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Nuno Ramos

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Nuno Ramos

Nuno Ramos

Nuno Ramos

1960, São Paulo, Brasil

Vive e trabalha em São Paulo

 

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Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo em 1982, Nuno Ramos é pintor, desenhista, escultor, escritor, cineasta, cenógrafo e compositor. Começou a pintar em 1984, quando passou a fazer parte do grupo de artistas do ateliê Casa 7. Desde então, o artista tem exposto regularmente no Brasil e no exterior. Suas obras revelam experiências multidirecionadas, inquietas, interrogativas, nas quais uma busca poética e existencial está sempre presente. Artista que cultiva o excesso, a ambiguidade e as zonas instáveis, produz obras que pressupõem uma resistência do ser com o mundo real e traçam uma imensa arena cultural onde ficam expostos os nossos conflitos estéticos e sociais. Suas operações estéticas, presentes em Marémobilia, onde nada é confortável, nada está ali inerte, trazem uma aderência às contradições do mundo que perturbam a inércia do nosso cotidiano.

Participou de diversas exposições coletivas, como a Bienal de Veneza de 1995 e a 29ª Bienal Internacional de São Paulo em 2010, em 2013, Moving – Norman Foster on Art, Carré d’Art Museum, Nîmes, França, e em 2014 First Escape and Rescue Plan for the Rhine-Main Region, Künstlerhaus Mousonturm, em Frankfurt, Alemanha. Entre suas exposições individuais, destacam-se “Morte das Casas”, Centro Cultural Banco do Brasil (2004); “Nuno Ramos”, Instituto Cultural Tomie Ohtake (2006); “Mar Morto”, Galeria Anita Schwarz, Rio de Janeiro (2009), ganhadora do Prêmio Bravo! – Melhor exposição do ano; “Fruto Estranho”, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2010); “O globo da morte de tudo”, em parceria com Eduardo Climachauska, na Galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro e “3 Lamas (Ai, pareciam eternas!)”, na Galeria Celma Albuquerque, em Belo Horizonte, em 2012; “Ensaio Sobre a Dádiva”, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, em 2014; e “Houyhnhnms”, na Estação Pinacoteca em São Paulo, em 2015. Ganhou diversos prêmios, incluindo o Grand Award (pelo conjunto da obra) – da Barnett Newmann Foundation (2007).

Publicou em 1993 o livro “Cujo”, pela Editora 34, em 2000 “Minha Fantasma”, edição de autor, em 2001, “O Pão do Corvo”, Editora 34, em 2008, “Ensaio Geral”, Editora Globo, em 2009, “Ó”, Editora Iluminuras (ganhador do Prêmio Portugal Telecom de Literatura), em 2010 publicou “O Mau Vidraceiro”, Editora Globo, em 2011, “Nuno Ramos”, pela editora Cobogó e “Junco”, pela editora Iluminuras e em 2015 publicou “Sermões”, também pela Editora Iluminuras. Podemos encontrar, em sua produção, gravuras, pinturas, fotografias, instalações, vídeos e canções. Nuno afirma que "Na verdade, talvez pudesse caracterizar meu trabalho como uma tentativa obsessiva para surpreender essa transformação da matéria em sentido, ou da paisagem em grito”.

 

 

 

 

  • Nuno Ramos: um materialismo invulgar Rodrigo Naves

    Nuno Ramos - Rodrigo Naves

     

