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Waltercio Caldas

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Waltercio Caldas

Waltercio Caldas

Waltércio Caldas

1946, Rio de Janeiro, Brasil

Vive e trabalha no Rio de Janeiro

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Escultor, desenhista, artista gráfico, cenógrafo. Waltércio Caldas estudou pintura com Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro - MAM/RJ. Entre 1969 e 1975, realiza desenhos, objetos e fotografias de caráter conceitual. Na década de 1970 é co-editor da revista Malasartes, participa da publicação A Parte do Fogo e publica com Carlos Zílio (1944), Ronaldo Brito (1949) e José Resende (1945) o artigo O Boom, o Pós-Boom, o Dis-Boom, no jornal Opinião. Em 1969, realiza os Condutores de Percepção, trabalho chave em sua carreira. Inicia obras a partir da inserção de objetos rotineiros em estojos bem-cuidados com uma plaqueta onde se lê o nome do trabalho, elemento definidor da sua trajetória.  Em 1971, participa do Salão de Verão, no MAM, Rio de Janeiro - onde exibe três objetos-caixas montados na sua primeira individual e obtém excelente resposta de crítica, do público e do mercado. Em 1979, sua produção é analisada no livro Aparelhos, primeiro livro sobre o conjunto de sua obra, e Ronaldo Brito comenta: “O que lhe interessa é a produção de um clic que provoque no espectador um momento de desorientação psíquica. A arte, dessa maneira, é muito menos objeto de contemplação do que uma forma ativa de veicular um pensamento, de produzir uma crise nos hábitos mentais do espectador”.

Recebe, em 1993, o Prêmio Mário Pedrosa, da Associação Brasileira de Críticos de Arte - ABCA, por mostra individual realizada no Museu Nacional de Belas Artes - MNBA, no Rio de Janeiro. Em 1978, o artista produz Talco sobre livro ilustrado de Henri Matisse, Convite ao raciocínio, Aparelho de arte, Prato comum com elásticos, Tubo de ferro / Copo de leite e A experiência Mondrian. Em 1996, lança a obra O Livro Velázquez e realiza a mostra individual Anotações 1969/1996, no Paço Imperial, Rio de Janeiro, apresentando pela primeira vez cadernos de estudos. Em 1985, Caldas muda-se para Nova Iorque e elabora a obra Escultura para todos os materiais não-transparentes, que se multiplica em diversos pares de semi-esferas, diferentes tamanhos e materiais (madeira, granito, mármore etc.), trabalho de uma constante expansão, que se funde com o ar. Integra, o "Panorama de arte atual brasileira - Formas tridimensionais", no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Em 1989, instala a sua primeira escultura pública: O Jardim Instantâneo no Parque do Carmo, em São Paulo e cinco anos depois produz outra peça em espaço aberto: Omkring, na Noruega.

Em 1993, realiza a exposição individual "O ar mais próximo", no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de janeiro. A galeria do museu foi ocupada com finas, rarefeitas e sinuosas linhas de lã coloridas que pendiam do teto, configurando a exposição mais radical do artista na questão dos limites entre o visível e o invisível, questão recorrente de uma obra que repropõe o "ar" como "corpo". Aqui, Waltercio radicaliza igualmente a improbabilidade fotográfica de suas peças, que se esquivam, da reprodução. A exposição recebe Prêmio Mário Pedrosa, conferido pela Associação de Críticos de Arte. Em 1996, realiza o monumento Escultura para o Rio, no centro do Rio de Janeiro, onde se evidencia a sutileza conceitual que sempre caracterizou a poética de seu trabalho, aliada a uma capacidade de mobilização de espaço público.  Waltercio provoca essa tensão e extrai força da ambigüidade entre o que é que é arte e o que não é, quando é e quando deixa de ser. Suas questões provocam um estado de suspensão, desmontam a certeza da experiência, deslocam o espectador para uma posição inquietante, onde a percepção visual ativa o pensamento. Relação conflitante deflagrada pelo cálculo preciso e parcimonioso de meios, limpidez de formas, elegância que contrasta com o inacabamento ou a virtualidade que também sugerem. Aliando inteligência formal e jogos provocativos, Waltercio Caldas gera interrogações sutis para cada espectador,  ensinando a ver e pensar para além do que hábito do olhar nos ensina.

  • Estados de imagem Ligia Canongia
    Ligia Canongia - Estados de imagem
    1/5/2001

    Ver não é
    Ver é onde.
    Macia metamorfose
    Na pele dos sinais.

