Jeane Terra
Jeane Terra
1975 - Minas Gerais | Brasil
Vive e trabalha no Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Jeane Terra, artista visual contemporânea formada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explora as subjetividades da memória e a transitoriedade urbana em suas obras. Seu processo criativo é marcado pela utilização de materiais encontrados e reciclados, como escombros de construções, que ela transforma em relíquias carregadas de memórias. A técnica da “pele de tinta”, desenvolvida por Jeane, consiste em camadas finas de tinta acrílica e aglutinante, criando uma textura semelhante à pele. Essas “peles” são costuradas ou coladas em suas pinturas, muitas vezes utilizando a técnica do ponto cruz, conferindo às obras uma qualidade de corpo-pintura. Ao revestir escombros com peles de veludo, Jeane gera novos significados para a matéria corpo-casa, explorando a relação entre memória e materialidade.
Jeane Terra participou de diversas exposições importantes, incluindo “Territórios, Rupturas e suas Memórias” no Centro Cultural Correios, Rio de Janeiro, em 2022, e “Escombro, Peles Resíduos” na galeria Simone Cadinelli, em 2021. Suas obras integram coleções renomadas, como a do Museu de Arte do Rio e do Centro Cultural Correios. Ao longo de sua carreira, Jeane recebeu vários prêmios e reconhecimentos, consolidando-se como uma figura significativa no cenário da arte contemporânea brasileira
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21.Mar.2024 - 04.Mai.2024
Mekong: Memórias e Correntezas
A exposição reúne seus trabalhos feitos a partir de uma viagem ao Laos, Cambodja e Vietnã pelo rio Mekong, o mais extenso do sudeste asiático, e que atravessa mais três países: China, Mianmar e Tailândia. Meio de transporte, de moradia, de pesca de subsistência e ainda território de conflitos, o Mekong abriga 24 hidrelétricas.
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10.Mai.2023 - 05.Ago.2023
Anita Schwartz XXV
A exposição Anita Schwartz XXV é uma celebração aos 25 anos de aniversário da galeria, onde essa história é contada a partir dos artistas e suas obras. A pesquisa curatorial percorreu o arquivo da galeria, fundada em 1998, em busca de imagens e textos críticos das exposições, feiras e publicações, com o intuito de construir uma linguagem possível sobre as experiências artísticas que moldaram o seu programa.
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02.Mar.2023 - 15.Abr.2023
Dialetos do Firmamento
Por meio de suas linguagens e modos sensíveis de compreensão, os trabalhos dos artistas de “Dialetos do Firmamento” constelam imaginários, desenhando novas direções para modos plurais da existência, integrada à imensidão dos poderes ocultos do universo.
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A queda das casas de Atafona
As paredes que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro, que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram, já não veem. Também morrem.
Morte das casas de Ouro Preto - Carlos Drummond de Andrade
Talvez porque seu sobrenome nome seja Terra, talvez porque com a morte de seu pai, escultor de carrancas em madeira e barro, a casa onde passou a infância tenha sido demolida, talvez porque quando criança era levada às cidades históricas mineiras, cidades cujas calçadas, casas, igrejas, têm espessura histórica, e lá impressionavam-na os altares e nichos de ouro, ecos distantes de riqueza que ingenuamente julgava maciços, impressão que foi se dissipando quando começou a perceber as mostras da corrosão de tudo pelo tempo: o desgaste das fachadas, as frestas nas juntas por onde germinam plantinhas que começam pequenas mas que senão lhes presta atenção, avançam por tudo, vão tomando de volta a matéria que lhes foi tirada, numa prova de que todo pacto com a natureza, por imponente que seja o que com ela construímos, é temporário. Pode ser por tudo isso, pode ser por alguma causa próxima, como ter certeza sobre o que leva um artista a fazer o que faz? Aliás, como saber o que nos leva a fazer o que fazemos?