    NUNO RAMOS: UM MATERIALISMO INVULGAR
    O ditado popular tem um tom impiedoso mas humorado: nasceu tatu... é pra cavoucar. Ele ironiza os
    caminhos por demais difíceis que a vida nos leva a trilhar, os obstáculos que criamos para nós mesmos
    e que limitam nossa liberdade e possibilidade de escolha. Mas a ironia deixa uma porta aberta: a
    capacidade de rirmos de nossa sorte e com isso, ao menos em parte, darmos o troco a um destino
    tirano, zombando de sua condenação. Para os artistas, o provérbio cai como uma luva. Não apenas não
    fazem o que querem ou não querem o que fazem. Não sabem sequer se fazem. Beckett dizia que fazer
    arte é fracassar. E, no entanto, soube rir do fracasso como poucos.
    A Nuno Ramos o ditado se aplica duplamente. Pela busca obsessiva de uma formalização que, em lugar
    de domesticar, exponencie a materialidade do mundo. E, em razão disso, pela quase literal necessidade
    de escarafunchar a entranha das coisas. A atual exposição no Instituto Tomie Ohtake, com obras de
    feições variadas e alta qualidade, concentra — talvez como nenhuma mostra anterior do artista — seus
    dilemas e horizontes e por isso fornece um acesso privilegiado ao seu trabalho.
    A mostra envolve quatro espaços. Na primeira sala estão os grandes quadros que Nuno realiza, com
    variações, desde 1988. Na saída desse espaço o espectador depara com “Carolina”: duas paredes
    feitas com caixas de som que dialogam uma com a outra. As caixas de um lado fazem uma “chamada”
    (no sentido escolar do termo), a que o outro lado responde com “presente” ou com frases
    aparentemente desconexas.
    — “No rancho fundo” (cantad a)... presente!
    — Cascalho... poeira!
    — Palha... incendiada!
    Apenas Carolina não re sponde a chamada.
    Na terceira sala (“Entre”) convivem desen hos feitos com vaselina, cera, pigmento, tiras de metal e
    espelhos e dois grandes trabalhos tridimensionais, feitos predominantemente de vidro. Eles têm um
    perfil que lembra os contornos sinuosos dos desenhos e se articulam em ângulo, pela junção de duas
    placas. Por seus limites, superfícies e pelo chão correm tubos em que circulam, num, água do mar e
    vinagre e, no outro grupo, glicose e petróleo.
    Por fim, “Vai, vai”. Uma sala fechada, que olh amos apenas da entrada, tem o chão recoberto de aparas
    de madeira e por ele se distribuem um monte de feno, outro de sal e recipientes com água. No interior
    dos três, caixas de som. Pela sala passeiam três burricos, que trazem nas costas outras caixas de som
    e que se nutrem dos alimentos dispostos no espaço. As falas de cada um dos montes é repetida nas
    caixas de som de cada um dos animais. Da água, sai a canção “Se todos fossem iguais a você”. Do sal,
    partem comentários à canção em tom meio beckettiano, às vezes galhofeiros, às vezes ásperos (“Vai
    sem você, sozinha, vai de qualquer jeito mesmo”). Do monte de feno, um coro feminino — as pastoras
    da Nenê de Vila Matilde — entoa um texto rascado como suas vozes, material e precário como o feno.
    A diversidade do conjunto não diz respeito apenas aos suportes (quadros, desenhos, construçõe s
    tridimensionais, ambiente) ou aos materiais e recursos empregados. Há na exposição um apuro formal
    que consegue conferir variedade mesmo a elementos de pouca ou nenhuma corporeidade, como as
    palavras ou o ar. Escritas (com mais ou menos matéria), faladas, cantadas ou gritadas, também as
    palavras adquirem um aspecto material insuspeito, que contamina com eficácia o sentido daquilo que se
    diz ou escreve.
    De maneira sem elhante, os materiais se apresentam em estados múltiplos e ambíguos, seja na solidez
    problemática dos vidros, seja na liquidez paradoxal dos fluidos que correm comportados pelos tubos.
    Mesmo o ar perde sua assepsia e nos toca corporalmente. Deslocado pelas potentes caixas de som, ele
    nos pega de cheio no peito. E o odor da última sala (“Vai, vai”) parece condensá-lo numa atmosfera
    espessa e orgânica.
    No entanto, essa ca pacidade de obter diferenciações retoma velhas obsessões do artista — dos
    morrotes de “Montes” (1994) e dos “Fornos” (1996) à convivência tensa dos mais diversos materiais nos
    quadrões. Nuno Ramos é fundamentalmente um artista plástico, embora se enverede — com resultados
