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Renato Bezerra de Mello

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Renato Bezerra de Mello

Renato Bezerra de Mello

Renato Bezerra de Mello

1960, Recife, Pernambuco, Brasil

Vive e trabalha no Rio de Janeiro

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Nascido no Recife, Renato Bezerra de Mello migrou, inicialmente, para o Rio de Janeiro, e mais tarde, da arquitetura para as artes visuais, para onde trouxe o interesse pela memória das pessoas, lugares e coisas.

Realizou sua formação com os artistas João Magalhães, Annette Messager e Christian Boltanski, entre as cidades do Rio de Janeiro e Paris.

Desde 2002 participa de exposições coletivas no Brasil e na Europa, dais quais destacam-se as seguintes exposições:

INDIVIDUAIS

  • “De onde os rios se encontram para inventar o mar”, Carpe Diem, Lisboa/2014;
  • “Inventário do esquecimento”, Galeria Inox, Rio de Janeiro/2015;
  • “Entre céu e água” Paço Imperial, Rio de Janeiro/2016;
  • “Visionários”, Pop Center, Porto Alegre 2018;
  • “O que a gente não tem coragem de jogar fora”, Galeria Inox, Rio de Janeiro/2019.

COLETIVAS

  • “Ao amor do público”, Museu de Arte do Rio/MAR, Rio de Janeiro, 2016;
  • Nós, Caixa Cultural, Rio de Janeiro
  • Brasília, 2016-17;
  • A matéria da cor, Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2017;
  • Rios do Rio, Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, 2019;
  • Casa Carioca, Museu de Arte do Rio/Mar, Rio de Janeiro, 2020-21.

Possui obras nas coleções do Museu de Arte do Rio/MAR e do  Centre National des arts plastiques/CNAP, além de outras coleções institucionais e particulares no Brasil, França e Inglaterra.

  • Trajetórias 4 - Recuperação de sobras Glória Ferreira

    TRAJETÓRIAS 4

    RECUPERAÇÃO DE SOBRAS

    Glória Ferreira

    agosto, 2004

    É no universo das memórias, das cópias e reproduções que se desenvolve o trabalho de Renato Bezerra de Mello, constituindo o que poderíamos chamar de uma “memória ficcional”. Fotos garimpadas nos álbuns de sua família, daquelas extensas e conhecidas famílias nordestinas, compõem Visionários. Genealogia alguma, no entanto, é fornecida. Quem será a tia, o avô, o tio, a prima ou a madrinha da tia?

    O álbum, tão importante na foto familiar, é aqui substituído por dezenas de monóculos. Resquícios de certo modo de apresentação entre os muitos da fotografia desde sua invenção, estes, de certa forma, anunciam a nova maneira de vermos essas imagens, como algo da ordem do visionar, termo que integra a temporalidade que a constitui. O que, aliás, o título do trabalho, conjugando diferentes sentidos, não deixa de evocar.

    O retrato, esse espelho narcísico como acusava Baudelaire, foi a base do primeiro grande momento de expansão da fotografia, das cartas de visita às carteiras de identificação. Identidade tanto oficial, representação que assegura, como assinala Louis Marin, que em nossa própria presença somos nós mesmos, quanto da construção de um passado onipresente, espelho igualmente, com suas ilações subjetivas. Em Visionários, a reprodução dos retratos em slides em preto e branco (positivos, transparentes...) uniformiza-os em uma mesma escala: a dos monóculos. O caminho proposto para visioná-los é aleatório. Passamos de um para o outro como em um mapa sem coordenadas. Se o mapa constrói mais do que representa o real e, assim, faz circularem as significações, o jogo entre mostrar e ocultar priva a fotografia do que supostamente ela viria reforçar em relação ao que, desde seus primórdios, seria o destino das imagens: tornar presente a ausência. Jogo, sem dúvida, inerente à representação, mas na qual, pela subtração de qualquer informação verbal, a memória familiar reconstruída se torna ficção.

    A ausência, em sua intrínseca relação com a presença, subsume também a apresentação de Sou pai e amigo. São cartas de seu avô, o Coronel Othon, ao filho que se encontrava nos Estados Unidos nos anos 40 e que posteriormente as entregou a Renato, seu único filho homem, como um tesouro a não ser revelado.

    Os dispositivos operacionais dos dois trabalhos guardam traços em comum que, de certa maneira, perpassam a produção do artista. A exploração poética das memórias e lembranças, traços da história da ação humana, está igualmente presente, por exemplo, em seus bordados com nomes das pessoas que o serviram ou a sua família, ou ainda dos rios que se entrecruzam em uma grande bacia hídrica imaginária – territórios sem divisa, geografias sem localização, histórias não lineares.

    As cartas, cerca de 50, datilografadas por Renato em uma máquina de escrever alemã encontrada em uma rua de Paris (até mesmo os meios técnicos utilizados, como os monóculos, trazem a marca da memória...), são destinadas as suas irmãs. Cinco cópias foram reproduzidas com o uso de papel-carbono, forma sob a qual são apresentadas. Se o carbono, como instrumento de reprodução, está quase em desuso, como elemento químico evoca a escrita, pelo grafite, o tesouro, como diamante, bem como sua cadeia de relações em todas as substâncias orgânicas e, assim, faz presentes as reverberações simbólicas, incluindo a da nova cadeia de relações familiares a guardar doravante o tesouro. O segredo, contudo, embora exposto, permanece, pois apenas os vazados deixados pelas teclas da antiga Zimmermann permitem decifrar palavras das cartas/ícones, instaurando um permanente vaivém entre o legível e o visível. Renato é de Recife – onde apresenta esses trabalhos pela primeira vez no Brasil –, cidade em que sua família, trama e substrato de seus trabalhos, permanece uma referência. Fotos de antecedentes seus, por exemplo, estão reproduzidas no livro O retrato brasileiro, documentos, segundo Gilberto Freyre, de sociofotografia, posto que socioculturais, além de físico-antropológicos.

