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Jesper Dyrehauge ~

Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta a primeira mostra individual no Brasil do artista dinamarquês Jesper Dyrehauge (1966). Com curadoria de Aukje Lepoutre Ravn, a mostra apresenta 22 obras inéditas, incluindo 12 telas produzidas no Rio de Janeiro, e 10 fotografias.

DE 15.Abr.2016 A 21.Mai.2016

Leia o texto da Exposição

“Um ponto, uma linha, um buraco…”

 

Por Aukje Lepoutre Ravn

 

“Uma linha é um ponto que foi dar uma caminhada…” – Paul Klee

 

Abrir esse ensaio com essa famosa frase do pintor suíço Paul Klee parece um modo apropriado de introduzir o trabalho do artista Jesper Dyrehauge (nascido na Dinamarca em 1966). Ilustrando a tradição da escrita, movimento e forma, a citação de Klee adiciona uma informalidade bem-humorada que elimina o elemento da conformidade e introduz a ideia de desenhar como um processo orgânico e transformativo em constante movimento. Da mesma forma, as obras de Jesper Dyrehauge desafiam nossos modos perceptivos de olhar e buscam dissolver as convenções históricas da arte sobre a linguagem visual formal.

 

Durante a última década, Dyrehauge dedicou sua prática a investigar a noção do que constitui a pintura. Sem nenhum ponto de referência específico, ele trabalha em um estilo não figurativo, informado por interesses formais como cor, linha, tamanho e textura – tendo estado recentemente preocupado com as qualidades formais da tinta aplicada à tela. Nessa empreitada, Dyrehauge poderia ser facilmente categorizado como um tipo de pintor modernista.  Alguém dando continuidade ao legado da pintura abstrata dos anos de 1950 e 60, conforme descrita pelo historiador de arte americano Clement Greenberg, que acreditava que os modos tecnicamente proficientes de pintar abstrações representavam o ponto culminante das realizações artísticas modernas1. Porém, ao convidar intencionalmente elementos do acaso, do erro e do humor a penetrarem em seu trabalho, Dyrehauge propõe a possibilidade da pintura existir em um estado muito mais fluido, não categorizado e não hierárquico – um estado “no meio de”.

 

Entretanto, assim como muito do trabalho de Dyrehauge toma a forma imediata da pintura, é igualmente claro para ele que seu trabalho deve negar o supremo status hierárquico da arte moderna e, em vez disso, aloca atenção as mais elusivas e coincidentes possibilidades da obra de arte e às qualidades que ela pode gerar. “A pintura moderna expressa pelo gesto da pincelada do artista branco e macho é deveras carregada com a promessa de gênio iminente e sublime transcendência. Esse discurso não é meu ponto de referência – é, em vez disso, meu ponto de fuga”, declarou o artista. “Assim, prefiro chamar meu trabalho de ‘trabalhos’ ou telas em vez de pinturas”.

 

Para Dyrehauge, o primeiro passo dessa fuga foi remover o pincel. Em vez disso, ele iria usar um simples vegetal como uma cenoura ou uma batata como ferramenta de aplicação. Como essa escolha de material naturalmente conota um nível de domesticação, um comentário irônico à ideia de “pincel mágico” é aludido.  O segundo passo foi aplicar um método um tanto mecânico. Ele ainda deveria ser executado pela mão do artista, mas, ao mesmo tempo, permitir-lhe que se distanciasse do “ato de pintar” apenas o suficiente, de modo a impedir-se de “tornar-se a obra”.  Com essas limitações construtivas, Dyrehauge inventou seu estilo-assinatura de mono-atividade de “carimbar com cenoura” – um modo de prática que ainda define seu trabalho hoje.

 

Carimbar com cenoura

 