Seja como for, seja o que for, esse conjunto de trabalhos de Jeane Terra têm a ver com experiências reativadas com o que ela viu em Atafona, pequeno distrito a beira mar pertencente a São João da Barra, na região norte Fluminense, que vem sendo lentamente engolido pelo Atlântico. Essa queda de braço começou tem mais de 50 anos e já custou mais de 500 casas a Atafona. A culpa? Nossa, é claro, que devastamos as matas ciliares ao longo do curso do rio Paraíba do Sul. Com seu leito assoreado e fluxo a cada ano menos impetuoso, o rio não consegue fazer frente ao mar. E este, gigantesco e ilimitado, vem, implacável, destruindo as casas, calçadas e ruas. Começa pela combinação de batidas e infiltrações intermitentes das ondas, alternada com as pausas curtas das marés. O mar dispõe de tempo e força. E vem assim, sem tréguas, à razão de 25 centímetros por ano, atacando por todos os lado e por baixo, pelos alicerces, até que as casas vergam, tombam de joelhos, vão se afogando, suas paredes partidas, lanhadas pelo martelo d’água, deixam à mostra a ossatura miserável dos vergalhões de ferro, a matéria de seus tijolos vai se dissolvendo, convertendo-se outra vez em terra e chão enquanto tingem levemente a água de vermelho.
Paraíba em Tupi significa rio ou mar difícil de invadir. Atafona, engenho de moer grão. Paraíba se esvai, Atafona vem sendo moída pelo mar e o nome da artista é Terra. Não são mesmo estranhos esses nomes que sugerem destinos?
Para esta sua primeira individual na Galeria Simone Cadinelli, Jeane Terra apresenta trabalhos direta e indiretamente relacionados com os acontecimentos em Atafona, sobre as ruínas produzidas pelo embate do mar com a cidade, acontecimentos que chamam a atenção para o fato de que tudo o que foi, é e será construído, irá se transformar em ruína. É apenas uma questão de tempo, do tempo que habita as coisas, os materiais empregados para a produção do nosso mundo e que envolve dos mais prosaicos utensílios às cidades, a tudo aquilo que as ligam entre si: as estradas de terra e asfalto, os cabos de energia sustentados por torres de ferro, os aviões deslizando por rotas aéreas imponderáveis, os satélites que colhem e distribuem as informações e que amanhã, sucateados, pulverizados quando de seu reingresso na atmosfera, passarão por estrelas cadentes.
A peculiar paisagem afixada na vitrine da galeria, uma vista despedaçada do pontal de uma cidade açoitada pelo mar, avisará visitantes e transeuntes sobre o que ele deve esperar. Quem entrar se deparará, logo à entrada, na parede à sua esquerda, um desenho mural resultante de uma escavação linear, uma calha rasa, irregular como o caminho aberto por um cupim, produzida pela artista ao longo de dias de trabalho, com martelo e formão. Pode-se imaginar o labor árduo de pedreiro realizado pela artista, a percussão seca dos instrumentos associados às suas duas mãos, fabricando um canal na matéria compacta e dura, pulverizando a mistura da areia com cimento e tijolos, enfarinhando o ambiente. O desenho escavado é interrompido aqui e ali por fragmentos de pisos e paredes arruinadas sobrepostos a ele, retendo o olhar, fazendo-o examinar as particularidades de cada um deles – um deles, pedaço de ladrilho hidráulico com o previsível padrão geométrico, dando a entender que um dia pertenceu a uma das áreas molhadas (cozinha ou banheiro) de uma casa; outro, um caco de parede em cuja superfície resiste o vermelho escuro com que a pintaram, por aí vai. Por si só esse jogo de sobreposição vincula os dejetos de antigas construções e a parede da galeria. Mas há mais: cada um deles sofreu o mesmo tratamento de escavação da parede. Por fim, ainda que o visitante não perceba, o desenho na parede não é acidental, corresponde ao que um dia foi o Pontal de Atafona, a teia de suas ruas submersas na água.
A parede e os fragmentos de ruínas catados no arquipélago de escombros estão unidos pela ação da artista, uma ação destrutiva, premonitória sobre o futuro do espaço da galeria, casa que, como é de se esperar, já sofreu inúmeras modificações. E o que pensar se recuarmos à primeira construção feita ali, quando Ipanema era uma praia deserta? Prosseguindo em outra direção nesse pensamento pelo tempo, qual será o futuro dessa casa de hoje, seu destino, até onde irá a durabilidade dessas paredes de aparência sólidas?
