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Daniel Feingold Daniel Feingold

Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta mostra do artista Daniel Feingold, com trabalhos inéditos, feitos especialmente para a galeria.  Com curadoria de Ronaldo Brito, que assina o texto do catálogo, a exposição traz seis dípticos, seis pares de telas em grande formato.  Cada díptico é disposto verticalmente, e alguns pares chegam a medir 4m de largura por 3m de altura. Esta é a maior mostra individual feita pelo artista, e terá ainda desenhos inéditos, feitos recentemente.

DE 25.Set.2008 A 18.Nov.2008

Leia o texto da Exposição

Pintura no Presente

 

A luz é metálica, refratada, deriva do caótico ambiente urbano contemporâneo; as cores, poucas e impessoais, têm menos a ver com qualidades expressivas do que com intensidade física, acréscimos de energia capazes de sustentar e repotencializar a escala do quadro. De fato, o proverbial senso de equilíbrio e proporção, inerente à pintura de cavalete, redefine-se aqui em termos quânticos. Mas se o quadro quer ganhar corpo, dessublimar-se, aderir enfim a uma incalculável quantidade de mundo, pretende fazê-lo por força de seu ímpeto lírico. Daí resulta uma peculiar serialidade de formas curvas, um movimento acelerado, repetitivo, que traz contudo algo de imprevisível – como se, ao seguir o curso vertiginoso do mundo, a tela se desdobrasse para torná-lo sensível à nossa medida corpórea, ajustado a uma problemática expectativa de vida lírica.

 

E, no entanto, esse quadro é produto de um Eu envolto em mundo, para quem toda visada é conquistada pela experiência pontual do acontecimento da forma. Ele já não dispõe, é evidente, da clássica distância reflexiva. Ao contrário, vive sempre às voltas com uma perversa topologia na qual sujeito e objeto se estranham e colidem, raramente harmonizam-se. Acaba fora de alcance, na saudade, a utopia da Fita de Moebius (a eucaristia do nosso neoconcretismo) e seu ideal de uma vida planar, sem dentro e fora, fluida e emancipada.

O plano com que se defronta a pintura de Daniel Feingold é um plano truncado, desigual e empastelado, impossível de racionalizar a priori. Há que dominá-lo pelo desforço físico, desenvolvendo uma sensibilidade estética bem material, em contato com a massa informe de um cotidiano poeticamente indiferente senão hostil. Mesmo o tumultuado all-over de Jackson Pollock, seu ponto de partida incontornável, consumava-se de golpe, quase por mágica, embora ao final de um périplo incerto. Não lhe pesava ainda o luto do moderno que se abateu sobre as últimas décadas. E é justamente esse luto, esse fator inercial, que o nosso pintor deve conjurar, reverter em desenvoltura lírica. Toda decisão expressiva, ou espiritual se preferirem, confunde-se assim com uma decisão acerca de seus meios materiais. A decisão de duplicar os chassis, por exemplo. Intuitivamente, ela atende ao caráter ambíguo, cindido, da noção de unidade contemporânea. Dois são os chassis, um só o quadro. Encontro pelo desencontro, jogo nervoso entre superfície e profundidade que a tela procura, a todo custo, reativar. E o jogo inclui a própria parede, pois ficamos agora frente a três planos: dado o desnível, o intervalo entre um e outro chassis, a parede tende a influir no ato perceptivo. Tanto mais que os chassis são espessos, destacam-se visualmente, presenças espaciais atuantes.

 

O óleo virtuoso talvez fosse um veículo muito ideal, sugestivo, para impregnar essas telas maciças, quase placas de pintura. O desalmado esmalte sintético presta-se melhor à tarefa, tanto pelo brilho opaco quanto por sua natureza industrial, devassada, resistente à subjetivação. As suas cores chapadas atuam, não representam, não consentem meios-tons; de imediato, a impressão cromática transforma-se em comportamento óptico. Cores patentes, sem transparência, cores públicas, a incorporar o presente à pintura, chamá-la um pouco para as ruas.

 

E o argumento estende-se a seus elementos básicos, às partículas de sua física singular. Essas formas curvas, com suas inúmeras variáveis, têm um passado concreto, uma biografia. Elas derivam das pranchas de surfe que, durante anos, o artista desenhava e construía profissionalmente. Só a intimidade profunda, o domínio inconsciente de suas articulações possíveis, permitem que essas "pranchas" evoluam e se contraponham aqui de tal maneira, com tanta fluência e contrafluência. Na verdade, permanecemos indecisos entre nomeá-las formas ou elementos. Elas seriam plásticas demais, guardam contorno indefinido e certa continuidade morfológica, incompatíveis com a noção de elemento discreto. Por outro lado, obedecem a uma compulsão serial, possuem algo de mecânico e progressivo; não são, propriamente, gestos expressivos. As torções dessa geometria convulsa não constituem, enfim, deformações, talvez estejam mais próximas de uma lógica combinatória nada ortodoxa.

 

Isso posto, a sua pregnante memória formal e afetiva, na qualidade de pranchas de surfe, diz, sim, um bocado acerca do dilema plástico do trabalho. Excelentes – no caso, insubstituíveis – metáforas de equilíbrio absurdo porém eficiente, exemplos perfeitos de coalescência entre o sólido e o líquido. O que seriam, afinal, tais pranchas senão sólidos que aspiram ao líquido? Dentro do imaginário do trabalho, elas cumprem uma função totêmica, símbolos de resistência lúdica.

O que nem de longe, bem entendido, torna a pintura de Daniel Feingold figurativa. Se nos apressamos a enxergar nessas curvas representações, figuras de pranchas de surfe, aí estragamos tudo. Por princípio, essa pintura é avessa à imagem. Ela se aplica e consome
inteira num processo abstrato de linguagem que jamais pode fixar-se em imagens. Fazê-lo equivaleria a uma renúncia: reduzir a tela a veículo neutro, simples plano de projeção. Quando, ao contrário, ela se atém a um estrito embate planar, arma um campo magnético de forças plásticas imanentes. Cada uma das telas assume, assim, um risco calculado, equilibra-se entre as manobras revitalizantes de uma geometria maleável e a iminência da entropia, procura fazer valer a diferença entre uma incerta ordem vibrante e a mera confusão indiferente.

 

E, como a História da Arte é matéria simbólica movediça, para seguir em frente, ampliar sua área de ação, o artista pode agora retornar de Pollock a Picasso, mais precisamente, ao Picasso da Demoiselles d'Avignon, das colagens e das máscaras africanas. E, por conta própria, reexperimentar o genuíno momento de ruptura picassiano ao quebrar o cânone da forma ocidental e reconstruí-la por meio de signos abertos e descontínuos. O que, a meu ver, confere às obras recentes de Daniel Feingold (sobretudo às telas pequenas e aos papéis) certa fisionomia, um aspecto de máscara. O imprescindível, em última instância, é um quantum de energia pictórica capaz de mobilizar essas formas curvas ao longo de toda a extensão do quadro, capaz de desarticulá-las e rearticulá-las, por assim dizer, simultaneamente. E suspender a operação no momento estético certo, no momento em que tudo se encaixa, mas nem tanto, porque algo está por acontecer, algo está acontecendo.

Ronaldo Brito
Rio de Janeiro, junho de 2008