    A expressão “mitologias individuais”, cunhada por Harald Szeemann na Documenta de 1972, refere-se à noção de uma história da arte que não se orienta apenas por critérios formais, mas como representação de si. Mitologias que são, de diferentes maneiras, constitutivas de muitas poéticas, tais como a de Christian Boltanski ou de Annette Messager, artistas com os quais Renato mantém estreito convívio há alguns anos, antes como aluno e hoje como assistente, e que são referências. Se tomarmos a liberdade de usar essa expressão para a literatura de memórias, outras mitologias individuais ressoam igualmente em seu trabalho, como as de autores nordestinos, Graciliano Ramos ou José Lins do Rego, por exemplo, sem esquecer repentistas e cordelistas – enfim, o contador de histórias. Histórias, cuja tradição é ainda viva na cultura nordestina e que, apesar de elididas, são partes constitutivas de seu trabalho, mesmo que sob forma de ausência, de lacunas. O entrecruzamento de discurso e imagem, público e privado, ficção e realidade compõe seu “mapa” ou, ainda, seu arquivo de cópias de cópias, cujo bibliotecário saiu de férias há muito, muito tempo...

     

     

     

  • Remnant Recovery Glória Ferreira

    Renato Bezerra de Mello carries out his work within a universe of memories, copies and reproductions, making up something we might call a “fictional memory”. The artist comes from a large, well-known Northeastern Brazilian family, and Visionaries is composed of photographs prospected from his family albums. No genealogy is provided, however. Who is the aunt, the grandfather, the cousin, the aunt’s godmother?

     

    Of great importance to family photographs, the album is substituted here by dozens of monocles. Vestiges of a certain mode of presentation from among the many photography has had since its invention, they somehow announce a new way of seeing these images, as though they belonged to the order of envisioning, a term which both integrates and constitutes temporality – something that, in its conjugation of meanings, the title of the work never ceases to evoke.

     

    The portrait Baudelaire called a ‘narcissistic mirror’ was the basis for photography’s first great moment of expansion, on everything from visiting cards to identification cards. An identification that is official (a representation which insures that, as Louis Morin points out to us, in our own presence we are ourselves) and that constructs an omnipresent past (likewise a mirror, with its subjective inferences). In Visionaries, the reproduction of portraits in black and white slides (positive, transparent…) homogenizes them on an equal scale – that of monocles. The way proposed for viewing them is random. We move from one to another as if across a map devoid of coordinates. If maps construct more than reality represents, thus allowing meaning to circulate, the play between showing and hiding deprives photography of that which it would ostensibly reinforce about what, from its dawn, would be the fate of images: making absence present. No doubt a game inherent to representation, albeit one in which, through the subtraction of all verbal information, the reconstructed, familiar memory becomes fiction.

     

    In its intricate relationship with presence, absence also subsumes the presentation of I am both father and friend. These are letters from the artist’s grandfather, Colonel Othon, to a son who was away in the United States during the 1940s and who subsequently gave them to Renato, his only son, as a treasure never to be disclosed.

     

    The operational device of both works shares common features which, in a way, permeate the artist’s production. The poetic investigation of memory and recollection, as well as traces of the history of human action are equally present, for instance, in his embroideries of the names of people who served him or his family, or even of intersecting rivers in an imaginary river basin – boundary-less territories, geographies without location, non-linear histories.

     

    The fifty or so letters, typewritten by Renato on a German typewriter that he found on a Parisian street (like the monocles, even the technical means which the artist has found bear the mark of memory…) are addressed to his sisters. Five copies have been reproduced through the use of carbon paper, the form under which they are presented.  If, as an instrument of reproduction, carbon has fallen into near-disuse, as a graphic element it evokes writing, through graphite, and treasure, as diamond, as well as its chain of relationships in all organic substances, thus rendering symbolic reverberations present, including those of the new chain of relatives who will look after the treasures from now on. However, although it has been revealed, the secret remains, where the keys of the old Zimmermann have punched through to allow us to decipher the words of the letters/icons, establishing a permanent back and forth movement between the legible and the visible. Renato hails from Recife – where he is presenting these works for the first time in Brazil – a city in which his family, the frame and substratum of his work, remains a reference. Photographs of his ancestors, for instance, are reproduced in the book O Retrato Brasileiro [The Brazilian Portrait]. According to Gilberto Freyre, they are documents of socio-photography, since they are socio-cultural as well as physical and anthropological.

     

    Individual mythologies – a term coined by Harald Szeemann at the 1972 Documenta – refers to a concept of the history of art not exclusively guided by formal criteria, but as a representation of itself. Mythologies that are, in different ways, constitutive of many poetics, such as those of Christian Boltanski or Annette Messager, artists with whom Renato has worked closely for some years, first as a student and  currently as an assistant, both of them references. If we take the liberty to apply this expression to the genre memoir, other individual mythologies resonate equally in his work, such as those of [Brazilian] Northeastern writers Graciliano Ramos and José Lins do Rego, for instance, not to mention the repentistas and cordelistas[1] – all, ultimately, storytellers whose tradition lives on in Northeastern culture and which, despite their elision, are constituent parts of his work, even as absence, or lacunae. The crisscrossing of discourse and image, public and private, fiction and reality compose his “map” or his archive of copies of copies, whose librarian went on vacation a long, long time ago…

     

    Glória Ferreira

    August, 2004

     

    [1] Repentistas and cordelistas are, respectively, musical duelists and storytellers, performers who sing and writers who hawk their rhymed stories in marketplaces throughout the Brazilian Northeast.

  • DÉPLACEMENTS. NEM MAIS, NEM MENOS Dorothée Tramoni

    Renato Bezerra de Mello conta uma história plural que ele dispersa e dissipa intencionalmente. Trata-se, entretanto, de uma história bastante simples, aquela de uma grande família de Pernambuco, no Brasil. É essa história, quase comum, que faz a riqueza e a especificidade de sua obra. É sua matéria-prima. Ele a trabalha, a remói, de maneira a dar um devir aos legados, de maneira a não deixá-los desaparecer, ao menos não de imediato.