    Waltercio Caldas

    Uma retrospectiva de quinze anos de trabalho – recorde de uma carreira que já soma mais de trinta anos – não significa uma acumulação de obras com vistas a criar um panorama quantitativo ou a explicitar uma listagem de técnicas, procedimentos e idéias. Isso seria reduzir a produção do artista a um repertório classificável e inerte, longe de suas inquietações e de sua vitalidade.

    O que esta exposição propõe não pode ser confundido com algo que suponha um processo “evolutivo”, como se as coisas saíssem necessariamente umas das outras, legitimando uma “coerência” fácil e previsível. Embora o trabalho de Waltercio Caldas possua uma lógica irrefutável, essa lógica não é reconhecível por simples encadeamento cronológico, mas através de relações que se entrelaçam em tempos distintos, ora avançando, ora recuando, em processo de recorrência interior permanente. O que nos permite estabelecer conexões entre obras de períodos diferentes, como Aparelho de Arte, de 1978, e a Série Veneza, de 1997, debruçadas sobre a superposição de camadas de espaço e de tempo.

    Essa exposição é uma síntese “viva”, que vai nos permitir penetrar na “natureza dos jogos”, de Waltercio, jogos que se formulam por enigmas, por deslizamentos de sentido, por “acontecimentos”. E “acontecer”, etimologicamente, significa descobrir com o olhar, despertar com o olhar. Não sem motivos, um dos aspectos singulares da obra do artista é investigar as possibilidades desse olhar, um olhar-prelúdio das próprias coisas, capaz de perceber, em ato simultâneo, o aparecer e o desaparecer: “absorver com os olhos uma nitidez recém-chegada”(1).

    Pode parecer estranho, mas, para falar da escultura de Waltercio Caldas, gostaríamos de voltar à pintura de Cézanne.

    O que queria Cézanne pintar? O que tanto o angustiava? Cézanne queria tão somente tornar tangível e visível algo que fluía por entre as coisas; queria ir além das representações estáticas e dos arquétipos, para encontrar o pulsar vivo do mundo, a existência móvel, turva e volátil da natureza.

    Talvez Cézanne perseguisse a velocidade da visão através da natureza; ou, inversamente, a velocidade da natureza percebida pelos olhos. Era, enfim, a troca, as extensões e os limites dessa troca – entre o que vê e o que é visto – o que interessava ao grande mestre. Apesar da solidez de suas figuras, não era a casa, a árvore, a pedra, os volumes que interessavam, mas a reciprocidade de todas as coisas no ambiente, a forma como interagem, como se atingem, como se alteram umas às outras, quando as percebemos no movimento de seus fluxos e na precipitação de nosso olhar.

    Tudo o que Cézanne deu a ver pode ser condensado nessa vontade alucinada de representar o “irrepresentável”, de tornar o presente aquilo que não se apresenta com tangibilidade imediata, tudo o que flui fisicamente, todos os elementos que nos fazem perceber, sem que os percebamos: o ar, o movimento, o tempo, elementos etéreos que trafegam através e entre os corpos. Cézanne pensou o espaço, tentou mergulhar na natureza dos espaços e dos vazios, para compreender a ordem de sua interferência sobre a realidade física dos volumes e dos objetos concretos do mundo.

    O esforço da pintura moderna, afinal, foi este: transferir o interesse da técnica ou da matéria para a questão ótica, que se exaure nos limites do olhar. Mas, o curioso é que, à época, a busca da pintura por tornar-se fundamentalmente ótica tinha por pano de fundo o seu distanciamento do campo escultórico, intrinsecamente ligado aos volumes e às relações táteis. Foi justo para eliminar as reminiscências esculturais que a pintura assumiu a baliza ótica e a superfície.

    O destino, porém, foi irônico, e fez com que a escultura, ela também, se remetesse ao mesmo caminho e fosse se tornando cada vez mais superficial, imaterial, incorpórea. Uma escultura de Gabo, nesse sentido, equivalia a uma pintura de Mondrian.