A técnica de carimbar com cenoura de Dyrehauge é simplesmente baseada em carimbar linhas de pontos coloridos em uma tela de linho cru, usando a grade como seu padrão diretivo. Variando apenas ligeiramente as cores, a composição e o tamanho, Dyrehauge dá formas e camadas a suas telas pontilhadas. Antes de começar uma nova obra, Dyrehauge prepara sua cenoura, cortando-a em forma de quadrados, triângulos ou círculos – então ele escolhe sua paleta de cores. Com frequência suas cores são monocromáticas, em outras ocasiões, duas cores contrastantes ou harmonizadas são combinadas em uma tela. Para o carimbar propriamente dito, a tela jaz, reta, em uma superfície horizontal, não permitindo nenhuma mudança de perspectiva durante o processo. Uma vez que a obra já foi concebida na mente do artista como imagem interna, a tarefa agora é produzi-la. Ao começar a trabalhar sobre a tela, ele carimba os pontos um a um, de maneira contínua e repetitiva, sem para [ pausa?] até que a obra esteja concluída. Não há nenhum grande intervalo – do contrário, a cenoura irá secar e mudar a forma. Apenas quando o trabalho é concluído, e uma grade padronizada de cima a baixo emerge, o artista pode se afastar da tela, pendurá-la na parede e lhe lançar seu primeiro olhar apreciativo de uma nova e distanciada perspectiva.

 

O processo de carimbar requer plena atenção de precisão e cuidado do artista. Cada ponto ou carimbo é igualmente importante. Ainda assim, nesse método interativo, o carimbo eventualmente atinge um nível de fluxo mediador, no qual a tomada de decisão subconsciente domina. Eventualmente, um erro ocorrerá, o qual, devido ao rigoroso método do processo, não pode ser corrigido ou mudado. Se um carimbo for acidentalmente colocado um milímetro mais acima ou abaixo da imaginária linha gradeada, Dyrehauge tem de escolher instintivamente se irá integrar o ponto divergente à grade ou descartar a tela. Essas decisões instintivas, ainda que pivotais, ocorrem múltiplas vezes durante o processo e, como tais, ela são os momentos decisivos da criação da obra. Juntas, elas perfazem a soma impalpável de imprevistas e sutis desarmonias que emergem dos padrões. Essas ocorrências – que jamais podem ser totalmente antecipadas, conhecidas ou entendidas – são o veículo para a reinvenção toda vez que Dyrehauge senta-se com uma nova tela.

 

Para sua primeira exibição solo no Brasil, na Galeria Anita Schwartz, no Rio de Janeiro –em cartaz de 14 de abril a 21 de maio de 2016 – Jesper Dyrehauge produziu dois novos corpos de trabalho que consistem em doze telas estampadas com cenouras feitas com tinta acrílica e dez fotografias coloridas. Ambas as séries foram produzidas no Rio de Janeiro, durante a residência de um mês do artista.

 

Todas as obras individuais não têm nome, mas a exibição como um todo traz o nome de ~ como uma introdução um tanto mística, mas ainda assim muito descritiva da interpretação da mostra. ~ – sendo o símbolo do til – refere-se em latim a algo que é “similar” ou “da mesma magnitude”. Em inglês, o símbolo é lido como “aproximadamente”. Comparando-se o símbolo ao duplo til ≈, que indica um valor que pode ser considerado funcionalmente equivalente para um cálculo dentro de uma margem de erro aceitável, o ~ é utilizado para indicar uma maior e possivelmente significativa margem de erro1.  Equipar-se desse detalhado conhecimento da diferença entre algo bastante similar é o que estabelece o modo receptivo à mostra.

 

No espaço principal da galeria, as doze telas são exibidas. Todas as obras possuem uma diferente composição horizontalmente dividida, equilibradas por dois blocos carimbados um encima do outro, criando um senso de “acima” e “abaixo”. A paleta de cores vai de brilhantes [vibrantes] tons primais de vermelhos, azuis, amarelos e verdes a discretas cores harmônicas que aparecem em blocos monocromáticos sólidos ou evanescentes. Nas telas, eles se destacam visualmente em uma escala que vai do convexo ao côncavo, da aparição ao desaparecimento. Embora o elemento da mecanização exerça uma forte presença e, até certo ponto, domine a percepção da obra, cada obra é capaz de emanar um poderoso senso de individualidade. Sendo assim, cada obra exala um senso de tranquilidade e ordem dentro do campo de cor, enquanto que, simultaneamente, justapõe uma constante relação flutuante entre ordem e desordem, balanço e contrabalanço.

 

Também presente está um forte senso de assimetria e mudança de foco – não apenas nos diferentes tamanhos das telas mas também nas composições propriamente ditas.  À medida em que alguém se aproxima da superfície para estudas [estudar] as linhas pontilhadas, outra camada subjacente de pontos se revela em certas partes da tela. Isso cria um cintilante efeito de uma qualidade quase que aérea, diferente daquela que você experimentaria em frente a uma pintura Op-art de Bridget Riley. A pessoa se sente instantaneamente manipulada a tentar controlar o senso de percepção do olho, mas, ao mesmo tempo, profundamente fascinada. Porque você passa a perceber que os modos de temporalidade e escorregadia perda do controle da visibilidade pode mudar seu mecanismo de ver e, em última instância, seus próprios modos de entender como ver.

