funções às quais estão destinados, disciplinam o espaço organizando-o segundo a ótica da dominação.

     

    Compreender o caráter político da espacialidade é essencial para a leitura das intervenções gráficas de Ivens Machado. Seus desenhos, seus cadernos, as séries de Fluidos Corretores etc., não estão relacionados ao espaço de modo passivo – tributo tradicional que as artes visuais pagaram pelo fato de a representação necessitar de um suporte/espaço para sua produção. As Intervenções tampouco pretendem discutir, pura e simplesmente, o suporte, e a questão da representação, ou mesmo sua inserção nos espaços institucionais do Circuito de Arte. As intervenções gráficas, embora não ignorem estas questões, situam-se mais adiante e tratam a espacialidade de um ponto de vista muito mais amplo. Nelas, o que está em pauta é a revelação mesma do caráter político da distribuição normalizadora dos espaços.

     

    A pauta é elemento constante nas Intervenções do artista. Aparece num primeiro olhar, com toda a carga e familiaridade de uma vivência fundamental em nossa sociedade – a vivência escolar.

     

    Pauta, papel quadriculado, cadernos são superfícies marcadas pelo exercício do aprendizado da escrita, da matemática etc. Espaços reservados para o adestramento e para o registro dos saberes transmitidos. Lugar onde uma experiência comum a todos é vivida pelo envolvimento físico do ato de escrever e, por isso mesmo, lugar de profunda intimidade. Daí, talvez, a sensação de estranheza que possamos sentir, as pautas não estão em seu lugar tradicional – estão expostas em outro circuito, cuja marca e familiaridade nos leva a esperar outro tipo de coisas.

     

    O deslocamento da pauta para outro circuito – o circuito de arte – é, sem dúvida alguma, uma característica chave nestas intervenções gráficas. O que ocorre, porém, não é o puro deslocamento de uma produto acabado para outro contexto que não o seu. A intervenção de Ivens é mais abrangente. Muitas das pautas são desenhadas, outras produzidas pela manipulação direta da máquina de pautar etc. O sentido deste deslocamento passa por outras questões: O que está sendo deslocado? Como está sendo deslocado? Que relações mantém o contexto originário com o novo contexto?

     

    A pauta disciplina a superfície lisa do papel preparando-a para sua finalidade. Sua disposição horizontal e paralela indica que nossa escrita desenvolve-se em certa direção. A margem à esquerda da página, o espaço maior no topo da folha mostram-nos em que sentido devemos utilizá-lo. Prescrevem, enfim, toda uma série de normas que devem ser cumpridas para o domínio da escritura. Este domínio é um dos pressupostos para a transmissão dos saberes – função da instituição escolar. Portanto, o domínio da arte de escrever implica em relações de poder. Relações que estão inscritas, mesmo no momento em que as páginas em branco de um caderno sugerem-nos a neutralidade de seu silêncio aparente. Justamente isto é que o artista desloca. Esta é a carga lançada de fora para dentro do circuito da arte. Na tensão decorrente deste procedimento, reside o sentido crítico das intervenções de Ivens. Tensão decorrente da estranheza causada por um objeto deslocado. Tensão viabilizada, por outro lado, pela identidade material do espaço em discussão.

     

    Embora institucionalmente Escola e Arte ocupem espaços diversos, o suporte material da escritura e o suporte material das artes gráficas é o mesmo – o papel. O modo pelo qual a arte concebeu o uso desta superfície modificou-se. Mesmo quando este uso viu-se liberado da rigidez do cânon acadêmico – permitindo ao senso comum compreender a arte moderna e contemporânea como indisciplinada, subjetiva, criativa – o que estava em questão eram novas maneiras de organizar o espaço. Maneiras conflitantes, é claro, mas que não abriam mão de prescrever com precisão o tratamento da superfície. Modos precisos para transformar o silêncio do suporte em linguagem – linguagem da arte. A ocupação e o domínio do espaço do papel, mesmo no momento em que passa a ser compreendida como linguagem, continua a pensá-la normativamente. Garantir com rigidez a especificidade da linguagem da arte é garantir um determinado território de poder – território material e institucional. Espaço marcado, diferenciado de outros, integrado a uma política territorial mais ampla, que assegura a eficácia da dominação, também ao nível da espacialidade.