    Waltercio Caldas tem dito que talvez uma das principais “matérias” de seu trabalho, nos últimos tempos, tem sido a história da arte. Não a história da arte como uma cadeia fechada de formas e de sentidos, mas como potencial de re-significação permanente, aberta a outras e produtivas recorrências: “a história da arte como uma dinâmica de significação e não uma passagem no tempo” (2). Heidegger diz que “o que quer que pensemos e qualquer que seja a maneira como procuramos pensar, sempre nos movimentamos no âmbito da tradição. Ela impera quando nos liberta do pensamento que olha para trás, e nos liberta para um pensamento do futuro, que não é mais planificação. Mas, somente se nos voltarmos pensando para o já pensado, seremos convocados para o que ainda está para ser pensado” (3).

    Esse raciocínio parece “libertar” Waltercio para revisitar o passado da arte, em outros mestres, e em sua própria obra. Sem cair nas planificações que reduzem tudo ao “mesmo”, o artista reflete sobre a tradição e o já feito, como “matéria” para o que ainda virá: o passado como fonte para o devir.

    Se voltarmos, portanto, a Cézanne, é para estabelecer esse link possível entre épocas, gêneros e práticas diferentes, mas que se interligam produtiva e poeticamente no tempo. Como Cézanne, Waltercio quer dar a ver o invisível: a fluência entre as matérias, a reciprocidade entre os corpos e o vazio, a luz, o trajeto, as distâncias, tudo o que “entra por debaixo da porta” (4).

    Certa vez, ele criou uma metáfora delicada e precisa para falar dessa vontade de perscrutar o impercebível. Perguntava se seríamos capazes de “ver” certas metamorfoses dos objetos. Por exemplo, uma flor. Sabemos que ela está constantemente crescendo e se modificando, mas não podemos ver o movimento que acontece ali. Esse movimento invisível, em ação física e permanente, tem realidade de fato, orgânica, dinâmica, mas não tangível. É latência e não evidência. E essa seria uma questão interessante, porque é aí, na tênue existência de uma materialidade impalpável, mas vibrante, no puro movimento, que a obra de Waltercio Caldas se faz, estruturando-se com e a partir dessas realidades indeléveis.

    No trabalho de Waltercio, a materialidade desvanece, a coisa passa para “o outro lado”, onde obra e espaço se estabelecem reciprocamente, onde o corpo equivale à sua própria sombra. Nele, o vazio é estrutura, como já o fora no passado para a escultura de Franz Weissmann, principalmente nas que eram puras linhas, desenhando o mundo. De certa forma, inclusive, a obra de ambos guarda semelhanças de delicadeza e elegância.

    As esculturas de Waltercio aderem ao espaço, querem que a forma se ajuste à fluência e à intangibilidade do ar. Mas, apesar da maioria das peças possuir pouca massa, apesar da fineza de suas linhas e da sutileza desses quase-corpos / quase-gás, elas mantêm uma concentração impressionante. É como se o espaço-entre, o espaço-fora, o ar, preenchessem em nosso imaginário o lugar do volume, emprestando ao espaço uma dimensão “volumétrica fantasmática”.

    Waltercio trata o espaço como tempo. Ou vice-versa. A instauração física de seus objetos no espaço dá-se com a mesma fugacidade temporal com que o percebemos. Assim como a matéria se desvanece e se enxuga até tornar-se quase vestígio de si mesma, quase sombra de um corpo, assim também o tempo de sua atuação conforma-se em ser instante, fração mínima de permanência.

    Mas, se a mirada possível que os objetos nos oferecem, em sua breve e intangível presença, é efêmera, ela se converte, ao contrário, em imagem poderosa e renitente em nossa memória. Com aquele lance mínimo – um nada -, tudo se esclarece e ganha contornos, talvez porque o prenúncio já seja a própria “coisa”, todo o sentido; talvez porque aqueles objetos queiram ser tão-somente “peles de sinais”.

    As esculturas dissolvem-se no espaço como a mostrar seus últimos momentos, ou, ao contrário, como a mostrar o seu brotar no espaço, com a aparição de seus primeiros perfis. Vão e vêm, incessantemente, sem definição absoluta no espaço, sem estabilidade fixa no tempo; momentos de passagem. Waltercio é um artista cujo olhar persegue, na natureza e na história, a inefabilidade do espaço e do tempo. Tenta, em seus objetos – rastros sutis de presença -, congelar uma parcela mínima da percepção, para que possamos ter a rápida e inteira sensação daquilo que nos envolve: a consciência momentânea, física e mental, do ar.