 

Fotografias

 

No andar de cima da galeria, a segunda parte da mostra é apresentada. Aqui, uma série de fotografias coloridas emolduradas mostram dez diferentes esculturas de tableau, feitas de pedras rústicas montadas em um monte casualmente moldado de plasticina colorida. Todas as pedras têm um orifício naturalmente cavado pelo mar, o que torna cada um deles único na aparência e na forma. Cada tableau repousa sobre uma folha de papelão de cores combinadas, criando um espaço de frente e de fundo, com a pedra no centro. O orifício em cada pedra – quando visto em frente ao papelão colorido – subitamente parece um ponto colorido. Assim, a série de fotos se torna uma linha de pontos coloridos, evocando – do mesmo modo que as telas – uma topografia rítmica à medida em que o olho segue os pontos e a “divisão” horizontal.

 

As pedras são todas achados casuais; os chamados objetos trouvé. Há tempos Dyrehauge mantém o hábito de, ao caminhar pelas praias de sua ilha natal de Funen, na Dinamarca, instintivamente procurar por pedras com furos. Ao longo dos anos, essa prática acumulou uma vasta coleção.  Dez dessas pedras são usadas nas fotografias. Sabendo-se dessa história, pode-se ficar tentado a adicionar uma camada de relatos de histórias à recepção do trabalho de Dyrehauge. Entretanto, essa não é a preocupação do artista, pois a nostalgia não desempenha papel algum em sua obra. Ao contrário, Dyrehauge enfatiza que nenhum processo de seleção emocional foi realizado na escolha das pedras para cada tableau. Foi puramente uma questão de proporção dos furos, de modo que eles pudessem funcionar como as matrizes físicas que iriam prover a possível experiência de um ponto colorido em uma linha horizontal.

 

Possuindo uma consciência aguda da experiência estética do público, a relação espacial entre as obras individuais – seja em telas ou em fotografias – é uma preocupação central para Dyrehauge. Isso se mostra no modo de pendurá-las. Todas as obras estão penduradas de uma maneira ligeiramente assimétrica, alinhadas de acordo com seu centro ou pontos centrais, criando uma topografia rítmica ao longo do salão. Os campos oscilantes de cores e intensidades nas obras somam-se a esse fluxo rítmico, e também ecoam o modo de produção do artista quando ele está carimbando.

 

Paradoxos idiossincráticos

 

Ao encontrar a obra de Jesper Dyrehauge, o credo criativo de Paul Klee vem à mente: “A arte não reproduz o visível; ela faz o visível” 1.  Do mesmo modo, Dyrehauge desafia seu espectador a experimentar e reconhecer a complexa natureza da percepção, assumindo o ponto de vista de que ver e olhar são [estão] sempre em um estado de fluxo. Para Dyrehauge, [seus trabalhos?] são primeiro e acima de tudo objetos que precisam ser experimentados e olhados segundo a proposta de que a experiência de olhar irá exceder o entendimento predeterminado do que a pintura é.

 

Enquanto a obra, em algum grau estético, referencia elementos do Minimalismo, expressionismo abstrato, Op Art, Arte Povera e mesmo o modernismo concreto brasileiro, as quietas abstrações de Dyrehauge mantêm sua própria curiosa, bem-humorada e poética independência – desafiando quaisquer modismos da cultura contemporânea. À medida que as sutis irregularidades que ocorrem de algum modo borram as regras formais das obras, descobre-se que essas lacunas entre ordem e desordem, regularidade e irregularidade, na verdade pervadem uma medida oculta que vai além da consciência subjetiva do artista. Para Dyrehauge, essa descoberta a dimensão definidora, perfazendo sua obra como paradoxos visuais idiossincráticos. Um paradoxo conveniente que anda de mãos dadas com a intenção de Dyrehauge de implementar um princípio democrático em seu processo de fazer arte e informar uma de suas crenças nucleares; a de que, idealmente, nenhuma relação – seja na arte ou na vida – deve ser baseada em hierarquia.