    irregulares, seja dito — pelas mais diversas áreas: literatura, ensaios, cinema, música.
    A meu ver, essas múltiplas atividades procuram dar conta, na especificidade de cada arte, daquilo que
    acredito ser o norte de seu trabalho: a revelação de uma instância bruta da realidade, avessa à
    conversão do mundo em imagem, como apregoa o discurso pós-moderno. E também avessa, por
    conseqüência, à supressão da experiência da realidade, entendida como relação tensa com as coisas,
    sempre às voltas com a tentativa de atribuir um sentido ao mundo, mas sob o risco de transformar esse
    mesmo sentido em uma feição unívoca, que oculte a dimensão bruta de que provém.
    Em seus livros — “Cujo” (1993) e “O pão do corvo” (2001) —, o escritor Nuno Ramo s se esforça para
    instilar nas palavras um peso que as impeça de serem apenas abstrações que agrupem sob seu manto
    classes genéricas de coisas (“pedras”, “ossos”, “braços” etc.). O próprio título abstruso dos livros é
    indicador dessa intenção. Isolado, o pronome relativo “cujo” passa a ostentar um sentido dúbio, que
    turva a limpidez daquilo que apenas vincularia uma coisa a outra. Poderia significar também o demônio
    da linguagem popular, mas a ausência do artigo definido (o cujo), devolve a palavra a um território
    movediço.
    Num texto literário ainda inédito, “Ó” — novamente a palavra torta —, ele escreve: “a matéria, o nome
    23/08/2017 Nuno Ramos - Site do Artista Nuno Ramos - www.nunoramos.com.br
    http://www.nunoramos.com.br/portu/depo3.asp?flg_Lingua=1&cod_Depoimento=38 2/3
    encobrindo a matéria, a matéria, o grito áspero da matéria”. E não foi por outra razão que em algumas
    de suas instalações anteriores ele plasmou nas paredes textos feitos com vaselina: à simples dimensão
    gráfica das letras se superpunha um elemento viscoso que insistia em reatar os signos às matérias que
    designavam. De certo modo, Nuno esculpe com o verbo. No entanto, esse embate do artista com as
    palavras traz consigo algumas dificuldades. Quando Nuno Ramos procura narrar com essas palavras
    encaroçadas — como ocorre em partes de “O pão do corvo” —, penso que as dificuldades que ele
    mesmo se impõe produzem na narrativa uma tragicidade problemática — a narrativa e a dificuldade de
    narrar —, na qual um simples “bom dia” parece arrastar consigo todas as dores do mundo.
    Se estou certo e se uma dimensão ponderável do significado das obras de Nuno Ramo s de fato se
    encontra nessa busca de um contato com um mundo mais resistente, mora também aí o grande
    obstáculo que pode pôr a perder seus esforços. Não por acaso o artista se vê quase obrigado a
    enveredar por outros domínios. Isso se deve à tentativa de não manter esse contato com a espessura
    do mundo apenas no círculo mais evidentemente material das artes plásticas, e assim superar o risco,
    que ele precisa correr e suplantar a todo momento, de descambar para a busca de uma Matéria
    Primeira, alquímica e arcaica, primitiva e metafísica. Dos pré-socráticos a (pelo menos) Gaston
    Bachelard, a tentativa de apoiar os fundamentos do universo sobre um (ou todos) dos quatro elementos
    (fogo, ar, terra e água) deu pano para manga. Mas dificilmente essa metafísica da matéria teria ainda
    algo a dizer à sensibilidade contemporânea.
    A solução encontrada por Nuno para dar conta desse risco ajuda a compreender não apenas a
    envergadura de suas questões, como também a particularidade das respostas por ele apresentadas a
    um problema que ocupa vários importantes artistas contemporâneos: Joseph Beuys, a arte povera
    italiana, Tunga, Nelson Felix, Laura Vinci, Walter de Maria, Eva Hesse etc.
    Para começar pelos quadros da mostra — que adquiriram uma força estr utural admirável, sem perder
    em tensão e presença —, fica claro que para Nuno os materiais não remetem a uma substância
    primordial intocada e ante-histórica. Afinal, o artista emprega elementos já industrializados e banais, que
    adquirem intensidade pela relação angulosa (não compositiva nem harmônica) que estabelecem entre
    si. De fato, seria forçar a barra ver em tiras de pelúcia ou de plástico barato uma dignidade que os
    aproximasse da pedra filosofal.
    Além disso, a presença acintosa desses materiais grosseiros, que mantêm entre si vínculos irresolvidos