    O enamorado de Roland Barthes extrai “figuras da reserva (do tesouro?), de acordo com as carências, as injunções ou os prazeres do seu imaginário. Cada figura explode, vibra sozinha como um som despojado de toda melodia – ou se repete, até cansar, como motivo de uma música sempre igual”.[i] Renato Bezerra de Mello, por sua vez, extrai de sua herança as figuras do imaginário que copia à exaustão. Não cópias diretas, ele não é um falsário. Não. Cópias de cópia de cópia. Para fazê-lo, usa e abusa do calque, do carbono, do cristal ou de negativos que permitem copiar, recopiar, calcar ou decalcar. Materiais frágeis, destinados a mudar, envelhecer e desaparecer. Matérias transparentes, quase invisíveis. Matérias intermediárias que servem de laço entre coisa dita e coisa pensada, imagem mental e desenho.

    Rapidamente, a herança investe no espaço, com ele se confunde, e o magnifica. Quinhentos monóculos vermelhos e azuis pendem do teto “suspensos como um voo de pássaro”.[ii] Mil folhas de carbono ou 1.650 cartões-postais, presos por alfinetes, adotam a postura de papel de parede. Duas mil folhas de papel cristal servem de cobertura e abrigo. Milhares de tirinhas de papel se estendem por sobre o solo como cascalhos. Ele invade discretamente. Mas seguramente.  A obra é proteiforme e numerária. E o número restitui à obra seu estatuto de tesouro. Uma peça, uma folha ou um monóculo não é nada, mas milhares têm um valor inestimável. Então, cada obra é feita de uma quantidade de fragmentos de todo tipo: bandeirolas, confetes, copos quebrados... São os fragmentos da história, na qual figuram palavras e coisas. Palavras que calcam coisas e inversamente. Palavras escritas para dizer “Ausência, Adorável, Afirmação, Alteração, Angústia...”,[iii] coisas desenhadas para dizer “Coração, Cumulação, Compaixão, Compreender, Contatos, Contingências, Corpos...”[iv] Palavras e coisas valendo por fragmentos de um discurso amoroso.

    Renato, o enamorado, parece ter feito sua esta frase de Barthes: “As palavras nunca são loucas (no máximo perversas), é a sintaxe que é louca”.[v] Ele a desconstrói. Torna-a fluida, faz vê-la com palavras e coisas simples. Compreensíveis. Ao alcance de todos. Fotos de família, cartões-postais, fotos de férias, desenhos naïfs, rios... que ele esconde, espalha, fragmenta e oferece à partilha. Assim, para retranscrever a correspondência de seu pai e seu avô, ele utiliza papel-carbono, sobrepõe as folhas, insere-as em uma máquina de escrever, escurece-as, perfura-as, torna-as ilegíveis e deixa aparecer apenas signos.  Ou, ainda, cobre folhas de papel cristal com orlas e rios imaginários que o espectador apenas pode alcançar estendendo o braço, fazendo assim nascer o som do burburinho do mar. Da mesma maneira que um riacho ou um rio, suas obras escoam umas das outras. Naturalmente. Quase sem o querer. Quase sem o saber. Elas dão existência umas às outras como tantos afluentes e fontes.

    Talvez porque cada palavra, cada coisa é portadora de uma história, sempre a mesma, essa de uma desaparição programada. Então, como para conjurar o destino, Renato Bezerra de Mello escreve e desenha maquinalmente, sistematicamente. Ele consigna, inventaria. Tudo ou quase tudo. Com nada ou quase nada. “Assim sendo é um enamorado que fala e diz:”[vi] “Escrevo-me a mim mesmo porque sou livre, vaidoso e louco; escrevo-me para me apaziguar, para suplantar tua ausência; escrevo-me por medo de cair no vazio; escrevo-me para deixar alguns rastros”. Os rastros de um discurso amoroso. Nem mais, nem menos.

    (Traduzido do francês por Marisa Flórido)

    [1] BARTHES, Rol and. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, p. 17.

    [2] Laure Phelip.

    [3] BARTHES, Rol and. Fragmentos de um discurso amoroso. Op. cit.

    [4] Idem.

    [5] Idem, ibidem, p. 16.

    [6] Idem, ibidem, p. 21.

    [i] BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Trad. Hortênsia dos Santos.  Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, p. 17.

    [ii] Laure Phelip.

    [iii] BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Op. cit.

    [iv] Idem.

    [v] Idem, ibidem, p. 16.

    [vi] Idem, ibidem, p. 21.

     

     

  • Casa Forte Marcelo Campos

    2011

    Na produção do artista Renato Bezerra de Mello os guardados da casa, as imagens registradas em fotografias e vídeos, além da representação onírica de situações fantasiosas, frequentam o universo dos desenhos, vídeos, objetos, stills. Renato alia reminiscências a uma subversiva atitude de desintegração dos vestígios do lar: taças quebradas, papéis com rabiscos quase ilegíveis. Na exposição “Casa Forte”, busca-se um diálogo atualizado, no qual a arte contemporânea de Renato Bezerra de Mello possa constituir interpretações, ao mesmo tempo amplas e particulares, da casa, da família, mas também do sentido de lar que guardamos nas nossas subjetividades.

    Casa Forte é o nome do bairro de Recife onde a casa que deu origem ao projeto existiu. Renato presenciou, pesquisou e vivenciou os dias de ascensão e o ocaso em que a residência familiar se tornara ruína. Mas, aqui, tudo é refeito sem a tentativa óbvia de resgate do tempo perdido. Agora a casa existe como fortaleza na memória da arte que insiste em tratar do etéreo, do transitório, da infância. Como na atitude do escritor Marcel Proust, criamos pequenas âncoras para içar do cotidiano sentimentos que compartilhamos em quaisquer abrigos: saudades, revolta, medos. Sentimentos fadados à instabilidade.

    Na exposição, são apresentados desenhos feitos em carbonos com cenas da casa que se misturam aos azulejos, ao mobiliário e às pessoas que a frequentavam. Em outra série de desenhos, com finos traços sobre papel vegetal, vemos referências a detalhes de ambientes arquitetônicos marcando impregnações do silêncio: escadas, umbrais, guarda-corpos, parapeitos. A fluidez do vazio corrobora tanto com uma espécie de melancólica reflexão sobre a desumanização da arquitetura, quanto com a esperança de dotar os lugares de anima, comunhão familiar, tradições inevitavelmente com data de validade. A infância aparece na instabilidade da menina, ampliada na fotografia, criando uma ação cíclica e lúdica de pular cordas. O vídeo que dá título à mostra encena parte da desagregação da Casa Forte mesclando cenas de brincadeiras e alegrias com o impacto de uma sala congelada no tempo. Apresentamos, assim, metáforas para nossa atitude diante do destino.