Em frente a essa parede, meio que obstruindo a passagem, um Totem, uma escultura colocada sobre o chão, pedaço de construções arruinadas, maior que os fragmentos fixados nas paredes: um pedaço vertical, resto de uma coluna com partes dos vergalhões enferrujados, nervos à mostra. Simultaneamente escultura e destroço, fragmento de uma das casas arruinadas de Atafona, pedaço de batente (?) vertical, com tijolos, massa e a cobertura de tinta branca. Também na peça, o mesmo tipo de intervenção da instalação na parede: um desenho geométrico estreito, escavado no corpo do objeto, com o mesmo feitio dos produzidos pelos cupins infatigáveis, que trabalham dia e noite alheios ao nosso sono, mas que talvez seja mais justo referir-se a eles como as incisões que os seringueiros fazem nos troncos das árvores, guiando o escorrer da seiva.
Escavado, formando desenhos não se sabe do que, parece-se menos com referências ao traçado de Atafona, mais a lembrança de que casas e cidades estão sob o jugo da mesma lógica. Embora totem, essa escultura não representa nada que não ela própria, resto insepulto de uma cidade parcialmente desaparecida.
Jeane Terra propõe que toda arquitetura é em essência autodestrutiva, que toda construção traz consigo sua dissolução, que tudo que fazemos é efêmero, que nossos gestos primam pela negatividade, ainda que insistamos em valorizar o contrário. Esta talvez seja a justificativa da presença do dourado recobrindo partes das veias sulcadas na parede, nos pequenos fragmentos, nos totens. Memória da magnitude da Minas Gerais de antigamente, o dourado traz consigo a insuspeitada grandeza das nossas ações, à sua maneira irmanadas aos tempos das coisas. O dourado atua como resquício do orgulho de quando foram construídas, das vidas e sonhos que abrigaram, e que hoje, como o que delas desapareceu, estão adormecidos ou em vias de adormecer, como o último arfar de uma brasa antes de ser extinta pela água. A presença do ouro, metal nobre, que não reage com o oxigênio, não oxida, contradiz o inevitável encontro de tudo o que existe com a decadência e a morte. Mesmo que ambos sejam inelutáveis.
Pertencem a essa mesma direção as impressões, tecnicamente falando as monotipias, obtidas com silicone derramado sobre superfícies de fragmentos de piso e parede, localizadas no andar superior da galeria. Refiro-me a Lajeado 1 e Máscara Gold, dois negativos de fragmentos, duas máscaras mortuárias que podem servir para reproduzir e retardar o ímpeto rumo a autodissolução. Máscara é um pedaço de concreto, sobra de uma parede azulejada, sob a qual ela aplica uma folha de ouro, memória das igrejas visitadas, da Nossa Senhora do Ó, o primeiro impacto, seguida das igrejas de Tiradentes, o entendimento do uso dourado nas construções destinadas à expiação das almas. O recurso a moldagem é ancestral, remonta ao fundamento mágico que guiava a produção de máscaras mortuárias. No afã de manter viva a memória dos antepassados, garantindo sua presença tutelar, produzia-se, produz-se até hoje, máscaras de seus rostos; o fantasma de bronze tangível dos bustos de bronze, estáticos, imponentes, advertência à circulação incessante e inconsequente dos vivos. Digna de atenção a ironia em ver esse procedimento aplicado a um detrito retirado por moldagem da parede do banheiro, esse espaço reservado a limpeza dos corpos, de uma das casas.
A exposição remete a outras perdas, já não foi indicado a marca deixada pela demolição da casa paterna? As outras perdas familiares são, todas elas, femininas. A começar pela memória da avó da artista, a lembrança dos seus bordados em ponto cruz que ela fazia: tapetes, toalhas, caminhos de mesa, guardanapos, camisas etc, realizadas a partir das tramas quadriculadas, as retículas uniformes, largas e rígidas ou estreitas e delicadas, por onde fios coloridos são passados em forma de “x”, obedecendo um desenho, um esquema, um diagrama, na linguagem técnica das bordadeiras, uma “receita”. Jeane retomou essa trama para suas pinturas, mas em lugar dos ornamentos abstratos habituais ou da esperada representação de flores, foi às fotografias de destruição de Atafona, vistas do casario sob risco, e aplicou-as sobre essas telas de ponto cruz. Por que? Vai saber. Talvez impulso de contenção, de compreensão, por meio da geometria, dessa máquina de produção de escombros. Talvez porque assim, sobrepondo os gestos de sua avó aos seus próprios gestos, elas se reencontrem e nem tudo fica perdido.
A partir da fotografia dos despojos traseiros e laterais de uma casa suspensa sobre a praia alisada como se até ali nada houvera acontecido, o retrato de uma violência calma, ela produziu desenhos, pinturas e um filme, disposto no térreo e o andar superior.