     

    A identidade material de dois suportes diferentes – superfícies pedagógicas e superfícies gráfico/artísticas – funciona nas intervenções de Ivens como um cavalo-de-tróia. O papel viabiliza o deslocamento da pauta para dentro da cidadela da arte. Viabiliza a tensão e o enfrentamento entre dois espaços de poder pelo questionamento de suas fronteiras. Revela, a partir deste estratagema, em sua produção, os mecanismos políticos da espacialidade. Questionamento que quebra o espaço esquadrinhado pelo poder, usando e abusando de suas próprias regras.

     

    Os desenhos de Ivens – 1974 – reproduzem fielmente, em uma primeira olhada, as pautas de um caderno. A atividade de desenhar reduz-se à monotonia do gesto que organiza o espaço segundo as exigências da escritura. A folha é ocupada em sua totalidade, conforme o ponto de vista desta lógica. Malha cerrada que aparece com toda força do que ela pode instrumentalizar. De repente, nos damos conta de que alguma coisa aconteceu. A folha de caderno não funciona como deveria. São, por exemplo, poucas linhas que se romperam ficando penduradas, como uma armadilha virtual para a escritura. Em outro desenho, aparecem linhas que quebraram e foram emendadas por um pequeno nó. À lógica do poder deste espaço marcado para a escritura o artista impõe outra lógica. São páginas de caderno que jamais serão escritas. A totalidade de seu espaço está comprometida pela disfunção de uma de suas partes. As linhas rompidas quebram a lógica que as regulava. Jamais serão escritas, porque, além disso, apresentam-se deslocadas de seu contexto habitual, resguardadas pelo novo estatuto que possuem – o estatuto de arte.

     

    Posteriormente, o artista amplia suas intervenções. Passa a trabalhar diretamente com a máquina de pautar. De novo, a disfunção comparece como elemento crítico. O próprio uso da máquina é feito incorretamente. O resultado destes procedimentos torna-se o registro de interferências fora do funcionamento esperado para a máquina. Em 1975, produz séries de trabalhos a partir das falhas existentes em cadernos comprados em papelaria. São Situações Encontradas, onde a exceção vira regra, tornando-se critério organizador por excelência desta apropriação/deslocamento. Seria importante lembrar um segmento desta produção – a simples exposição das estruturas em sua quase-totalidade. Neste segmento a ação do circuito de arte – conseqüentemente a realização de sua ideologia – é indispensável para a conclusão da obra.

     

    As correções – Fluidos Corretores – são feitas a partir da intervenção sobre materiais de papelaria, materiais não artísticos. Folhas pautadas, ainda não cortadas para a confecção de cadernos, são corrigidas, retificadas, apagadas por corretores usados em processos de reprodução, ou mesmo borracha. Estes materiais de uso corretor, instrumentos concebidos para conjurar o erro, comparecem nesta série com um sentido inverso ao qual se destinavam. Sua intervenção anula, apaga, corrige. Mas corrige o quê? Corrige erros que estariam fora das normas de escriturar? Não, o que se “corrige” é justamente o pressuposto gráfico fundamental do espaço destinado a escrever. São pautas que estão veladas. Pautas que sinalizam a impossibilidade de sua utilização, imprestáveis que estão para o cumprimento de sua finalidade. Materiais que foram concebidos como elemento recuperador de acidentes possíveis na escrita são usados como elemento causador de uma nova regra – indesejável para o bom funcionamento de uma superfície pedagógica.

     

    Colocar para dentro da instituição Arte superfícies pertencentes a outro circuito tem um sentido preciso. Em ambas – a pedagógica e a das artes gráficas – a linha é o elemento constitutivo de seu esquadrinhamento, o papel a principal condição material de sua possibilidade. Ao deslocamento sobrepõe-se esta proximidade, de feição entre os dois circuitos. A estratégia das intervenções gráficas tira partido desta proximidade. Produzindo pautas, cadernos, que não cumprem sua finalidade, sabotando pela falha a plenitude de um poder virtual contido nestas superfícies, o que se revela é a vocação política deste espaço. Dar estatuto de Arte – pelo deslocamento, por sua inserção no circuito da arte – a estas intervenções, é propor uma relação ativa, tensa, política, com aquilo que a tradição consagrou como o lugar por excelência das artes plásticas – o espaço, as superfícies de inscrição da visualidade. Ivens Machado aceita as regras do jogo, para em seguida desrespeitá-las. Aceita o poder destas regras para em seguida neutralizá-lo instaurando novas relações. Relações que colocam o artista em uma disputa, na qual a vitória da norma não está de antemão assegurada.

    Fernando Cocchiarale

     

     

    Texto publicado originalmente no catálogo da exposição Linha de Corte, Galeria Saramenha, Rio de Janeiro, 1979.