    Com precisão dos sábios e dos profetas, o artista é sempre aquele que nos leva, simultaneamente, ao óbvio e ao mágico, aos fenômenos e às dúvidas. Waltercio vai ao limite das coisas, de sua aparição a seu esquecimento, onde o invisível inventa um lugar.

    Mas, o lugar da escultura de Waltercio Caldas não se define, porque vagueia na troca com o vazio, apenas pontuando os ritmos dessa troca, traçando pontos e linhas que rastreiam esse fluxo. Os clássicos queriam a massa; os modernos, a superfície; Waltercio, a linha e o ar. Sua obra parece ser um momento repentino, um lapso, em que o espaço se deixa “desenhar” brevemente, uma materialização apreendida em velocidade. Ela é esse instante permeável ao espaço, fugaz e precisa, um corte cirúrgico no vazio. “O sentido: fazer constar nos objetos sua capacidade inicial de aparecer” (5).

    O que os trabalhos fazem é mobilizar o espaço na sua completude, interagindo forma e vazio como um só tecido, movendo-se na mesma fluência. Para isso, é necessário que a matéria se volatilize, que o olhar do espectador, ao buscar o objeto, encontre o espaço e, inversamente, ao procurar o espaço, defronte-se com o objeto. Eles se auto-demandam mutuamente, querem ter a mesma qualidade física, pertencer ao mundo imaterial das abstrações puras. Como o crescimento das flores, são mais latências que evidência, são energias.

    O interesse de Waltercio está no “olhar intermediário”, aquele que se apercebe da fração, do relance, da rápida ocorrência visual que acontece entre o olho e o alvo propriamente dito a que se dirige. Em seu texto “Prefácio”, escrito para o livro Manual da Ciência Popular, ele ironiza e diz: “(...) enfrentemos, portanto, as dificuldades do caminho, nunca nos esquecendo que uma das mais curiosas características da arte é que sua aparência, em muitos casos, tende a ser transparência. J. Johns, um artista americano, diz que não suporta usar óculos pois não consegue abstrair os aros, atitude típica de quem não ignora o que é “olhar intermediário” (6).

    Suas esculturas não querem ser, portanto, o alvo, mas a materialidade efêmera dessa outra potência espacial intermediária, que vemos num jato de visão, que vislumbramos, mais do que vemos. É esse vislumbre de “coisa”, de “coisa” já toda imiscuída de espaço, é essa “coisa-espaço” que o trabalho propõe: uma faísca visível, tão próxima, nos parece aqui, das chamas de Yves Klein. O problema é que toda atividade mental que se pretende exprimir por imagens precisa de uma forma. Mas Waltercio quer que a forma tenha a imaterialidade da própria imagem. Ele busca, sem dúvida, uma visibilidade real para a imagem, o que é, em si, um paradoxo.

    Mantém, assim, no mundo concreto de seus objetos, uma natureza ainda intrinsecamente imaterial, mental, sem fisicalidade e sem corpo, como é a natureza do mundo das imagens. O sentido é fazer algo invisível aparecer, mas aparecer tão fugaz e momentaneamente, que pudéssemos, num piscar de olhos, perder a sua forma, esquecer o seu contorno.

    Historicamente, alguns filósofos separavam imagem e pensamento, dando à imagem estatuto de “coisa”, corporal e material. A imagem era vista ainda como um estado do corpo, um mundo de idéias confusas, distinto do mundo da razão. Outros já admitiam que a imagem pudesse ser penetrada por intelectualidade, mas ainda insistindo no caráter mecânico de suas associações, que podiam forjar idéias falsas. Sartre talvez tenha sido o primeiro a fazer a diferença entre a existência como coisa e a existência como imagem. E nos dá um exemplo simples, quase didático, dessa diferença, falando da folha de papel em branco, quando vista, em presença material, e a folha branca que é “lembrada” e que adquire ali (quando não se desfruta mais de sua presença), uma “identidade de essência”. Nesse momento, “ela não existe mais de fato, existe em imagem” (7), algo portanto diverso de uma presença. Sartre diz que a imagem é uma forma de consciência da coisa, e que, assim, o pensamento penetra profundamente a imagem.

    A obra de Waltercio Caldas circula possivelmente em torno dessas questões. Tenta fazer com que o próprio objeto assuma a feição dessa “folha branca lembrada”, que seria, essencialmente, a coisa como mero vestígio de si mesma, reconduzida à condição pura de imagem. E, não seria a imagem uma “pele de presença”? O trabalho de arte não seria tentar tornar essa “pele” tangível? Ao propor questionamentos dessa ordem, o trabalho de Waltercio legitima o pensamento sartriano de que a imagem, sobretudo quando lidamos com a imagem estética, carrega, sim, ao se formular, uma potência intelectual.