    “O Tejo não é o rio que corre na minha aldeia”, afirmara Fernando Pessoa. A consciência de ir em busca do desconhecido também atravessa esta exposição. Sim, o Tejo é bem maior do que o rio que corre em qualquer aldeia. Mas, Renato Bezerra de Mello vai à procura de adventos memoráveis, em viagens, em museus, em imagens eróticas, quebrando, assim, as afetações e os bons costumes das regras civilizatórias. No trabalho em que o artista apresenta centenas de cartões-postais de viagens para dentro e para fora de seu país natal, vemos a ambivalência do estar no mundo. Saber que existe o encantamento por obras-primas é, segundo observamos nas imagens, tão importante quanto colecionar banalidades. Aqui o memorável cria avessos e aversões; insultos, melancolias, êxtases, catarses são escritos nos cartões, pelo artista, que os envia a si mesmo. Como numa ação performática, o correio traz a mensagem de um dia para o outro, postadas do mesmo lugar onde reside o artista, ou atravessa mares, encontrando-o longe. A surpresa, a sabotagem, o mistério que já vem com o fim previsível.

    Para título da série de postais, Renato escolhe excertos de um poema de Konstantinos Kaváfis e nos dá pistas sobre suas conclusões: “Não acharás novas terras, tampouco novo mar. A cidade há de seguir-te”. Aqui reside não somente a contradição da busca do artista por novos portos, mas também a constatação existencial e antropológica dos caminhos da mobilidade. De que adianta guardar, lembrar, preservar? “Cada coisa tem um instante em que ela é”, diria Clarice Lispector embevecida com a cinza das horas. A cidade, então, já nasce para desfazer as tramas que pretendem a imortalidade, o âmbar, os fósseis. Portanto, “Casa Forte” é nome encantado, pretendendo a magia, o feitiço, tentando a invocação. Porém, a urbanização do mundo se estende sobre casas, rios e mares. A casa jamais será tão forte quanto o nomadismo, a mobilidade. Construir é um paradoxo para um “fenômeno que não corresponde a um novo sedentarismo, mas a novas formas de mobilidade”, afirmará Marc Augé. É essa contradição que interessa a Renato Bezerra de Mello, como fazer arte com o que já não é mais, o que já foi demolido, substituído? E, além disso, Renato ora acumula, como os carbonos, ora descarta, como as taças de cristais.

    Na viagem ao Sertão, como coleta de imagens para outro trabalho do artista iniciado há alguns anos, capturávamos ciclistas, entrevistos das janelas dos carros e táxis em movimento. Na surpresa do clic, qual a da campainha ou dos escaninhos que poderiam trazer cartões de si para si, tentávamos enlaçar a velocidade dos passantes, dos que tinham algo a fazer, dos que venciam a inércia do tempo para objetivos diversos, intuídos, mas desconhecidos por nós. Como resultado, imagens erráticas, vazios intervalares. Entre o voyeur e o transeunte, a mesma moral, a mesma constatação: o Tejo existe em qualquer cidade, como busca, como fabulação e “a esta cidade sempre chegarás”.

     

     

  • MIGALHAS DA INFÂNCIA Entrevista a Tessa Peters e Maria Donato

    – Você deu para esta exposição o título "Migalhas da infância". É uma citação? Se for, qual é a sua origem?

    O título da exposição vem de um capítulo do livro A eternidade o que é?, obra póstuma de Marguerite Yourcenar, uma autora que aprecio muito. Tenho o costume de procurar nomes de exposições e obras nos livros que leio, nas músicas que escuto, nos filmes que vejo.

    Neste caso achei que esse título casava bem com a ideia de vários trabalhos – são seis – em um espaço não tão grande. Eu estava pensando na criança que, na intimidade do seu quarto, brinca um pouco com tudo ao mesmo tempo.

    Então, tanto o título quanto a escala de boa parte das obras remetem ao tema de lembranças da infância. Essas lembranças são, de alguma forma, autobiográficas?

    Sim, mas no sentido em que a autobiografia é sempre uma criação, uma ficção.

    – As duas obras em vídeo compartilham um sentido de enfática repetição, porém elas contrastam nitidamente em termos de tema e carga emocional. Mes enfants, mes enfants nos mostra um mundo íntimo e restrito, ao passo que Macaxeira, um vídeo feito dentro de um edifício em ruínas, deixa o espectador ver além do espaço, de tal maneira que os fragmentos do teto pareçam nuvens ou estrelas no céu. Quais são as ideias subjacentes nessas duas obras?

    “Macaxeira”, que em inglês quer dizer manioc, é o nome do bairro onde havia uma fábrica de tecidos que pertenceu ao meu avô e ao meu pai, no Recife, cidade onde nasci, no Nordeste do Brasil.

    Recentemente estive lá e visitei as ruínas desse lugar tão importante para mim. Tudo me entristeceu e encantou ao mesmo tempo. Este vídeo é um fragmento do meu olhar atônito.

    O teto pintado de azul me pareceu um céu e as placas de gesso, lindas nuvens. Essas cores, porque também tem o verde, fizeram-me pensar nas casas caiadas do Nordeste, que são belíssimas. A pintura com cal é muito bonita e infelizmente está desaparecendo.

    Mes enfants, mes enfants mostra o encantamento de uma criança, Téo, descobrindo uma coleção de pinguins em miniatura, que me pertenceu. A repetição surgiu naturalmente do seu movimento em volta da mesa; do pinguim João Bobo que é mesmo feito para girar; e por fim, das palavras encantatórias da criança e do som da caixinha de música que o acompanha.

    A repetição, porém, é uma constante no meu trabalho, não somente nos vídeos, mas também em desenhos e bordados.

    O desenho em grafite Para ver o que restou tem um toque de conto de fadas. Essas casas, desdobradas em concertina, realmente existem ou são o fruto de sua imaginação?