    e frágeis, transpõe para os elementos empregados nos quadros algo das operações com que o trabalho
    humano intervém nas matérias brutas, transformando-as profunda e violentamente, para apenas ao fim
    — e só ao fim — apresentá-las em sua elegante aparência de mercadoria. Basta pensar numa
    siderurgia, frigorífico, indústria farmacêutica ou numa fábrica de chips para se ter uma imagem mais
    nítida daquilo a que me refiro. Mais: em sua rudeza, essa trama áspera de materiais remete com
    sabedoria à natureza abrutalhada de parte significativa do trabalho que se realiza em nosso país. E é
    essa historicidade e potência que afastam o trabalho de Nuno Ramos dos arranjos caprichosos do que
    se vem convencionando chamar “estética da gambiarra”, com sua estilização glamurosa das mazelas de
    nossa vida urbana.
    Nos trabalhos em vidro da atual exposição — na convivência ambígua entre a sinuosidade e
    transparência dos vidros e a circulação dos fluidos —, o raciocínio de Nuno Ramos aprofunda aquelas
    interrogações. Por um sistema complexo de comunicação entre os materiais, a historicização lacerada
    da matéria presente nas demais obras alcança outros reinos: uma dimensão orgânica que proporciona a
    experiência renovada de uma natureza ao mesmo tempo vigorosa e indisponível, vital e avessa ao
    manuseio, como se percebe na dubiedade da aparência do vidro e dos fluidos.
    E se a sala dos burricos de certo modo alegoriza essas metamorfoses d a matéria (alimentação,
    digestão, defecação), o contraponto das vozes enviesa um sistema que poderia se mostrar dócil demais.
    Todas as vezes que Nuno embarcou num simbolismo mais escancarado — “Craca” (1995) e a terra,
    “Fornalha” (1997) e o fogo —, seu trabalho perdeu em vigor, já que o símbolo necessariamente esmaece
    a presença daquilo que foi simbolizado.
    Portanto suas obras se movem entre a tentativa de historicizar e dar dignidade e sentido amplo ao
    mundo material e a recusa de apresentar uma saída que devolva esse mesmo mundo a uma esfera
    mística. Essa universalidade difícil confere singularidade ao trabalho do artista, ao mesmo tempo em
    que revela uma aguda sintonia com nossa realidade. Joseph Beuys, um dos grandes artistas
    contemporâneos, dava de barato a dimensão universal de que partia para realizar as suas obras. De um
    lado, a herança das vanguardas artísticas e políticas do século XX o autorizava a falar em “escultura
    social”, arte e vida e a insistir no fato de que somos todos artistas. Por outro, a metafísica antroposófica
    de Rudolf Steiner permitia transformar o mundo físico em mundo simbólico, com todas as suas
    metamorfoses e maravilhas. Nada a criticar. Essa estranha escada alcançou formidáveis alturas e, em
    suas obras, Beuys elevou o feltro, a gordura ou a cera — ou seja, a natureza — a uma intensidade
    pouca vezes alcançada.
    O diabo, para o bem e p ara o mal, é que não somos alemães. E se o trabalho de Nuno Ramos busca
    história, materialidade e universalismo, o solo histórico de que parte impede a desenvoltura de um
    Beuys. E a intuição do artista levou-o a ocultar uma espécie de chave-mestra, que abriria ilusoriamente
    todas as portas, livrando-o de seus dilemas. Essa chave tem nome: Brasil. Todas as vezes — e foram
    tantas! — que artistas brasileiros procuraram uma relevância abrangente para suas obras,
    imediatamente sacavam do coldre a nacionalidade: de José de Alencar a Caetano Veloso, passando
    pela obra dolorosamente nacional de Glauber Rocha.
    Nuno Ramos sabe que essa carta não pode mais ser jogada, a não ser que se escamoteie a realidade
    cindida e heterogênea do país. E então passou a criar uma outra tradição e imagem nacionais: travada e
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    espinhosa. E pôs para circular na corrente sangüínea de seus trabalhos aqueles que, em lugar de
    partirem de uma idéia de Brasil, travaram um corpo-a-corpo rude (mas generoso) com o país: Goeldi,
    Nelson Cavaquinho, Tostão, Cartola, Paulinho da Viola, Guignard, Dona Inah, Romulo Fróes, Clima.
    Pode ter criado um país ácido e dilacerado. Mas com uma potência que não víamos há muito tempo.
    * Este artigo valeu-se de idéias de outros autores, nomeadamente Alberto Tassinari, Augusto Massi, Lorenzo Mammì e Vilma
    Arêas
    Publica do em O Estado de S. Paulo, em 19 de março de 2006.