    Mas, Waltercio não “demonstra”, não “responde”, não pontifica verdades, deixando vagar no espaço cognitivo as mesmas dúvidas que a obra, como “coisa” coloca no ambiente natural. Afinal, não seria pertinente à natureza da imagem viver da sua condição de dúvida? E é, com certo ceticismo, aquele que seu humor tão finamente deixa transparecer, que o artista enfrenta os desafios da certeza. “Há uma dúvida que pertence à clareza” (8). Não sem motivos o crítico Paulo Sérgio Duarte fala do trabalho de Waltercio como uma “dúvida feliz”, em que a novidade seria sempre o seu “resíduo cético”. Diz ele: “negando o culto da imagem e a falsa generosidade desse universo farto de figuras e pobre em raciocínio, as esculturas de Waltercio trazem na sua ascese uma sutil dose de humor da qual deriva o prazer” (9).

    Waltercio Caldas lança problemas acerca da produção da imagem no mundo contemporâneo, do papel que ainda pode desempenhar no âmbito espiritual do homem e, de certa forma, ri da proliferação caudalosa das imagens nas sociedades de hoje. Reserva-se, pois, na discrição de uma economia formal extrema, esquiva e enigmática, em que apenas “existe o olhar ao revés” (10).

    Como ele costuma dizer, esse olhar ao revés é aquele que não vê o objeto na ida, mas na volta. Porque se trata de um objeto-espelho, arredio na sua transparência, que se exaure antes de se deixar reter. Um objeto que apenas “roça o mundo” (11), que não se eterniza, não tem nome. O nome que ele persegue é para o lugar entre as coisas, para o lugar silencioso do repouso das coisas, ali onde elas estão resguardadas pela distância. Para Waltercio, “o mais belo na arte é que o lá-não-está” (12). Se somente a distância pode preservar a identidade dos objetos, é ela que interessa como “objeto” do olhar. Esse espaço “entre”, fugidio e vaporoso que leva o artista a buscar materiais equivalentes, como o vidro, o álcool, espelhos e superfícies altamente polidas, resvala o tempo todo, expande-se e recua, propaga-se e concentra-se, dissemina-se e recolhe-se. É um espaço que penetra o trabalho e por ele é penetrado, confundindo-se em mútua e constante fluência. Por isso, a imagem não é senão um “estado de imagem” provisório, que se renova a cada mirada, como se sempre a estivéssemos vendo pela primeira vez, e nunca víssemos completamente.

    E não a vemos completamente nem quando fotografada, pois é justo nessa circunstancia que a imagem mais se furta à apropriação. Por ter a máquina fotográfica a possibilidade de ver por um olho só – o da lente -, ela achata a profundidade, solidifica a ambiência, congela o ar. E se a obra, como a de Waltercio, afirma esse espaço como sua condição “material”, eis o problema. A fotografia trai o trabalho, torna infiel a sua reprodução, suspende aquela “pele de presença”, que é quase e tão-somente um pronuncio de coisa, uma semicoisa. O espacial, em Waltercio,confunde-se com o espiritual; é da ordem de uma freqüência impalpável e poética, que a maquina não registra, ou registra em estado estático, sem alma. Dizem que, no surgimento da fotografia, as pessoas temiam se deixar fotografar com mede que o retrato lhes roubasse a alma. Devido ao automatismo de sua gênese técnica e, principalmente, pelo corte definitivo que efetua sobre o real, a fotografia interrompe, imobiliza e isola uma fatia do espaço-tempo. “O curso, a corrida, o Tempo não têm validade aos olhos da fotografia” (13). E, por ser um corte radical na continuidade, na duração e na extensão, a foto distorce o processo de inscrição da imagem de Waltercio Caldas, toda ela expansão e mobilidade. Ao mundo da fotografia, “congelada na interminável duração das estátuas” (14), a obra do artista contrapõe a fluência temporal e o mundo instável, furtando-se claramente ao cut que a separa do fio do tempo e de sua anima. Um trabalho que se oferece como “instante de passagem” não poderia se deixar abater por esse “instante perpétuo” da “morte” fotográfica.