    As casinhas da concertina são fruto da imaginação. Elas nos fazem pensar nas pequenas casas das histórias infantis mas também naquelas de verdade que podemos encontrar no interior de qualquer país. Eu já vi algumas delas aqui na Inglaterra.

    Elas são modelos para outras que quero construir em madeira, também pequenas, para depois atear fogo.

    As outras obras sobre papel incluem o díptico Caran d'Ache e os textos Fortaleza, fortitude, fortress. Que espécie de lembranças da infância é evocada por essas obras?

    Há algum tempo quero trabalhar com meus lápis e pastéis Caran d’Ache, o que começa a acontecer agora. Quando criança eles eram realmente raros e caros, o que me inibia, pois achava que eles me diferenciavam dos colegas de escola, e eu não queria que isso acontecesse.

    Aqui eu reconstituo a imagem de uma caixa de lápis que eu nunca tinha visto antes. Adoro o fato de ela ser recoberta de flores, pois nas caixas de lápis que tive quando criança figuravam sempre as montanhas nevadas da Suíça.

    Como já mencionei, quando criança interessavam-me os padrões dos tecidos que eu via quando visitava a fábrica da família com o meu pai. Em casa desenhava novos padrões, muitas vezes floridos, mas tinha vergonha pois achava que aquilo era coisa de menina. Essa ideia persiste ainda hoje, não é mesmo?

    A obra Fortaleza, fortitude, fortress foi motivada por uma frase que recentemente escutei de minha mãe. Ela está completando 80 anos e me disse não se sentir mais a Fortaleza que sempre acreditou ser.

    Resolvi, então, passar para essas folhas de papel a surpresa causada pelo que escutei, transcrevendo os diferentes sentidos da palavra “fortaleza” e de outras com as quais a associei. O papel cor-de-rosa, que eu guardava há anos, assim como o fino traço branco são uma referência à delicadeza da minha mãe.

    Eu entendo que as memórias aqui evocadas não são apenas minhas ou da minha infância. Elas são de todos nós e nos acompanham por todo o tempo.

    Você já nos contou que as bolas de gude da obra Brincar de novo, todas espalhadas no chão como um jogo em andamento, foram esculpidas a partir de cubos de giz para tacos de bilhar. Qual é o significado da sua escolha de material?

    Há uns três anos, cascavilhando papelarias numa cidade de interior, comprei uns cubos vermelhos de giz de sinuca, até então achava que eles só existiam em azul. Ao voltar para o ateliê deixei-os sobre uma das mesas de trabalho, onde ficaram até há bem pouco tempo, esperando algo acontecer.

    Quando vocês escolheram a concertina para esta exposição, eu resolvi enveredar pelo caminho da infância, chegando a essa ideia de transformar os tais cubinhos de giz em bolas de gude.

    No comércio, descobri que existiam várias cores, o que de início não me interessou, pois eu estava pensando a exposição em diferentes tons de grafite. Mas mudei de ideia, e as cores começaram a entrar em todos os trabalhos.

    Eu acho que esse material - como outros com os quais trabalho – está caindo em desuso.

    Criança, eu gostava mais de passar o giz na ponta do taco de sinuca do que propriamente de jogar. Caía um pozinho que sujava as mãos e cobria as coisas em volta de azul. O atrito entre o giz e o couro gerava um pequeno desconforto.

    Os significados da escolha desse material são muitos, nada muito preciso.

     

     

  • Errático, errante Marcelo Campos

    A arte contemporânea dissemina heranças: materiais, ordenações, capacidades de tratar conceitos, categorias, narrativas. Nos trabalhos recentes e inéditos de Renato Bezerra de Mello para a exposição na Galeria Inox, temos essa ampliação de meios e materiais bastante evidenciada. A exposição intitula-se “Errático, errante” e trata da invenção de ofícios no entorno de desenhos, bordados, vídeo e instalações. Renato permanece vinculado aos subterfúgios da memória e do apagamento. Para esse projeto, no entanto, o artista se direciona mais aos modos de fazer, às possibilidades do brincar e, assim, de habitar as fissuras do tempo, os intervalos, os momentos quando não cremos em nada, quando perdemos os sobressaltos. Na exposição, vemos pequenas esferas coloridas que se assemelham a bolas de gude. Essa imagem geométrica se apresenta tanto em configurações tridimensionais sobre o chão da galeria, quanto em desenhos sobre cadernos e papéis finos. O que faz o artista assumir tal figuração é, simplesmente, a possibilidade de repeti-la, não mais como padrão, mas como acontecimento desestruturante, errático, autômato. Tanto que sua maior atração é reconhecer e modelar tais imagens para eclipsá-las na pregnância da informação, exercitando mecanismos de invisibilidade.

    São errantes os modos como Renato Bezerra de Mello lida com as imagens, aceitando o nomadismo de posições aleatórias, estimulando a opacidade de visões na sobreposição de papéis que por muito pouco mudam de lugar. Essas características permeiam a atuação do artista diante dos materiais e encenam utopias erráticas, fingindo repetir o idêntico. Em vídeo, enquanto se espera, o artista observa o fundo de um recipiente para guardar agulhas e alfinetes, e brinca com a imantação de outro material, reconfigurando a cena, abrindo alternativas de ordenação, barulhos. Ao mesmo tempo, o artista se estimula por revelar as texturas de sianinhas, os brilhos e as cintilâncias de alfinetes: belezas fugidias. E vão-se criando vínculos em vez de mundos fixos e habitados.

    Renato desenha contra o desenho, tal qual Rousseau fizera com a escrita. E por isso simplifica sua tarefa aumentando a complexidade de não achar caminhos principais ou secundários. Aliás, todos os caminhos escolhidos são secundários. Nas visões privilegiadas, mergulha-se numa “paixão errante”, termo que Maurice Blanchot usará para falar das estratégias do escritor. Com isso, reitera o filósofo, “depois de ser o caminhante inocente da juventude, ele é o itinerante glorioso que vai de castelo a castelo, sem conseguir se fixar no sucesso, que o expulsa e persegue”. Os itinerários artísticos de Renato lançam-no nessa atitude de caminhante, olhando em gavetas para enxergar o tempo, sequestrando os últimos exemplares de materiais para tratar a obsolescência, elaborando modos de armazenar, guardar, mesmo que a contradição esteja muito antes, habitando a própria fisicalidade dos materiais que estão sujeitos ao desaparecimento.