  • Dead Sea: an art situation Paulo Sergio Duarte

    Mar morto: uma situação de arte

    Paulo Sergio Duarte

    Mar morto suscita, para usar um termo caro aos teóricos contemporâneos, uma imersão completa: a obra é esta imersão. Mas imersão, aqui, não é mergulho, é simplesmente estar aí, na obra. Fora do círculo dos que gostam de arte, a obra é um transtorno, incomoda por toda parte. Primeiro não permite a mais remota contemplação, nem a distância necessária que as belas artes haviam ensinado para a boa apreciação: Mar Morto satura o espaço e inunda a percepção. Não apenas o olho, mas o ouvido também.

    Numa situação de arte esta se encontra por toda parte, nas coisas palpáveis e no vazio, no som, nas frases quase gritadas, na poesia: dois barcos de pesca naufragam no seco – uma grande canoa e uma pequena traineira. São enormes os objetos mesmo para o generoso espaço – tudo está saturado. Mas há um alívio: os barcos são albinos, uma espécie de refresco provisório porque as cores, tão presentes nas enormes pinturas escultóricas de Nuno Ramos desaparecem em Mar Morto. Não há mais a tensão entre o plano que agrega e o espaço que atrai e espalha em curvas e retas as superfícies voluptuosas e confusas de cores e diferentes materiais; enfim, não precisamos assistir, aqui pelo menos, mais uma vez, a inevitável tarefa de qualquer pintor que, quer queira ou não, tem que cumprir: explorar os limites do plano e a reinvenção do espaço depois do fim da perspectiva (no terceiro andar da galeria estão expostas duas pinturas). A pintura de Nuno Ramos é uma eloquente demonstração desse Sísifo ao qual foi fadado todo pintor não narrativo depois da crise da representação.

    Aqui, em Mar Morto, a pintura, quando existe, é outra. Seria um Nuno Ramos quase monocromático, não fosse a dimensão escultórica que cria superfícies com muito movimento em torno do mesmo tom: o do sabão. As oposições são falsas ou provisórias porque prevalecem fluxos nessas figuras quase miseráveis dos barcos mortos embalsamados – a canoa apoiada sobre a traineira – com sabão. Esses cadáveres expostos ressuscitam na sua palidez, conversam um com o outro, e aceitam o escárnio ao jogar com o rebaixamento da história e brincar com o trocadilho entre o material que reveste os barcos e a narrativa: Soap Opera 2. E estão muito além disso, de uma novela de televisão. O sarcasmo, sem deboche, tão difícil de ser alcançado, está sempre presente na obra de Nuno.

    Além do ambiente saturado que, de propósito, retira a possibilidade da contemplação – ou se está no seu interior ou não se está em contato com a obra – existe a invasão sonora. Essa característica – a obra saturada – tem prevalecido em todo o programa poético de Nuno Ramos mas, há alguns anos, se radicaliza: o corpo todo do espectador é tomado pela situação de arte e o elemento acústico com o uso da voz humana faz parte da construção dessas irônicas totalidades que não aspiram, equivocadas, a um romântico Absoluto; ao contrário, sem nenhuma transcendência, estão ao alcance dos olhos e dos ouvidos mas que tomam todo o corpo do espectador  na sua imanência rigorosamente formalizada apesar da aparência bruta. Basta lembrar Vai, Vai no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2006, e Bandeira Branca no Centro Cultural do Banco do Brasil, Brasília, em 2008. Nestas, havia o mal estar dos seres vivos – os jumentos em Vai, Vai, e os urubus em Bandeira Branca. Em ambas encontra-se a voz humana presente.