  • Objetos identificados Paulo Herkenhoff

     

    Objetos identificados

     

    Objetos identificados essas estranhas esculturas de Ivens Machado. A estranheza inicial dos espectador é enlaçada pelo perigo e tensão imediatamente percebidos na obra.

     

    Ivens Machado é sempre o mesmo e sempre outro. Recurso a técnicas e linguagens diversas: desenho, instalação, performance, vídeo-arte, relevo, objeto, escultura para novas questões. É outro numa nova produção. Recorrência de problemas em níveis de aprofundamento e transformação. É o mesmo, que se concentra. Hoje o outro Ivens Machado faz esculturas-construção civil enquanto Ivens Machado, o mesmo, reincide no mergulho sobre a norma.

     

    “Toda vez que eu estou fazendo um trabalho é como se eu estivesse começando, como se não tivesse memória.” Negativa da memória como valor acumulado (Ivens Machado, o outro).

     

    O artista expõe o seu método de construir. Cimento armado. Vergalhões. Ofícios da construção civil. Artimanhas de construções de subúrbio e favela. Tensão. Esse volume/espaço se ergue em habitação do olhar. A coluna que encontra seu equilíbrio, as conchas que se abrem, a matéria, incomum, tudo capta o olho. O barraco que fica em pé no morro. Jeito: surpreendentemente essas peças são estáveis.

     

    “A completa expressão da escultura é espacial – é a realização tridimensional de uma idéia, através da construção do espaço ou da massa. Os materiais da escultura são ilimitados na sua variedade de qualidade, tensão e vitalidade.” (Barbara Hepworth)

     

    A ordem arquitetônica popular: seus recursos, o jeito, matérias e materiais oferecem-se como um repertório de possibilidades. O artista age como o arquiteto de sua obra.

     

    Cimento

    Vergalhão

    Azulejo

    Cacos de vidro

    Tela de arame

    Tudo é matéria/material de construção

    O mestre de obras pré-ordena a escultura e vai em busca de sua presença no mundo: equilíbrio.

    Peso no espaço.

     

    “A matéria é o primeiro adversário do poeta da mão. Ela tem todas as multiplicidades do mundo hostil, do mundo a dominar.” (Bachelard)

     

    O ferro é estrutura, sustentação. É sem segredo o osso dessas massas – corpo. Vergalhão a olho nu.

     

    Ao criar seus espaços/volumes, Ivens recusa o recurso a esses materiais como visita ao paraíso Kitsch. Nunca.

     

    New Wave. Ou elegia paternalista do popular. Recolhe a sensualidade plástica da matéria e atitude de construção através do precário. Extração de um saber. Reelaboração numa outra ordem. Arte de artista.

     

    Redes de arame/controle da fuga e da entrada. Véu do olhar. Malha. Inversão. Na obra é matéria flexível, o que prendia é captado por volume de cimento. O que era prisão é prisioneiro.

     

    Alvenaria. Ivens, incorporador de signos. A pá do pedreiro acumula quantidades de matéria de cores diferentes. O escultor faz o espaço de argamassa, produz a escultura. Nasce a dimensão como a pincelada cézanniana estabelece sua obra em espaço e matéria. Chapisco. Caminho do todo, como cada tijolo constrói a casa.

     

    “As dificuldades de Cézanne são aquelas da primeira palavra.” (Merleau-Ponty)

     

    Essas esculturas têm a sua cor própria. Argamassa, pó-xadrez, azulejos: impregnação da cor na massa. Não se trata de maquiagem nem pintura de parede. Cores da terra.

     

    “A arquitetura e a escultura estão ambas tratando das relações de massas.” (Henry Moore)

     

    As atuais esculturas podem ser referidas ao desenvolvimento da obra de Ivens Machado nos últimos doze anos. O artista estabeleceu uma vertente: a questão da norma. O conjunto será melhor compreendido quando historicamente situado em relação aos anos da ditadura e da repressão no Brasil. Leitura no tempo das metáforas.

     

    Relevos de azulejo (1972/3). Estes azulejos não seriam nunca os da casa de Jean-Pierre Raynaud. O quadrado propõe a malha que o prego, o gancho, o bueiro interrompem como maculação da matemática, como fissuras na assepsia.

     

    O artista desenhou folhas de papel pautado ou utilizou rolos de papel impressos por máquinas pautadeiras (1974-5), cujas penas são desviadas de seu curso. O artista intervém no espaço: desenho e gesto são a quebra da norma, o desvio da linha, da bitola, da pedagogia, intervenção no tempo: interrupção do infinito das linhas paralelas. Quebra do ritmo do olhar: intervenção no corpo do outro.