    A exposição “Errático, errante” reafirma, assim, a atitude de Renato Bezerra de Mello sobre as maneiras de desenhar, bordar e, sobretudo, de lidar com o tempo na arte. O mundo circular não é infinito.

     

     

  • De onde os rios se encontram para inventar o mar Renato Bezerra de Mello

    Da cidade onde nasci, Recife, ao nordeste do Brasil, tomei um velho ditado, que ligeiramente alterado, utilizei como título para a minha exposição no 18o Ciclo de Exposições do Carpe Diem Arte e Pesquisa / CDAP.

    Já há alguns anos, ou talvez desde sempre, venho observando a praia e o mar de Boa Viagem, lugar onde nasci e onde ainda hoje me reconheço quando ali retorno, depois de uma partida de mais de trinta anos. Talvez por isso, interessam-me mais os dias de chuva, quando as nuvens cobrem quase tudo e a chuva martela, insistentemente, as janelas da casa, transformando a paisagem.

    Quando fui convidado a desenvolver um projeto para o CDAP, encontrava-me no Recife, e pensei imediatamente em trazer para Lisboa aquele mar. Entretanto, passado esse primeiro momento, percorri outros caminhos de procura, lendo, especialmente, sobre o terremoto de 1755, sobre a história da viagem da grande Biblioteca dos Reis de Portugal, e sobre a história da leitura.

    E assim, quase sem perceber, voltou o mar ao meu universo. Desta vez, pelas centenas de rolos de papel vegetal que fui cobrindo com diferentes tons de azul, numa alusão às infinitas cores e ao movimento incessante dos mares e oceanos. Observar o mar, assim como o gesto simples de traçar riscos sobre folhas de papel, estendeu o meu sentimento de espaço e tempo, criou um lugar de calma, no interior do qual pude me espantar pela sua simplicidade.

    A obra que surgiu entrecruza tempos e lembranças; manifesta questões relativas à memória e ao esquecimento; dá-se à livre associação de ideias. E refere-se a uma infinidade de coisas que talvez possa apenas adivinhar, sem jamais ter a certeza do que são.

    Ocupando a antiga cozinha do Palácio Pombal – talvez a mais bonita e misteriosa sala do lugar –, fico pensando em quando a Biblioteca dos Reis de Portugal, já no Rio de Janeiro, expandiu-se pelas catacumbas de um convento carmelita. Serão meus mares e oceanos também obras raras? Documentos secretos de uma biblioteca perdida, guardados em lugares insólitos?

    Sobre uma longa mesa de madeira, situada entre as colunas da antiga cozinha, os rolos de papel estão dispostos lado a lado, uns sobre os outros: azuis infinitos, entre o verde e o violeta. Na pequena sala ao lado, sobre os escombros do lugar, três monitores de TV apresentam Boa Viagem em dias cinzentos, e o seu mar inventado pelos rios que cortam a cidade.

     

     

     

  • Reabertura às margens do Tejo Lunnettes Rouges

    Depois da descoberta entusiasta do Centro de Arte Carpe Diem (que comemora seus cinco anos), eu voltei para a sua nova exposição (até 20 de dezembro): um espaço notável e exigente, que reivindica das obras expostas densidade, para fazer face ao espírito do lugar. De imediato, fiquei menos convencido por certas peças apresentadas, muito neutras ou extremamente leves e irônicas, enquanto outras, mais uma vez, souberam ocupar o espaço com nobreza e força.

    Assim, Mafalda Santos construiu, no Salão de Honra, um muro feito de folhas de papel empilhadas, com discretos efeitos de cor fundidos nas suas bordas, e no jogo de luz do sol: é uma destruição, uma biblioteca em ruína, um monumento funerário ao papel, aos livros, um memorial de burocracias mortas. É também uma escultura minimalista, um obstáculo de uma falsa leveza, enganador, que é preciso contornar, e em relação ao qual o corpo quer ser medido, em vão, imprimindo ali, por vezes, a sua sombra.

    Na cozinha, é um trabalho de memória, um outro monumento com o qual nos confrontamos: aquático, marinho, flexível e convexo, de milhares de cores entre o cinza e o azul. Renato Bezerra de Mello, pensando no oceano que desde a sua cidade natal, Recife, o separa de Lisboa, acumulou centenas de rolos cobertos de tinta azul, empilhados sobre uma longa mesa. Dessa acumulação nasce um sentimento de beleza irrisória, de impotência humana, e de nostalgia sonhadora, que fortalecem, dissimulados nos obscuros recantos da peça, três vídeos também marinhos, enevoados e úmidos. 

    Nesta exposição, também notei o interessante trabalho pós-colonial de Sandro Ferreira, e o jogo de palavras de Tim Etchells (bastante presente em Lisboa este ano), que acompanha uma série de fotografias de textos na cidade (grafites, slogans, ...), feitas por jovens amadores, alguns muito talentosos.

     

     

     

  • Inventário do esquecimento Fernanda Pequeno

    O rastro inscreve a lembrança de uma presença

    que não existe mais e que sempre corre o risco

    de se apagar definitivamente.[i]

     

    O risco azul mascara o rosto capturado pela fotografia e enuncia expressões como: “esquecida”, “sem importância” ou mesmo “desconhecida”. Por outro lado, há algo de “procura-se” na fotografia que Renato Bezerra de Mello monta como pôster. O retrato apropriado pelo artista não identifica a mulher fotografada, mas sugere uma presença vicária. Ao invés de a identidade da procurada se revelar, as expressões faciais foram violadas, mascarando-a. Se toda imagem fotográfica é um vestígio (a presença do ausente e a ausência da presença), Esqueça-me evidencia ainda mais as ambivalências entre comparecimento e ocultamento, entre memória e esquecimento, entre o visível e o invisível, afirmando-se como um vulto.