    Em Mar Morto, nada de natural, os barcos têm apagada qualquer memória arcaica ou primitiva. Não há essa presença biológica da vida, como jumentos e aves de mau agouro. As embarcações são figuras e coisas violentadas desde sua epiderme, outrora coloridas, agora encouraçadas de sabão; até as vozes que lhes são dadas pelas caixas acústicas instaladas em seu esqueleto, na cabine da traineira, são esquisitas e irrompem, antes mesmo do som, com seus círculos negros dos autofalantes. Não falemos da matéria – sabão – que se retornada ao mar ou ao rio se dissolveria. Esses barcos estão condenados à morte a seco, essa a perversa operação.

    Revestir de sabão os barcos pode parecer um capricho, mas apagar a memória arcaica de sua existência primitiva – tão colorida – é uma decisão poética. Barcos tornados albinos pelo solúvel sabão, que admitem o precário e o provisório de algo que se dissolve pela água, exatamente o meio natural de qualquer barco, aceitam sua existência transitória, não estarão ali para sempre, logo serão desmanchados como sua pele na água. Ficar ali gritando, um barco para o outro, poemas de Mallarmé, trechos de tragédias de Ésquilo e Sófocles, passagens de Melville e Conrad. Tudo é construído para criar uma situação de arte, não mais uma obra de arte. Essa a redução operada pela poética do excesso de Nuno Ramos: colocar-nos na arte, não com a arte.

    É nisso que estamos: não em mais uma instalação, mas numa situação de arte. E antes que venham falar de Guy Debord é preciso lembrar que Kierkegaard já havia elaborado uma filosofia situacionista. Agora, sob o império da imagem, não há mais porque a decisão entre a situação “autêntica” e a “inautêntica”, entre a religiosa e a contemplativa, como nos propunha o filósofo dinamarquês. O mundo andou, mudou a história. Perdemos a oportunidade dessas escolhas. A existência, na situação de arte de Mar Morto, não nos apresenta caminhos que se bifurcam, a versão poética dos pares de oposições. Simplesmente ou a experiência se realiza ou não, ou estamos ou não estamos nessa situação. Experimentamos esses barcos e seus sons – ou seriam os sons e seus barcos? – ou não conseguiremos alcançá-los.

    Há algo que me faz lembrar a disciplina do arco e da flecha na experiência Zen. Dizem que o arqueiro Zen acerta, depois da extrema concentração, quando o alvo desaparece diante de seus olhos: este instante de cegueira, átimo decisivo, nem antes nem depois, é o momento de soltar a corda retesada para que a flecha atinja o alvo. Aqui, em Mar Morto, não há alvo, tudo quer atenção, destruiu-se qualquer hipótese de ponto de fuga, mesmo provisório. É como se trouxesse para o espaço todo o drama do fim da representação: não apenas os barcos morrem nessa situação de arte. Morrem com eles todas as imagens. Hoje, o arqueiro Zen também está perdido porque não há alvo, e Mar Morto nos evidencia essa condição da existência. Sem alvo ou pontos de fuga, o que existe são as metas dos políticos e dos executivos. Na Roma antiga, meta era o sinal nas pistas dos circos que os carros, durante a corrida, deviam contornar. Triste fado este da meta, agora é mero ponto de chegada provisório que logo será substituído por outro na busca da produtividade, não há volta para o ponto de chegada como para as bigas romanas. Há em Mar Morto assinalado, com tristeza, esse destino do homem contemporâneo: ser sem meta, só desejo, sem vontade, sem retorno a um ponto de chagada, porque simplesmente não o conhece. Aqui não há produção, ao menos no sentido rebaixado a que se submeteu a vida de bilhões de seres humanos, o que existe é a realização de uma situação de arte. Por isso, por um instante, estamos perdidos, e como não estaríamos diante dessa galeria enclausurada pela arte, na qual não há saída nem entrada porque ou se está ou não se está: esta a situação. A situação de arte.