Os desenhos têm o feitio de receitas de ponto cruz, quer dizer, um esquema composto por um quadriculado mais fechado que a página de um livro de aritmética com as indicações em preto e branco das cores das linhas a serem aplicadas. Embora o desenho seja a transposição de uma imagem clara e forte de uma ruína, ele mesmo é abstrato, ou quase abstrato: só se adivinha seu conteúdo quando perto da imagem que ele tomou de referência. As indicações das cores são feitas por intermédio de hachuras distintas, os assim chamados modelos gráficos, com os quadradinhos ocupados por pontos, riscos, círculos claros rodeados de preto, círculos pretos rodeados de branco, linhas diagonais etc, tudo pequeno, minucioso, produzindo regiões mais ou menos sombreadas, num conjunto confuso para qualquer um que não seja profissional, que não tenha o olho bem treinado, sobretudo quando a porção do desenho se refere a construção, à casa dilacerada no alto da encosta. Aí o desenho se estilhaça em uma miríade de pontos, como a superfície de uma pintura antiga, toda ela povoada de rachaduras microscópicas, com algumas falhas provocadas por perda de aderência. Pois também o desenho tem falhas, tem perdas, como se o mapeamento de um desastre lento como o retratado também fosse acometido pelos mesmos efeitos.
O que nos leva à pintura de Jeane. A lembrança da avó, da lida diária com os bordados em ponto cruz, linhas redes e receitas, os cálculos e revisões sistemáticas, intensivas, de modo a não fugir do pretendido, levou-a a reinventar sua pintura. Começou aproveitando as sobras de tinta derramadas no chão. As variações cromáticas somada à plasticidade da película, a pele da pintura, propriamente falando, sugeriu a ela que recortasse e colasse pedacinho por pedacinho na receita tomada por base. Menos um bordado, o procedimento faz pensar na construção de um vitral, de uma pintura pontilhista, nos pixels de um monitor. Cadeia de acontecimentos que faz pensar no quanto cada um desses passos implicou na chegada ao outro.
A pesquisa do desenvolvimento dessa pintura feita por fragmentos quadriláteros de pele foi assunto que demandou muita pesquisa, até desembocar numa mistura de tinta, aglutinante e pó de mármore, decisivo para sua firmeza e maleabilidade. Esse mesmo material estendido sobre a superfície de uma mesa serviu para impressões a frio, monotipias resultantes de imagens de Atafona. No conjunto ora trazido pela artista, uma outra imagem da mesma família gerou uma impressão dessas, estampada sobre uma pele mole, cartilaginosa, uma paisagem arruinada dos corpos de casas.
Escolheu-se o alto da escada que conduz ao piso superior, levantando a vista para além dos degraus, para a colocação do filme. A câmera fixa captura a imagem do ir e vir do mar batendo impiedosamente numa parede deitada no chão. O filme em looping amplia a sensação de um castigo monótono, obsessivo, ao mesmo tempo em que passa a ideia do ritual de lavagem dos corpos, presentes nas mais variadas comunidades, espalhadas por todo o planeta. Mas essa lavagem, não há margens para dúvidas, não é nada superficial, apressará a dissolução do corpo, sua transformação em areia. Um processo que atravessa a vida de tudo o que existe, ainda que não nos apercebamos dele, ainda que sigamos a vida com a naturalidade de quem sobe uma escada, sem se dar conta do quanto está envolvido em gestos simples como esse.
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Elogio da lembrança impossível
Texto publicado na revista Select 50
Na mostra escombros, peles, resíduos, em cartaz na Simone Cadinelli Arte Contemporânea, Jeane Terra apresenta obras que se constroem a partir da escavação de memórias e da reorganização de rastros, arremessando-nos contra a inevitabilidade da ruína.
“SEI QUE PERDI TANTAS COISAS QUE NÃO PODERIA CONTÁ-LAS, E QUE ESSAS PERDAS, AGORA, SÃO O QUE É MEU.” A frase de Borges pode dizer sobre muita coisa, especialmente sobre o trabalho de Jeane Terra. A artista teve sua trajetória marcada por impactantes perdas, únicas em suas formas e contextos. O luto da mãe foi interrompido pela abrupta perda do restante de sua família e a consequente demolição da casa onde crescera em Belo Horizonte. Jeane Terra conta que, quando viu os escombros de sua “morada de memórias” no canteiro de demolição, movida pela inabilidade de se despedir daquela construção e suas recordações, reuniu pedaços da ruína ali presente. “Carreguei esses escombros por um tempo, levei-os comigo em três mudanças, até entender o que precisava fazer com eles.” Mais tarde se tornariam parte de uma de suas obras.