    Já em 1976, com o Dado no Gelo, Waltercio fazia uma formulação gráfica de extremo requinte e inteligência a esse respeito. Criada para subsistir apenas como reprodução, a imagem é um comentário mordaz à eternidade fotográfica. O dado congelado, como “coisa” real, só permanece nesse estado pelo curto prazo da solidificação da água, sendo, inclusive, um dos “objetos” mais fugazes da obra do artista. Esse objeto-coisa, vivo, ou ao vivo, termina quando da liquefação do gelo. A sua sobrevida, que coincide, ironicamente, com a sua morte como objeto, só é garantida pela fotografia. A reprodução fotográfica o faz “ressuscitar”, mas, paradoxalmente, é esse o momento em que ele se “solidifica”, congelando aí, inclusive, a possibilidade do “jogo”. O dado surge como elemento da sorte, do destino, da vida; morto (como “coisa”) e eternizado (como imagem) pelo registro da máquina.

    Mas é preciso dizer que esse renascimento fotográfico da coisa como imagem é fruto especifico desse trabalho, pensado exatamente para funcionar num meio gráfico e como metáfora do processo de reprodução, que petrifica a “vida” dos objetos. Aqui, Waltercio ironiza, ao mesmo tempo em que realiza justamente aquilo que teme: o congelamento na superfície fotográfica da pulsão original de suas esculturas.

    As transparências, os espelhos, as formas aéreas e transitórias da maioria de suas peças resvalam, suspendem a noção eternizada do mundo. E isso ainda nos leva a pensar o quão distante Waltercio está dos clássicos, da harmonia segura de suas formas. A harmonia e o equilíbrio são agora de outra natureza, e podem estar no vértice dos estados de suspensão, nesses atos constantes de passagem, na leveza de objetos e palavras apenas sussurrados, longe do “espelho neutro” da reprodução. A obra de Waltercio Caldas “olha ao revés”, desconfia da realidade e da cópia, mantendo-se indevassável, porque ar.

    Esta exposição, resumo dos últimos quinze anos da produção do artista, certamente nos levará ao encontro de uma especialidade e de um tempo que “perdemos” seguidamente na velocidade cega de nosso cotidiano. É preciso certa disponibilidade ao silencio e à “ruminação” desses objetos, para chegar a penetrá-los. O artista costuma mesmo dizer que “os objetos têm um tempo infinitamente mais lento do que o nosso”. Os insights podem ocorrer com a rapidez de um tiro, mas a reflexão meditativa e calma, que circunda a sua poética tão confiante e extraordinária, só poderia acontecer longo do afã das ansiedades.

    É curioso que, na mesma busca por apreender as vicissitudes do Espaço e do Tempo, a obra cubista, por exemplo, e a de Waltercio Caldas se distanciem tanto. A primeira imprimiu claramente a sua angústia diante da tarefa, fazendo com que esse espaço-tempo se tornasse convulso e fragmentado, como se apenas a soma de “recortes” pudesse nos dar a completude do real; a segunda, com menos ruído e mais diligência, chega à realidade das coisas com a clareza que elas têm, sem precisar “destruí-las”, apenas realçando o seu entrelaçamento com o ar. Será preciso, portanto, que, aqui, o espectador se mova, ele também, como um véu que flana lenta e cuidadosamente pelo ambiente, na poeira das coisas, mas com o olhar imantado, febril e aceso para as brechas do mundo.

    Referencias Bibliográficas

    1, 4, 5, 8, 10, 11 e 12 – Escritos do artista.

    2 e 15 – Extratos de entrevista do artista a Lígia Canongia, em catálogo da exposição de Waltercio Caldas: “A série Veneza”, Centro Cultural Light, Rio de Janeiro, 1998.

    3. Heidegger, Martin. O Principio da identidade, col. Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1973.

    6. Caldas, Waltercio, “Prefácio”, em Manual da ciência popular, Funarte, Rio de Janeiro, 1982.

    7. Sartre, Jean-Paul, A Imaginação, col. Os Pensadores, Abril Cultural, São Paulo, 1973.

    9. Duarte, Paulo Sérgio. “Interrogações construtivas”, em catálogo da exposição “Waltercio Caldas”, Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo, 1994.

    13 e 14 Dubois, Phillipe. O ato fotográfico, Papirus, São Paulo, 1994.

    Texto originalmente publicado no livro Waltercio Caldas 1985 – 2000, Centro cultural do Banco do Brasil.

     

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