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Gonçalo Ivo Campo Santo

Anita Schwartz Galeria apresenta a partir do dia 14 de julho, para convidados, e do dia seguinte para o público, a exposição individual “Gonçalo Ivo – Campo Santo”, com obras produzidas pelo artista desde 2005 até hoje.  As obras foram pensadas especialmente para o espaço da galeria, desde que o artista viu suas plantas arquitetônicas. “Não gosto da expressão ‘site specific’, porém esta exposição foi elaborada da mesma forma que as realizadas no Museu Nacional de Belas Artes e na Pinacoteca do Estado de São Paulo, levando em conta o espaço físico onde ela seria instalada”, observa o artista.

DE 04.Jul.2010 A 04.Set.2010

Leia o texto da Exposição

GONÇALO IVO: CAMPO SANTO

 

“Minha paixão sempre foi a cor, a matéria”, diz Gonçalo Ivo. A exposição “Campo Santo” mostra a que ponto Gonçalo Ivo conhece – até no sentido bíblico – o objeto da sua paixão. Pode-se chamar esse conhecimento, a um tempo espiritual e corporal, de “técnica”. Deve-se, porém, tomar cuidado com esta palavra, pois ela é muitas vezes entendida de modo superficial, em que significa quase o oposto de “arte” ou “poesia”. É que, enquanto se supõe que estas envolvam criatividade, a técnica normalmente é tomada como um conjunto de procedimentos estabelecidos e reiteráveis para a obtenção de resultados já previstos. Ora, isso seria inteiramente inadequado, no que diz respeito ao entendimento do trabalho de Gonçalo Ivo.

Originalmente, como se sabe, a palavra latina “ars” era equivalente à grega “techne. Durante muitos séculos, na Idade Média, a pintura foi considerada artesanato ou arte mecânica, e não arte liberal, como a poesia, cujo status era bem mais alto. Quando a pintura, através do esforço de humanistas como Alberti e pintores com Leonardo, adquiriu status equivalente ao da poesia, isso se deu através da valorização de sua associação, por um lado, à própria poesia e, por outro lado, a ciências como a perspectiva, a geometria, a anatomia, a ótica etc. Por essas associações, a pintura enquanto arte passou a se distinguir da pintura enquanto artesanato ou técnica. Esta ficou sendo considerada como produto da repetição mecânica e manual de fórmulas tradicionais; aquela, como criação do gênio, resultado da inspiração.

Como não lembrar, neste ponto, que Duchamp se apossou do adágio de Leonardo, segundo o qual “l’arte è cosa mentale”? Entendemos hoje que, se Leonardo lutava para elevar a pintura – desprezada, na Idade Média, como artesanato manual – a coisa mental, Duchamp explorava os limites do conceito da arte contemporâneo a ele. A verdade é, portanto, que, com a fórmula “a arte é coisa mental”, eles – cada qual tendo em vista exclusivamente a questão estratégica que lhe interessava – abstraíram do conceito de arte algo absolutamente essencial.

É claro que, primeiro com Leonardo, depois com Duchamp, aprendemos coisas muito importantes sobre a arte. Contudo, quando nos esquecemos da conjuntura que dava sentido à estratégia de cada um deles, corremos o risco de negligenciar algo sumamente importante sobre a natureza da arte. E aqui me refiro a uma propriedade vital não só para todas as obras de Leonardo como – com a exceção óbvia dos ready-mades – também para todas as obras de Duchamp. Trata-se do fato de que a arte, diferentemente da filosofia, é coisa mental e corpórea; espiritual e material; universal e particular: e que é precisamente por reunir esses opostos que ela consiste numa dimensão imprescindível da experiência humana. No fundo, o que se deve dizer é que, ao contrário do que ocorre na vida prática e utilitária, na arte o mental é também corpóreo e o corpóreo, também mental; e o mesmo vale para as demais oposições.

Por exemplo, a densidade das pinturas a óleo de grandes dimensões (2,60 x 6,60m) em “Campo Santo” jamais poderia ter sido obtida por meio de técnicas já automatizadas ou codificadas. Não há receita ou fórmula que possa dar conta da singularidade de uma pintura como “Oratório da Noite” ou “Santa Maria de Taüll”, por exemplo. Esta última foi construída a partir do impacto que os afrescos românicos da igreja Santa Maria de Taüll, vistos no Museu Nacional de Arte da Catalunha, tiveram sobre o artista. Tanto as cores cruas quanto a sumária geometria das faixas que se imbricam como tabuas – geometria ditada evidentemente menos pelo esprit géométrique do que pelo esprit de finesse – remetem aos afrescos. É claro que a experiência acumulada do artista, bem como a sua cultura visual, fazem parte das suas forças produtivas. Mas elas não são o mais importante.

Antes mesmo do começo há também, como diz Gonçalo Ivo, “o mistério e o movimento da mão, a construção da pincelada e o inexplicável”. Em algum momento a promessa da obra in fieri adquire autonomia e possui suas próprias exigências, das quais o verdadeiro pintor se faz o servo voluntário. No processo de produção da obra, no embate e no jogo com a matéria, surgem tanto novas idéias e ambições quanto novos problemas concretos que já não podem ser resolvidos pela aplicação das técnicas já dadas. O pintor é solicitado a modificar as técnicas já conhecidas, isto é, a desenvolver novas soluções, em função tanto das necessidades de cada situação imprevista quanto das oportunidades que antes não existiam. Essas soluções não são apenas o produto da inteligência, mas do jogo de todas as faculdades do artista: imaginação, sensualidade, razão, sensibilidade, memória, sensitividade, coragem, emoção, tato etc. Quando a obra fica pronta, o jogo dessas mesmas faculdades será exigido também de quem a contemplar, e será a fonte do prazer estético. Ela produzirá um pensamento que não se reduz a espírito, ideia ou palavra, mas se dá também através de cores, luzes, sombras, linhas, planos, volumes etc.

“Campo Santo” é o nome de uma das telas dessa exposição; e é o nome da própria exposição. A palavra “sanctus” é da mesma família de “sacer”. Esta designa o que não pode ser tocado sem ser poluído, ou sem poluir: donde “sacer” significar tanto “sagrado” quanto “maldito”. Ora, não é exatamente entre esses dois polos que oscila o campo da arte?

“Campo-santo” significa também cemitério. A própria pintura “Campo Santo” (óleo sobre linho de 2,60 x 6,50m), tem, à primeira vista, na sua área central, algo de marmóreo que nos remete a esse primeiro sentido, logo, à morte. O mármore também evoca, é claro, toda a estatuária clássica, logo, a tradição. No entanto, tantas evoluções acontecem para a vista, nessa faixa da tela, são tantas as tonalidades que ela aos poucos descobre como constitutivas do que inicialmente lhe parecia quase monocromático, tanto a vista ora penetra, ora dança, ora esvoaça em torno de acontecimentos pictóricos interessantes e imprevisíveis, que a solidez marmórea se esfumaça ou fluidifica aos olhos que, mesmerizados, a contemplam: e aos mesmos olhos volta a ser mármore, e volta a ser o que é: nem mármore nem fumaça, mas magnífica e pura pintura, trazendo de volta à vida o que parecia morto.

 

Antonio Cicero