O Inventário (2017) tece profundas relações entre o tempo e os destroços. Nessa obra, um projetor, outrora de seu pai, reproduz a imagem da casa sobre uma ampulheta incrustada num escombro de sua demolição, a areia desta substituída pelo pó oriundo da ruína. Esse estopim aponta muitas das questões que, progressivamente, instalar--se-iam no cerne da prática artística de Terra: a casa, a perda, os vínculos entre o tempo e a arquitetura, entre a memória e suas subjetividades. “Essa obra embrionária foi, para mim, uma forma de fazer com que aquela morada não deixasse de existir, de ressignificá-la”, reflete a artista. Na sua obra, debruçar-se sobre estas questões é uma forma de metabolizar o fardo dos acontecimentos, rearranjar lembranças, torná-las eternas, torná-las próprias, suas.
Atafona é, nesta mostra, elemento aglutinador e ponto de partida para essas forças que poeticamente permeiam a pesquisa da artista. O distrito de São João da Barra, na Região Norte Fluminense, corresponde ao ponto de encontro do Rio Paraíba do Sul com o Oceano Atlântico. O assoreamento das águas e a devastação da mata ciliar ao longo desse rio – que atravessa os três estados mais populosos do Brasil (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro) – enfraqueceram-no, tornando-o inofensivo diante da erosão das correntes e marés impostas pelo Oceano Atlântico em sua foz. O mar vem e, com sua força terminante e ininterrupta, progressivamente engole a cidade – faz ruir suas ruas, casas e construções. A Praia do Pontal, sítio que reúne algumas das investigações de Terra, consiste atualmente em uma porção residual do que já foi sua extensa orla e é um dos exemplos manifestos dessa degradação.
Em curso desde a década de 1960, este é um esboroar assistido, já assimilado pelo cotidiano da cidade. A artista presenciou o que chama de “luto dos moradores” de Atafona, que, com naturalidade, contabilizam os anos que ainda restam antes que suas casas sejam engolidas pelo mar. Esses resilientes habitantes parecem personificar a passagem de (W.G) Sebald, eles compreendem, melhor do que ninguém, os edifícios que “projetam a sombra de sua própria destruição”, que são experimentados “desde o princípio com um olho para sua existência ulterior como ruínas”. Condições com as quais a artista também se relaciona, Escombros, peles, resíduos reúne obras que urdem esses pedaços de construções e as memórias que os circundam. Reorganizando as ruínas que o mar faz da cidade, Jeane Terra incita impregnações poéticas entre as memórias de Atafona e suas próprias.
FAZER (COM) MEMÓRIA
Nesta individual inaugural na Galeria Simone Cadinelli Arte Contemporânea, a artista nos oferece um processo fortemente informado pelo afeto oriundo do ato de recordação. Aqui, memórias apontam percursos, dobras, procedimentos e até mesmo a opção por alguns materiais. Escavação Capilar – Pontal de Atafona (2021) é um desses casos. Aqui, a escavação, procedimento recorrente na obra de Terra, é realizada na parede da galeria. Aquela que uma vez fora a orla do Pontal de Atafona nos é apresentada enquanto talha na arquitetura, minuciosamente revestida pelo brilho das folhas de ouro. A inscrição da cartografia na arquitetura é entendida pela artista como um movimento de perpetuação da memória, “escavo o mapa da cidade para que a cidade não se perca”, ela diz, e continua: “No final da exposição, ainda que apagada, a escavação se tornará uma memória, permanecerá para sempre um vestígio na arquitetura da galeria”.
Em alguns pontos desse contorno, seu sulco ganha corpo e volume: são fragmentos de ruínas resgatados e agora circunscritos à memória da cartografia da cidade. Nesses escombros subjacentes, a fisicalidade das, uma vez, moradas permanece: Crustáceo Vermelho do Pontal (2020) dispõe de uma pintura residual que, mesmo exposta a anos de marés, não perdeu sua qualidade rubra. A superfície de Pérola do Pontal (2020) segue incrustada por ladrilhos alvos e o revestimento escuro de Sentinela Negra do Pontal (2020) não desbotou, apesar de todo o mar. Essas características residuais aludem às possíveis funções e configurações anteriores desses fragmentos, nos incentivam a imaginá-los parte de moradas maiores; tornam palpável a brutalidade concreta do processo de degradação em curso.