    A fotografia de Renato atua como metonímia de todo o Inventário do esquecimento por ele empreendido. Inventariar significa listar e descrever minuciosamente bens e, quase sempre, está relacionado à morte de um ente querido. O esquecimento, por sua vez, só pode ser analisado em sua relação com a lembrança, sendo ambos constituintes da memória. Na exposição, o artista chama atenção para o caráter de rastro da fotografia, do documento e da memória, salientando as dualidades implicadas nessa metáfora.

    O rastro pode ser fruto do acaso ou da violência, deixado por um animal ou um criminoso em fuga. Quem deixa rastros não o faz intencionalmente, do mesmo modo que quem os decifra: detetives, arqueólogos, psicanalistas, artistas e poetas seguem pistas como quem decodifica um enigma. Como afirma Jeanne Marie Gagnebin: “rastros não são criados – como são outros signos culturais e linguísticos –, mas sim deixados ou esquecidos”.[ii]

    Em sua exposição, Renato relaciona modalidades de esquecimento, ao partir de um arquivo encontrado no lixo em Paris, formado por pastas coloridas que catalogavam histórias de mulheres que trabalhavam com prostituição na França. Ao apagá-lo, o artista acentua o efeito do tempo que age sobre cartas, fichas de anamnese, recibos, cheques, receitas médicas e fotografias, relegando-as à memória.

    Encobertos por grafite, os documentos, papéis burocráticos e marcas privadas de Folhas em branco resistem ao apagamento. O seu acúmulo gera sombras que dificultam ainda mais a leitura, enfatizadas por densidades e texturas diferentes dos papéis. Na Antiguidade, as tábuas eram enceradas e utilizadas para a escrita corriqueira, pois eram facilmente apagadas e reenceradas. Quando prontas para reutilização funcionavam como tábulas rasas ou “folhas em branco”.

    Enquanto isso, as pastas coloridas que armazenavam os papéis que identificavam e classificavam as subjetividades são recortadas até virarem fiapos na obra Nada, ninguém, coisa alguma. Ao gerar a acumulação de uma poeira colorida, nega-se a desaparição de seus rastros e a sua presença se afirma justamente pela ausência de identificação (nominal, temática, numérica etc.).

    Do processo de cobrir os documentos restou Ouro negro, fragmentos de bastões de grafite que lembram meteoritos expostos em caixa, como pequenas e valiosas joias. Tais restos foram assim denominados porque nos primórdios de sua descoberta, o grafite era raro e extremamente valioso.

    E assim, folhas inundadas de história são veladas pelo grafite, impossibilitando a leitura e a identificação; pastas que classificavam vidas são destruídas até virarem resquícios; o rosto violado é reenquadrado, isolado e ampliado; e bastões de grafite são quebrados, gastos e fracionados.

    É desse modo que todo o material que compõe a exposição foi destituído de categoria e rearranjado. Como quem recompõe rastros, Renato Bezerra de Mello erige uma espécie de memorial dessas subjetividades descartadas. A partir do que foi rechaçado pela instituição que deveria zelar pela vida e história dessas mulheres, o artista age como inventariante de maneiras e possibilidades de memórias. Afirma, então, um gesto contra o apagamento. Afinal, é no esforço pelo esquecimento que as lembranças, muitas vezes, ficam mais evidentes.

    [1] GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006, p. 44.

    [2] Ibidem, p. 113.

    [i] GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: 34, 2006, p. 44.

    [ii] Ibidem, p. 113.

     

     

     

     

  • Entre céu e água Marcelo Campos

     

     

    é preciso que se esqueça de tudo aquilo que lhe ensinaram os mapas tão completos, e que comece a apagar sobre a carta que tem na cabeça, a forma, a aparência geral, até a presença do continente americano.  Aquele que souber trazer para a sua alma a obscuridade e as incertezas daquele século distante poderá ressentir a surpresa, o entusiasmo de toda uma geração quando, naquilo que era até então o infinito, se esboçou, pouco a pouco os primeiros contornos de uma terra insuspeita.

    (Stefan Zweig. Amerigo)

    Vida e narração configuram uma existência indissociável. Fatos narrados e vividos se confundem na emissão da voz, conjecturando-se ofertas de sentido para a troca de confidências, a organização do caos da experiência, o drama dos sentimentos cotidianos. De outro modo, os desenhos da escrita tecem sinais para espectadores privados (nos diários, nas cartas) ou públicos (em ofícios, leis, livros). Escrita e desenho se fundem, por exemplo, na tentativa colonialista de criar limites em terras, ilhas, continentes nas práticas cartográficas.

    A exposição “Entre céu e água”, de Renato Bezerra de Mello, parte do impacto dessa troca intersubjetiva entre relato, empiria e imaginação, prática recorrente nos trabalhos do artista. Ao se fundamentar nos modos de estender o tempo da práxis, o artista procura as ações diretas, como desenhar, coser, escrever e, a partir disso, combate o dispêndio, aproveitando-se dos restos, das sobras de papel, das cargas de canetas, dos avessos, dos invólucros.

    Aqui, o artista se interessa pela nomeação da América, fato que confere à Américo Vespúcio não somente uma homenagem, como era comum nos tempos de Colombo, mas o coloca na condição de narrador que não atribui o achamento de terra ao engano, ou como desvio para se chegar às Índias, como na história de Cabral. Renato pesquisou mapas de diversas épocas e os colocou em bordados sobre linho, exibindo-nos modificações morfológicas dos imaginários de diversas épocas, alterando-os, consideravelmente, com a inclusão das duas costas, Atlântico e Pacífico.

    Ao mesmo tempo, nos bordados, vemos os monstros marinhos das primeiras cartas náuticas. Tais relatos nos impactam tanto pela construção imaginária de seres impossíveis, quanto, depois de aportar, pela difícil aceitação dos que já estavam em terra. Em um dos trabalhos, os nativos são referenciados com um mapa do Brasil formado por mais de mil etnias ameríndias.

    Na exposição, Renato Bezerra de Mello também se interessou pela possibilidade de agir no pequeno, nos gestos manufaturados, estimulado por outra grandiosa história, a de uma biblioteca pertencente à família real portuguesa que atravessaria o Atlântico quando da vinda de d. João e de parte da corte, em 1807. Com os percalços da pressa de embarcar, diante das iminentes invasões de Portugal por tropas francesas, como nos explica Lilia Moritz Schwarcz, a biblioteca foi deixada no porto de Lisboa. Porém, o príncipe regente exigiu a vinda da Real Livraria três anos depois.