     

    Na série de desenhos de linhas impressas que são rasuradas/desfeitas, Ivens opera a desconstrução da norma, dos condutos tradicionais da caligrafia que adestram o corpo para o modelo ideal (norma). O desenho De Kooning Apagado por Rauschenberg é a desconstrução da história, marcada pelos nomes concretos individuais. Nesses desenhos a possível referência a Rauschenberg não se faz como cópia do modelo estético mas como padrão ético de um tempo. Para Ivens, a operação se faz no plano geral e abstrato. Longe a perspectiva recusada como artifício, como edifício de arte. Afastadas as geometrias das distâncias (métrica) ou da linha reta (projetiva).

     

    Para Ivens, dedo e borracha são os instrumentos de um desenho que recusa ao artista um corpo domesticado pela pedagogia das Belas Artes.

     

    Obstáculos/Medidas (MAM-RJ, 1975): muros da cidade, de alturas diversas, são reconstruídos no Museu, num crescendo de interdições do corpo e do olhar. O ordenamento do espaço segue a regra da ampliação do Não. Muro – proteção da privacidade e da propriedade contra a presença do outro. Constituição do segredo. Opacidade. O artista pulou o muro, rompeu a interdição, desvelou a lógica social nesta zona de sombra. Dentro do MAM-RJ, durante o horário de visitação, atrás do muro: um espaço simbólico conquistado pelo sujeito/artista através da delinqüência, da obscenidade e da escatologia, contra a norma/castração – a favor da liberdade.

     

    “Na cidade carcerária há uma rede múltipla de elementos diversos – muros, espaço, instituição, regras, discursos. (…) uma repartição estratégica de elementos de diferentes naturezas e níveis.” (Foucault)

     

    Caco de vidro sobre muro (1975/79). Proteção agressiva da propriedade na cidade brasileira. Sinal decifrável da punição. O medo do ferimento/dor aprisiona do lado de fora o corpo-ladrão. Ivens faz grandes esculturas de cimento revestidas e pontiagudos cacos de vidro: mapa do Brasil, tapete, bumerangue, consolador. O caráter simbólico desses objetos + caco de vidro = aflição. O feitiço contra o feiticeiro. O corpo do espectador não nega uma resposta. Cuidado e concentração. Defesa. Sobrevivência frente à agressividade da norma.

     

    A regra na obra atual de Ivens são as leis da física, a regência da natureza. Vida da matéria, existência da matéria no mundo. Tempo/espaço/equilíbrio que através da norma alcançam a sua poética.

     

    A obra de Ivens na sua ansiedade opera o fulcro, o momento que já não se faz apenas no mundo do equilíbrio físico (massa/volume/peso) ou estético (harmonia formal). Seu campo é a ansiedade, latente no espectador, e gerada pela impotência diante do equilíbrio iminente, da regra transferida. A aflição do olhar reside nas fantasias e fantasmas diante do objeto estático que pode recusar sua condição, despertar da sua imobilidade, realizar seu destino.

     

    Ivens expõe a norma como ocultação e interdição, prescrição e pena. Poder que intervém como hipótese sobre o olhar/corpo do espectador. Paradoxalmente sua arte opera no campo real do não-ver. A alma diante da obra torna-se prisão do corpo (Foucault): incorpora a norma que doma o corpo.

     

    “Não me interesso em me relacionar com a história da arte.” (Ivens Machado)

     

    O artista freqüentemente busca para sua obra relações fora do contexto da arte. Isto se estabelece em tensão com os desafios que Ivens lança ao circuito da arte. Mercado e Museus são requisitados a enfrentar pesos e dimensões incomuns, eternidade da obra ou complexidade de sua remontagem, materiais hostis ou frágeis. Ivens testa a capacidade de lidar com objetos onde se condena o tempo do artista a se materializar na sensibilidade e razão. Saber conviver com estas obras é atravessar o umbral do conhecimento que propiciam. É saber arte naquilo que o míope vê trambolhos.

     

    Enfim, o que são essas obras de Ivens Machado? Colunas que buscam sua sustentação. Objetos identificados. Coisas que reivindicam seu lugar no espaço, a atenção do olhar, a resposta do corpo. São como pousos. Trambolhos e Murunduns.

    Paulo Herkenhoff

     

     

     

    Texto publicado originalmente em encarte especial da revista Módulo, no 84, Rio de Janeiro, 1985.

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