Em Lajeado 1 (2020) e Máscara Gold (2020), essa vontade de apreensão da memória parece se intensificar: a fisicalidade da construção que ruiu não é suficiente, é preciso reproduzi-la. Terra tira moldes de escombros fragmentados que, posteriormente preenchidos, são replicados. Com essa “impressão da casa”, ela eterniza um estágio de ruína superado ( já que os escombros seguem, em verdade, perecendo no oceano). A estas esculturas a folha de ouro também é sobreposta, aludindo novamente ao brilho de outrora, ao “quanto de memória há impregnado nos lugares que a gente vive”, como bem diz a própria artista.
Presente em ambos os trabalhos, a folha de ouro é um dos materiais a que chega Terra por meio do acesso às suas próprias memórias. Essa pele dourada remete à mina afetuosa de lembranças das igrejas barrocas de Minas Gerais, que a artista visitava enquanto criança. Quando sobreposto à parede e ao cimento, o material acomoda-se e passa a remeter também à preciosidade das memórias de Atafona, da recordação das muitas casas e existências que não só as suas.
Em Fáscia 2 (2020), a imagem de uma das casas em ruína de Atafona é bordada sobre uma pele de tinta, suporte de destacada fisicalidade inventado pela própria artista. Aqui, mais uma vez, as memórias alheias misturam-se às de Terra, em um processo de mútua impregnação poética.
Na obra de generosa materialidade, o ímpeto em marcar o corpo com memórias (durante o luto, sentiu necessária uma tatuagem) transpõe-se à vontade de bordar nessa pele as ruínas de Atafona. O meticuloso bordado remete aqui, ainda, aos anos de convívio com sua avó. Como lindamente coloca Agnaldo Farias, curador da mostra, talvez assim, “sobrepondo os gestos de sua avó aos seus próprios gestos, elas se reencontrem e nem tudo fica perdido”. É justamente nessa sobreposição de gestos, no interfaceamento de recordações que as investigações plásticas de Jeane Terra se desenrolam. Com sua materialidade generosa, a obra é um elogio às memórias impossíveis, um exercício de apreensão das moradas cujo desaparecimento é iminente. Terra lança-se em direção às tentativas de recordação e reelaboração do que já se foi e do que resta para rearranjar as perdas e o luto, fazer dos afetos seu sentido próprio. Tudo aqui se faz (com) memória, afinal.
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Inventário
"Quando uma parte vale por si própria, quando um fragmento fala por si mesmo, quando um signo se eleva, pode ser de duas maneiras muito diferentes: ou porque permite adivinhar o todo de onde foi extraído, reconstituir o organismo ou a estátua a que pertence e procurar a outra parte que se lhe adapta, ou, ao contrário, porque não há outra parte que lhe corresponda, nenhuma totalidade a que possa pertencer, nenhuma unidade de onde tenha sido arrancado e à qual possa ser devolvido”. (Gilles Deleuze – Proust e os signos).
A Exposição Inventário da artista Jeane Terra nos coloca diante de uma poética do fragmento. O detalhe, pedaço, a fatia, o que resta como traço de memória de um acontecimento pode encontrar seu destino transmutando-se em relíquia ou resto, em fragmento ou destroço.
As duas obras, Escombros e A pele tecida, são parte de um rico acervo de elementos de sua história alinhavados pela mão da artista com um fio que nos conduzirá à memória das moradas do corpo; a pele em si, e enfim, a casa.
Desprendendo-se do todo, o escombro e a pele podem ser pensados como objetos duplos, por apontar por um lado para o resgate de um quinhão do tempo do passado, e, por outro, por engendrar em seu despedaçamento um traço daquilo que não se pode resgatar em relação à vivência corporal dos afetos que percorrem por nossas lembranças.
As peles de tinta, tecidas camada por camada, esperam pelas texturas da contingência da cor; adornam e recobrem a crueza de um corpo. A costura dos fragmentos de pele remete também ao duplo papel do verbo costurar: porque costurar é cozer, alinhavar pedaços, mas, ao mesmo tempo, é furar, fincar a agulha em superfície lisa, fazer buracos novos que deixam os rastros da linha sobre a borda da pele.
