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Maria Lynch Acontecimento encarnado

Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta, a partir de 13 de março de 2013 para convidados, e do dia seguinte para o público, a exposição da artista carioca Maria Lynch, que nasceu em 1981 e é uma das mais destacadas artistas de sua geração. Primeira individual da artista na galeria, a mostra, que ocupará todo o espaço expositivo, terá doze obras inéditas, produzidas especialmente para esta exposição. Serão dez pinturas em grandes dimensões, duas em formato menor, uma instalação e um vídeo.

DE 14.Mar.2013 A 20.Abr.2013

Leia o texto da Exposição

Aparências que não enganam

 

Se fôssemos esboçar um campo de referências na obra de Maria Lynch, no espírito das colagens livres e anacrônicas de Aby Warburg,1 poderíamos navegar pela história clássica, moderna e contemporânea, ao sabor de diversas associações, tão imediatas quanto plausíveis. Assim, da Vênus de Botticelli à pegada fauve de Gauguin; da simplicidade de Rousseau às cores abertas e sensuais de Matisse; das montagens absurdas de Arcimboldo aos signos lúdicos de Miró ou ainda, mais recentemente, das figuras exuberantes e híbridas de Janaína Tschäpe ao imaginário infantil de Donald Baechler, iríamos compor uma gama vastíssima de insinuações históricas a se reatualizarem nas pinturas, esculturas, fotografias e vídeos de Lynch.

 

Revisitar esse rol aparentemente desconexo tem por fundamento revigorar a memória sempre latente do passado, que, a todo instante, informa e se reabilita na contemporaneidade, como reconhecem os pós-modernos. E, afinal, do corpo expandido das referências que citamos subtrai-se um repertório comum que toca, simultaneamente, em todos eles: o cromatismo intenso, os contornos definidos, o imaginário primitivo ou inconsciente, as formas simples e o elogio da natureza. Estamos falando, portanto, de uma família, de afinidades que cercam a produção de Maria Lynch e que criam em sua obra um elo consequente no fio da história.

 

A artista, porém, impõe particularidades autorais que a personificam e a diferenciam de seus pares antepassados. A começar pela intensidade cromática abusiva, extremamente luminosa, que não exclui relações entre cores as mais chocantes, em campos e formas que, no entanto, se conjugam sem conflito. Uma figura de cabelos roxos pode sair de uma vestimenta inteiramente redonda e azul, imersa em um fundo planar laranja, e perpassada por formas vegetais em vários tons de verde e vermelho. Dessa maneira, a pintura de Lynch é, antes de tudo, potência cromática.

 

A rede iconográfica, por outro lado, concentra-se em certos elementos recorrentes, como o corpo feminino, a paisagem, as formas orgânicas e os objetos da vida cotidiana e urbana. Já disseram que a trama figural da artista, em processo tributário do pós-modernismo, inclui, além dos elementos naturais, a cidade, o computador, a publicidade, os estereótipos e a indústria. 2 No território de Maria Lynch, tudo parece ser uma agregação fabulosa de realidade e ficção, em narrativas descontínuas, cujos acontecimentos não são mais do que flashes de situações e personagens impossíveis. E ali tudo é curvo, redondo e tátil: um mundo onde não há linha reta, onde as coisas se entrelaçam, se fundem, se engolem ou se expelem uma das outras.

 

Nas pinturas atuais, uma figura feminina insiste em “aparecer” pela ausência, como um fantasma ou um vulto branco que vagasse acima ou abaixo dos campos de cor, separada das manchas pictóricas a seu redor. Inconclusa e incorpórea, a figura, no entanto, consegue vencer o explosivo cromatismo que a circunda e impor-se aos olhos do espectador como um catalisador absoluto. A única imagem “apagada” do quadro torna-se quase soberana, como a sugerir o paradoxo de um personagem a um só tempo protagonista e coadjuvante, ou alguém que lutasse por se sobressair em meio a uma atmosfera dominante. Nas telas de maior formato, com fundo predominante negro, o corpo vazio das mulheres parece ainda mais imaterial ou incongruente, dada a presença contígua de muitas outras formas circulantes e densas e o próprio contraste com a negritude e a obscuridade do fundo.

