Dialetos do Firmamento
Por meio de suas linguagens e modos sensíveis de compreensão, os trabalhos dos artistas de “Dialetos do Firmamento” constelam imaginários, desenhando novas direções para modos plurais da existência, integrada à imensidão dos poderes ocultos do universo.
DE 02.Mar.2023 A 15.Abr.2023
Em Dialetos do Firmamento, os mistérios e encantamentos que transitam entre céu e terra são apresentados por um conjunto de artistas que contam, por meio de suas linguagens, modos sensíveis de compreensão e relação com mundos inventados e habitados por diferentes cosmovisões. As obras de Bonikta, Ivan Grilo, Jeane Terra, Rochelle Costi, Thiago Costa, Shen Özdemir e Zé Tepedino constelam imaginários desenhando novas direções para modos plurais da existência, integrada à imensidão dos poderes ocultos do universo.
Na abertura da exposição, um cortejo/performance que caminhará pelas ruas do bairro da Gávea, portando o conjunto de 8 bandeiras desenhadas pela artista Shen Özdemir. Em seus trabalhos, o conceito de parentalidade é um importante vetor, já que a artista concebe grupos de obras como núcleos familiares. O carnaval imaginário da artista, batizado de Karnavalo, conecta simbologias da cultura popular ao desejo de criação de uma comunidade internacional, que não pertence a nenhum lugar específico, mas transita entre fronteiras e folclores inventados.
As questões entorno da arte e parentalidade também atravessam a obra do artista Ivan Grilo. De uma conversa com sua filha, o artista escreveu uma frase como corpo de uma escuta sensível. No instante de inspiração que a obra de Ivan corporifica, está o brilho cintilante das pedrinhas encontradas pelo caminho, que reluziu nos olhos da sua filha, como se fossem estrelas no céu. Como um portal, a leitura da obra de Ivan é capaz de transportar para um espaço de criação poética e coletiva de um céu que se faz aqui na terra.
Elemento presente na constituição mitológica e religiosa de diversas culturas humanas, a palavra céu originou-se do latim caelum e diz respeito ao espaço infinito onde se localizam e movimentam os astros celestes. Nos estudos da astronomia ocidental antiga, o céu foi compreendido como uma abóboda celeste na qual as estrelas estavam cravejadas, na crença de uma distância equivalente entre a Terra e os astros.
O conceito de céu como abóboda têm referência na cosmologia bíblica sobre a criação do mundo, e teria sido concebido como um vasto domo sólido – o firmamento - para dividir as águas primordiais em porções superiores e inferiores e assim, possibilitar o aparecimento da terra seca. Morada de uma promessa de vida eterna, o céu bíblico como destino final dos fiéis que seguissem os preceitos de “salvação” de suas almas, serviu como um dos princípios do projeto colonial de “civilizar” e “evangelizar” por meio da associação Estado-Igreja.
Na obra “Santuário do Sertão”, a artista Jeane Terra apresenta a imagem de uma ruína que clama a história das missões, e da violenta imposição da cultura cristã aos povos indígenas, que foram forçados a viver em aldeamentos jesuíticos. O projeto colonial de educação civilizatória consistiu em atos de barbárie contra modos de vida que entendem a terra em sua liberdade e a presença humana interdependente, parte e não o todo de um sistema de seres vivos.
Desde tempos passados até o momento atual, a história da resistência indígena contra a espoliação de seus territórios é uma grande trajetória de luta pela garantia do direito à própria existência. Para seguir adiante, muitos povos indígenas tiveram que criar um mundo em paralelo como forma de viver neste mundo cotidiano. Durante uma entrevista à revista Cult, Ailton Krenak, liderança indígena, filósofo e ambientalista, relata um pouco da experiência do povo Maxacali, vizinhos do povo Krenak na bacia do rio Doce. Resistindo à violência colonial, os povos do vale do Mucuri tiveram seu território brutalmente devastado nos últimos séculos. Ailton nos conta que “eles dão nome a todas as plantas e animais que existiram naquela paisagem antes de ela ser destruída. Cantam para eles, invocam a presença deles e criam um mundo animado para poder habitar”. Na exposição, as duas fotografias do artista Bonikta, fazem parte da série “Memórias Enkantadas” e invocam a força e inspiração dos mundos inventados e dos seres ancestrais que acompanham o imaginário de comunidades indígenas e ribeirinhas amazônicas.
As tecnologias da resistência e as constantes negociações em ginga percorrem o tempo e as travessias do Atlântico negro na obra de Thiago Costa. As esculturas-ferramentas construídas pelo artista habitam o universo das escrituras ancestrais, formando poemas como imagens manifestas entre os estados de aterramento e de suspensão do corpo. Desde as filosofias Bantus e Yorubás, o artista vai tecendo relações com a geometria sagrada das matrizes africanas, assim como a perpetuação dos códigos de linguagem.
O respeito às existências particulares e ao tempo transitório da vida, com a consciência de que tudo está em movimento e passagem, são conceitos que ancoram a obra da artista Rochelle Costi. A sutileza do tempo é revelada por meio da compreensão da memória como um estado constante de renovação e atualização. Pensar e propor a imagem fotográfica como um processo de construção de intimidade é uma poética presente na obra de Rochelle. A artista se dedicou a diminuir as distâncias das relações por meio de aproximações afetivas aos objetos do mundo cotidiano, assumindo o espaço doméstico como um território privado.
Se há uma vida secreta dos objetos, então suas narrativas não seriam apenas um vestígio da humanidade, mas falariam por si, capazes de contar suas histórias e edificar subjetividades. Na obra de Zé Tepedino, os materiais encontrados e ressignificadas pelo artista mantém as evidências de suas trajetórias, apresentam nas marcas de uso o delicado equilíbrio do porvir. Como a celebração de um dia fora do tempo, a obra do artista firma a saída para o mar dos sonhos e do devaneio, navegando pelos ventos da imaginação que nos levam à ascensão das múltiplas possibilidades que é viver.
A exposição inaugura o programa anual da galeria e convida o público a imaginar novas possibilidades de cuidar de um futuro ancestral, em conexão com o campo da arte e da espiritualidade, construindo percursos e diálogos entre manifestações divinas e profanas. O projeto de um país Brasil inventado é revisto pelas potências do intangível, as expressões primárias e as subjetividades da memória, atravessando o tempo e o espaço visível/invisível do mundo moderno organizado pela racionalidade.
Bianca Bernardo.
Bonikta
Kurumins do Rio
, 2023
Fotografia sobre papel de algodão
Bonikta
Ygarapé das Bestas
, 2023
Fotografia sobre papel de algodão
Ivan Grilo
Fazer juntos um trecho de céu no chão
, 2022
Bronze
Jeane Terra
Santuário do Sertão
, 2022
Monotipia sobre pele de tinta
Rochelle Costi
Escada Palavrada – Longe/Perto
, 2014
Jato de tinta sobre papel de algodão
Shen Özdemir
A trupe EKSTERE
, 2023
Espuma, papel, tinta acrílica, gesso, tecido
Thiago Costa
Exercícios para suspensão
, 2022
Solda sobre vergalhão
Zé Tepedino
Brinde
, 2023
Madeira, nylon, tecido, areia e pedra