Na obra composta pelos escombros, a artista faz uma projeção de uma fotografia colorida da casa onde morou em Belo Horizonte em um dos fragmentos de demolição. Depois de assistir à destruição da edificação, esperou virem abaixo os pedaços esculpidos pelo golpe da gravidade, escolheu uma a uma as partes que queria resgatar do entulho de pedras, macerou ainda mais o pó que restou do corpo da casa e despejou em uma ampulheta que foi delicadamente localizada no ventre de um grande escombro. Enfim, fez correr o pó da memória de sua casa de infância pelo corpo do objeto de medir o tempo em grãos. As ruínas dessa edificação são torrões de cimento, rastros deixados por uma demolição que terá suas ásperas arestas recobertas por delicadas pelúcias, pó de veludo e folhas de ouro. Todo cuidado é dedicado para tratar o que restou, o resto, com materiais tão delicados como se fossem bandagens ou curativos luxuosos que sustentam as fissuras, as cicatrizes das paredes em carne viva.
Há nesses dois elementos, escombro e pele, o tema do detalhe, do rastro do todo do qual se desgarram e do afeto que revisita o corpo na nostalgia de retornar à casa. Nesse sentido, convivem nessas composições duas sensações paradoxais: o familiar e o estrangeiro; significantes duplos, pertencentes e não pertencentes ao lugar de onde se deslocaram. Sigmund Freud vai nos dizer que, em muitos sonhos, a saudade de casa está relacionada ao corpo materno, a primeira morada.
No famoso compêndio d’A interpretação dos Sonhos (1900) Freud descreve uma lembrança onírica em que tece uma linda metáfora sobre o psiquismo. Há um sitio de várias civilizações que convivem juntas perpassando tempos diferentes de nossa vida; traços mnémicos, afetos e sensações coexistem, como cidades que se sobrepõem em camadas temporais ocupando fantasmaticamente o mesmo espaço, fazendo exitir épocas díspares que transcendem a cronologia dos eventos. Entre as eras do desejo, há uma permeabilidade da membrana do tempo; algumas vezes, um fragmento do passado se desgarra, por vezes, o afeto se percebe numa cena de dejá vu, por outras, a angústia prenuncia um evento futuro. A memória é feita de camadas, restos, traços, pedaços de lembranças encobridoras, que, juntas, compõem a obra atemporal do desejo inconsciente. Nesse sentido, os objetos erguidos pelos afetos e desejos de Jeane são a revelação desse espaço virtual entre o acontecimento e a tentativa de rememorar o mesmo.
A pele e o escombro são fragmentos que dizem respeito a uma parte ausente da totalidade orgânica, não atomizável em si. A forma de existência sensível do fragmento que existe por si mesmo dentro e fora de uma cena rompe com o domínio da imagem pré-estabelecida ou gestáltica. O que a obra de Jeane demonstra é uma tentativa de se nomear, partindo da constatação inelutável de que não há mais uma filiação a que se reportar.
Se, por um lado, podemos tentar apreender os traços que nos conduziriam à totalidade da obra, urdindo os fios de nossas memórias antepassadas com os elementos que a artista nos apresenta, por outro lado, há um lugar absolutamente solitário no afeto que sentimos ao observar os pedaços que restaram da casa e a costura das fatias de pele. O lugar de onde Jeane Terra parte para produzir sua obra é perdido desde sempre. Experimentamos o frescor e a densidade de uma saudade sem esperança.
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Notas para o infinito
O Futurismo é uma escola que pouco reverberou no Brasil, e o trabalho de Jeane Terra, que propõe um transbordamento em uma fatura física, poderia se situar confortavelmente nesta escola.
Sua obra, que mantém uma proximidade com o neo-futurismo de Mariko Mori, ou com os universos espelhados de Yayoi Kusuma, tem pontes temáticas genealógicas nas investigações pictóricas “pós-streamline” de Raimundo Collares e no grafitismo cinético de Mavignier, dentro da bidimensionalidade, ou nas caixas cinético-concretas de Rubens Ludolf.
Porém, também achamos confluências deste cinetismo analógico em artistas da geração anterior, como em Ester Grinspum, nas suspensões de Elisa Bracher, em Marcelo Silveira ou J.C. Goldberg e em investigações de Detânico e Lain, mas, sua singularidade entre seus pares se mantém ativa.