    Estamos sempre em situação na existência, mas a situação de arte é uma situação-limite, como esta de Mar Morto. Para nos encontrarmos nessa situação é preciso errar. Mais do que suspender nossas certezas é necessário reaprender a caminhar sem destino, não como o flâneur na urbis moderna, mas como o velho lenhador sozinho com seu machado na floresta a procura da árvore certa para ser cortada; se não nos perdemos, se não erramos como o lenhador, não nos encontramos com a situação de arte. Errar é não ter medo de se perder: somente nas errâncias podemos começar a experiência da arte. Aqueles pistoleiros que sacam do seu revólver e acertam tudo não são capazes de errar. Seus alvos já existem antes da experiência do tiro. É preciso restaurar, por um momento, a perplexidade do arqueiro Zen que, diante de Mar Morto não encontra nenhum ponto no qual se concentrar como alvo. Essa falta do alvo, que anuncia dentro de nós mesmos os nossos brancos, as nossas lacunas, as nossas ausências, é a experiência da arte, o arqueiro sem alvo, o ser que descobre que não sabia o que vai descobrir. E essa experiência é inteira porque inteira é a obra no seu fluxo de vozes, coisas e sombras.

    Rio de Janeiro, abril de 2009.

     

    Dead Sea: an art situation

    Paulo Sergio Duarte

    Dead Sea [Mar Morto] engenders, to use a term dear to contemporary theoreticians, a complete immersion: the work is such immersion. But here immersion doesn’t mean diving, it means simply to be there, in the work. Outside the circle of those who appreciate art, the work is troublesome: it bothers all over. First, it doesn’t allow for the most remote contemplation or the necessary distance that fine arts had taught us we needed for a good appreciation: Dead Sea saturates the space and overwhelms all perception. Not only the eyes, but the ears as well.

    In an art situation, art is found everywhere, in tangible things and in emptiness, in sound, in the almost yelled sentences, in poetry: two fishing boats sink in dry land – a large canoe and a small trawl-boat. The objects are huge even for the generous space – everything is saturated. But there is a respite: the boats are white, a kind of provisory relief because colors – so present in Nuno Ramos’ massive sculptural paintings – disappear in Dead Sea. There is no longer a tension between the plane that congregates and the space that attracts and spreads in curves and straight lines the voluptuous and confused surfaces of colors and different materials; at last, we don’t need to watch, here at least, once more, the unavoidable task that any painter – whether he or she likes it or not – must complete: to explore the limits of the plan and the reinvention of space after the end of perspective (two paintings are exhibited in the gallery’s third floor). Nuno Ramos’ painting is an eloquent demonstration of this Sisyphus that lies in the destiny of any non-narrative painter after the crisis of representation.

    Here, in Dead Sea, painting, when it exists, is of another kind. It would be an almost monochromatic Nuno Ramos, if it weren’t for the sculptural dimension that creates surfaces with a lot of movement around the same tonality: the one of soap. Oppositions are fake or provisory because fluxes prevail in these almost miserable figures – the canoe leaning on the trawler – embalmed with soap. These exposed corpses resuscitate in their paleness, talk to each other, and accept the scorn by playing with the lowering of history and with the pun between the material that coats the boats and the narrative: Soap Opera 2. And they are far beyond it, beyond a TV show. Sarcasm without mockery – so hard to be achieved – is always present in Nuno’s work.

    In addition to the saturated environment that deliberately withdraws any possibility of contemplation – you are inside it or you’re not in contact with the work – there is a sound invasion. This characteristic – a saturated work – has been prevailing in Nuno Ramos’ whole poetic program, but in recent years it became more radical: the spectator’s whole body is taken by the art situation and the acoustic element with the employment of human voice is part of the construction of these ironic totalities that do not aspire – wrongly – to an Absolute romantic; on the contrary, with no transcendence at all, they are within the reach of eyes and ears but take on the spectator’s whole body in its rigorously formalized immanence, in spite of its rough appearance. It’s enough to remember Go, Go [Vai, Vai] at the Tomie Ohtake Institute, São Paulo, 2006, and White Flag [Bandeira Branca] at the Bank of Brazil Cultural Center, Brasilia, 2008. In them, there was the ill-being of the living beings – the donkeys in Go, Go and the vultures in White Flag. In both the human voice was present.