    Renato Bezerra de Mello seleciona, a partir dessa impactante imagem, um relato: a carta do bibliotecário Luiz Joaquim dos Santos Marrocos ao pai, um dos embarcados na travessia, narrando as angústias, o horror, o incômodo da empreitada.

    Com isso, vemos céu e água metaforizarem-se em trabalhos pontuais e instalações em que “avistamentos” diversos criam o imaginário curioso da expectativa pelo porvir, em mapas, cores marítimas, monstros, palavras que misturam as vozes do invasor e dos nativos. A narrativa, assim, exterioriza-se, enviesadamente, em cargas de canetas azuis, etiquetas, papéis amarelecidos, textos. Tais exterioridades são partilhadas com o espectador como cartas, apresentadas ou esquecidas, evidenciadas na individualidade ou superpostas em opacidades.

    A exposição “Entre céu e água” trata, sobretudo, da possibilidade do relato em conferir sentido aos intervalos de tempo quando, aparentemente, não percebemos o que se passa.

     

  • O que a gente não tem a coragem de jogar fora Bianca Bernardo

    Imagine voltar à casa da infância e encontrar um espaço vazio que não pode ser preenchido. No espaço onde o silêncio ganha densidade ruidosa e abafa as palavras dentro do peito, a voz que desejamos escutar não vive. Estranha sensação é precisar nascer de novo, dessa vez sozinho no mundo, grávido das formas de si. Para aquele que sempre quis preservar o instante, eis o desejo secreto. Quem nunca sonhou em parar o tempo? Somos nós a girar a ampulheta ou estamos mergulhados nos grãos de areia, deslizando por momentos irreversí­veis, cada um a percorrer o próprio caminho? Na antiga sala de visitas, os móveis permaneciam resguardados por panos, mantendo a função de impedir a impregnação constante da poeira. Um mistério habitava esses objetos à espera do acontecimento: o dia para serem descobertos, e, no toque sútil do corpo sobre a mobí­lia, saber que reside a promessa de intimidade com o mundo. No exercí­cio de sonhar a memória, a casa da infância perdida na noite dos tempos profundos pode ser resgatada, assim como um barco que não desaparece no naufrágio e está apenas adormecido.

    Na exposição individual O que a gente não tem coragem de jogar fora, o artista Renato Bezerra de Mello partiu de objetos e imagens guardados ao longo de sua trajetória, trazidos da infância, recebidos como herança ou mesmo produzidos durante seu processo de formação artística na França. Entre desenhos, esculturas, bordados e gravuras, o artista reinventa a memória através do gesto que busca tanto estancar o tempo, quanto propor novas formas para o corpo. Por meio de costuras que contornam para libertar a presença de sua ausência, o artista corajosamente se lança ao encontro do desejo de reparação, compreendendo que toda lembrança guarda em si uma cerimônia de adeus.

    O encantamento na obra de Renato Bezerra de Mello começa no mergulho em sua coleção de afetos. Guardar é importante. E com delicadeza, sua metodologia de juntar e reunir objetos como próteses da memória, evidencia a percepção da expressão simbólica que atravessa e ressignifica a materialidade. A metáfora do espaço íntimo figurada em cada objeto revela, não apenas uma memória particular, mas sobretudo aponta para o complexo conjunto de interações que se dão sempre no campo social. Os objetos não estão destituí­dos de uma experiência intrí­nseca e são capazes de preservar o tempo das coisas vividas. Na produção de sua linguagem artística, Renato cria relações com sua coleção na potência de expandi-la e transformá-la. Em seu ateliê, o artista escuta o verbo contido dentro do tempo vivido de cada objeto, que por meio da ação de seu intento, são movidos para uma nova vida como obras de arte.

    Nas páginas que introduzem os capí­tulos de um livro encontrado na casa de sua mãe, as minúsculas manchas de fungo chamaram a atenção do artista. Encontrou também um rolo de tecido fabricado na antiga confecção da famí­lia, que apresentava as mesmas pequenas manchas de formas irregulares. Usando uma paleta de cores variadas, tanto nas páginas de papel quanto sobre o tecido, o artista começou a desenhar contornos ao redor das manchas de fungo, com lápis de cor e linhas de costura. Pacientemente, o artista trabalha sobre esses materiais, com o desí­gnio de uma luta inglória contra a morte. No imaginário do tempo eterno, o artista estanca a projeção dos fungos com seu gesto criador, e instaura a beleza da vida no contorno da forma que constrói os limites necessários para impedir a decomposição. No arranjo que costura botões fora de suas casas, o artista desorienta a função do vestir-se para formar um grande cordão que atravessa o espaço, no qual encontramos a nós mesmos, os nascituros, e o nosso sentimento compartilhado de solidão e existência. Há muitos momentos em que não temos um modelo a ser seguido, e que habitamos a liberdade ao deixar surgir o descontrole. Na série de esculturas feitas com parafina e linha, Renato Bezerra de Mello inventa novas formas para órgãos sem corpo, como signos abertos ao desejo do ser que caminha para a descoberta de quem se é. Ao envolver com a linha os moldes de mãos produzidas em parafina, o artista descaracteriza a figura do corpo humano conhecido em sua exterioridade e normatividade, nos convida para entrar dentro do corpo e permitir a imaginação de novos órgãos, germinados pelas formas intuitivas. A viagem pelo interior do corpo é como entrar dentro de uma casa í­ntima e abrir os seus cômodos e armários. Na gaveta, estavam guardadas aquelas cartinhas antigas, escritas à mão, que cuidadosamente protegidas ao longo dos anos estavam envolvidas pela latência da espera. Um dia, o artista achou as cartinhas como quem descobre um tesouro escondido, tão raro quanto a arquitetura de uma caligrafia sagrada. Foi então que ele perguntou: por que vocês existem? E as cartas responderam: para não esquecer.

     

  • "Que o nosso nome não caia no esquecimento" Bianca Bernardo
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