 

Também presentes na exposição, as esculturas de Maria Lynch aproximam-se dos acontecimentos da pintura; em telas anteriores, a artista já havia esboçado protuberâncias e volumes saindo do plano, em trabalhos que classifica como “pinturas espaciais com relações arquitetônicas”.3 A textura da tinta que se adensava cada vez mais e as próprias formas coloridas, que se articulavam em planos e profundidades diferentes sobre a tela, anunciavam um salto para o espaço real. Lynch parecia pressentir a demanda desses acontecimentos por uma expansão física maior, como se os personagens e as manchas informes de cor pedissem o contato direto com o mundo.

 

Em 2009, inicia o trabalho escultural com almofadados de tecido e espuma que se costuram uns aos outros em agregações delirantes, como se estivessem instaurando uma espécie de surrealismo tropicalista. Expostos no chão, em paredes, ou por meio de performances, esses seres supõem, por um lado, a narrativa ingênua dos contos de fadas ou dos filmes de animação, mas, por outro, um clima terrível de entes, bichos ou monstros ameaçadores e desconhecidos. A cor, porém, permanece como eixo e alinhavo das construções, mantendo a artista sempre voltada ao universo da pintura, como também ocorrera no passado com as esculturas de Miró, Calder, Dubuffet e Oiticica, que guardaram o espírito lúdico e onírico da cor no volume e no espaço.

 

A obra máxima desse tipo de articulação ocorreu em 2012, quando Maria Lynch realizou uma grande instalação no Paço Imperial do Rio de Janeiro, ocupando chão, paredes e teto com os almofadados, num emaranhado intrincado e caótico de objetos e cores, onde o espectador era lançado a uma vivência sensorial alucinante. Misto de brincadeira infantil e experiência sexual, com toques simultâneos de ingenuidade, pavor e pornografia, a instalação tanto podia nos remeter às alegorias do Carnaval, quanto aos filmes de terror.

 

O imaginário de Maria Lynch se adapta com coerência estrita aos mais diversos meios e, nesta exposição, ela ainda apresenta uma de suas videoperformances, em que sai catando e vestindo a esmo pedaços de almofadados encontrados pelo caminho, incorporando esses elementos como próteses, até tornar-se, ela mesma, mais um personagem em seu país de maravilhas. O vídeo se desenrola na casa onde a artista nasceu e passou a infância, evocando rastros de uma memória afetiva, que interessa e permeia sua obra como um todo.

 

Com uma poética que beira o gênero fantástico e faz da arte um universo povoado por entidades insólitas e amorfas, Lynch subverte os sistemas lógicos estabelecidos e o discurso da racionalidade, ao mesmo tempo em que camufla a acidez crítica do trabalho com a exaltação festiva do colorido e a máscara lúdica dos “brinquedinhos”. A obra inteira parece, afinal, assemelhar-se às mulheres brancas e vazias da pintura, aquelas que simultaneamente expõem e dissimulam enunciados, que dizem o não dito.

 

 Ligia Canongia

 

Notas
  1. Aby Warburg foi criador da disciplina iconológica na Alemanha dos anos 1920, com discípulos célebres como Erwin Panofsky. Estabeleceu como estratégia de análise uma “história da arte sem texto”, que operava por meio da justaposição e colagem anacrônica de imagens retiradas de qualquer campo do saber e de outras formas da arte, e que ele intuía como relacionadas entre si.
  2. Referimo-nos ao texto de Guilherme Bueno, Nous vivons dans l’oubli de nos métamorphoses”, publicado no folder da exposição da artista, na H.A.P Galeria, em 2010.
  3. Depoimento da artista à autora.