    In Dead Sea, with no natural element, any archaic or primitive memory is erased from the boats. There is no biological presence of life, like donkeys and undesirable birds. The vessels are violated figures and objects since their epidermis, once colored, now enveloped in soap; even the voices granted to them by the acoustic boxes installed in their skeleton, in the trawl-boat cabin, are weird and emerge, even before the sound, with their black circles of the loudspeakers. Let’s not speak of the matter – soap – that would dissolve if returned to the sea or the river. These boats are sentenced to a dry death, such is the perverse operation.

    To coat the boats with soap may seem a caprice, but to erase the archaic memory of their primitive – and so colorful – existence is a poetical decision. Boats turned albino by water soluble soap, admitting the precarious and the provisory of something dissolvable in water, precisely the natural habitat of any boat, accepting their transitory existence, not being here forever, soon they will disband as their skin will do in water. To yell – one boat to the other – poems by Mallarmé, fragments of tragedies by Aeschylus and Sophocles, passages of Melville and Conrad. Everything is built to create an art situation, no longer a work of art. This is the reduction managed by Nuno Ramos’s poetics of excess: to place us in art, not with art.

    Here we stand: no longer in an installation, but in an art situation. And before someone mentions Guy Debord, let’s remember that Kierkegaard had already elaborated a Situationist philosophy. Now, under the empire of the image, there is no need to decide between an “authentic” and an “unauthentic”, or a religious and a contemplative situation, as the Danish philosopher proposed. The world moved, history changed. We lost the opportunity of such choices. Existence, in the art situation of Dead Sea, do not present us with forking paths, the poetical version of the pairs of opposites. Simply either the experience takes place or it doesn’t; either we are or we are not in this situation. We experience these boats and their sounds – or there would be the sounds and their boats? – or we won’t be able to reach them.

    There is something that makes me think of the arrow and bow discipline in Zen Buddhism. It is said that the Zen archer hits the target, after extreme concentration, when it disappears before his eyes: precisely at this moment of blindness – a decisive instant, not before or later –the tensioned string should be released so that the arrow may hit the target. Here, in Dead Sea, there is no target, everything demands attention, any hypothesis of a focal point, even if provisory, was destroyed. It is as if it was brought to the space the whole drama of the end or representation: not only the boats die in this art situation. All images die with them. Today, the Zen archer is also lost because there is no target, and Dead Sea makes this condition of existence evident to us. Without target or focal point, we are left with

    the goals of the politicians and businessmen. In ancient Rome, goal was the sign in the lane of the circuses that the cars had to go around during the race. A sad destiny it had, for now goal is a mere provisory arriving point that will soon be replaced by another in the search for productivity, there is no return to the departing point as it were for the Roman chariots. Dead Sea sadly signals to such destiny of contemporary man: to be without a goal, only desire, no drive, no return to a departing point, simply because we no longer know it. Here there is no production, at least not in the lowering sense to which the lives of millions of human beings are submitted. There is the accomplishment of an art situation. For this reason, for a moment, we are lost, and how wouldn’t we be before this gallery encapsulated by art, in which there is no entrance or exit because either you are or you are not: this is the situation. The situation of art.

    In life we are always in a situation, but an art situation is a limit situation, such as the one of Dead Sea. In order to find ourselves in this situation, we must wander. More than holding up our certitudes, it is necessary to relearn how to walk with no destiny, not like the flaneur in the modern urbis, but like the old solitary lumberman with his hatchet going through the forest in search of the right tree to bring down; if we don’t get lost, if we do not wander like the lumberman, we will not find the art situation. To wander is not to fear getting lost: only in wandering we can start to experience art. Those gunmen who grab their pistols and hit everything are not able to wander. Their targets were there before the experience of shooting. For a moment it’s necessary to restore the perplexity of the Zen archer who, facing Dead Sea, finds no point to concentrate on as a target. This lack of a target, which points to our own white spots, our own gaps, our own absences inside us, is the experience of art, the archer without a target, the being that finds out that he didn’t know what he will discover. And this experience is whole because the work is whole in its fluxes of voices, things and shadows.

    Rio de Janeiro, April 2009.

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