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Nuno Ramos Mar Morto

Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta a mostra “Mar Morto”, com trabalhos inéditos do artista Nuno Ramos, um dos mais inventivos do panorama contemporâneo. Ele vai criar no próprio local a obra “Mar Morto (Soap Opera2)”, onde cobrirá de sabão dois barcos de madeira – um de pesca, e uma canoa, com 11 e 07 metros respectivamente –, pesando duas toneladas. O processo de derretimento e endurecimento do sabão será feito pelo artista no grande espaço térreo da galeria (mais de sete metros de altura de pé direito e 140 metros quadrados de área), e levará cerca de uma semana. Os barcos estarão atravessados um no outro, “como uma lâmina”. Na proa de cada barco haverá uma caixa de som, também coberta de sabão, de onde se ouvirá o texto “Mar Morto”, feito pelo artista e lido pelo ator Marat Descartes.

DE 19.Mar.2009 A 16.Mai.2009

Leia o texto da Exposição

Mar morto: uma situação de arte

Paulo Sergio Duarte

Mar morto suscita, para usar um termo caro aos teóricos contemporâneos, uma imersão completa: a obra é esta imersão. Mas imersão, aqui, não é mergulho, é simplesmente estar aí, na obra. Fora do círculo dos que gostam de arte, a obra é um transtorno, incomoda por toda parte. Primeiro não permite a mais remota contemplação, nem a distância necessária que as belas artes haviam ensinado para a boa apreciação: Mar Morto satura o espaço e inunda a percepção. Não apenas o olho, mas o ouvido.

Numa situação de arte esta se encontra por toda parte, nas coisas palpáveis e no vazio, no som, nas frases quase gritadas, na poesia: dois barcos de pesca naufragam no seco – uma grande canoa e uma pequena traineira. São enormes os objetos mesmo para o generoso espaço – tudo está saturado. Mas há um alívio: os barcos são albinos, uma espécie de refresco provisório porque as cores, tão presentes nas enormes pinturas escultóricas de Nuno Ramos desaparecem em Mar Morto. Não há mais a tensão entre o plano que agrega e o espaço que atrai e espalha em curvas e retas as superfícies voluptuosas e confusas de cores e diferentes materiais; enfim, não precisamos assistir, aqui pelo menos, mais uma vez, a inevitável tarefa de qualquer pintor que, quer queira ou não, tem que cumprir: explorar os limites do plano e a reinvenção do espaço depois do fim da perspectiva (no terceiro andar da galeria estão expostas duas pinturas). A pintura de Nuno Ramos é uma eloquente demonstração desse Sísifo ao qual foi fadado todo pintor não narrativo depois da crise da representação.

Aqui, em Mar Morto, a pintura, quando existe é outra. Seria um Nuno Ramos quase monocromático, não fosse a dimensão escultórica que cria superfícies com muito movimento em torno do mesmo tom: o do sabão. As oposições são falsas ou provisórias porque prevalecem fluxos nessas figuras quase miseráveis dos barcos mortos embalsamados – a canoa apoiada sobre a traineira – com sabão. Esses cadáveres expostos ressuscitam na sua palidez, conversam um com o outro, e aceitam o escárnio ao jogar com o rebaixamento da história e brincar com o trocadilho entre o material que reveste os barcos e a narrativa: Soap Opera 2. E estão muito além disso, de uma novela de televisão. O sarcasmo, sem deboche, tão difícil de ser alcançado, está sempre presente na obra de Nuno.

Além do ambiente saturado que, de propósito, retira a possibilidade da contemplação – ou se está no seu interior ou não se está em contato com a obra – existe a invasão sonora. Essa característica – a obra saturada – tem prevalecido em todo o programa poético de Nuno Ramos mas, há alguns anos, se radicaliza: o corpo todo do espectador é tomado pela situação de arte e o elemento acústico com o uso da voz humana faz parte da construção dessas irônicas totalidades que não aspiram, equivocadas, a um romântico Absoluto, ao contrário, sem nenhuma transcendência, estão ao alcance dos olhos e dos ouvidos mas que tomam todo o corpo do espectador . Basta lembrar Vai, Vai no Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, em 2006, e Bandeira Branca no Centro Cultural do Banco do Brasil, Brasília, em 2008. Nestas, havia o mal estar dos seres vivos – os jumentos em Vai, Vai, e os urubus em Bandeira Branca, em 2008. Em ambas a voz humana presente.

Em Mar Morto, nada de natural, os barcos têm apagada qualquer memória arcaica ou primitiva. Não há essa presença biológica da vida, como jumentos e aves de mau agouro. As embarcações são figuras e coisas violentadas desde sua epiderme, outrora coloridas, agora encouraçadas de sabão; até as vozes que lhes são dadas pelas caixas acústicas instaladas em seu esqueleto, na cabine da traineira, são esquisitas e irrompem, antes do mesmo do som, com seus círculos negros dos autofalantes. Não falemos da matéria – sabão – que se retornada ao mar ou ao rio se dissolveria. Esses barcos estão condenados à morte a seco, essa a perversa operação.

Revestir de sabão os barcos pode parecer um capricho, mas apagar a memória arcaica de sua existência primitiva – tão colorida – é uma decisão poética. Barcos tornados albinos pelo solúvel sabão, que admitem o precário e o provisório de algo que se dissolve pela água, exatamente o meio natural de qualquer barco, aceitam sua existência transitória, não estarão ali para sempre, logo serão desmanchados como sua pele na água. Ficar ali gritando, um barco para o outro, poemas de Mallarmé, trechos de tragédias de Ésquilo e Sófocles, passagens de Melville e Conrad. Tudo é construído para criar uma situação de arte, não mais uma obra de arte. Essa a redução operada pela poética do excesso de Nuno Ramos: colocar-nos na arte não com a arte.

É nisso que estamos: não em mais uma instalação, mas numa situação de arte. E antes que venham falar de Guy Debord é preciso lembrar que Kierkegaard já havia elaborado uma filosofia situacionista. Agora, sob o império da imagem, não há mais porque a decisão entre a situação “autêntica” e a “inautêntica”, entre a religiosa e a contemplativa, com nos propunha o filósofo dinamarquês. O mundo andou, mudou a história. Perdemos a oportunidade dessas escolhas. A existência, na situação de arte de Mar Morto, não nos apresenta caminhos que se bifurcam, a versão poética dos pares de oposições. Simplesmente ou a experiência se realiza ou não, ou estamos ou não estamos nessa situação. Experimentamos esses barcos e seus sons – ou seriam os sons e seus barcos? – ou não conseguiremos alcançá-los.

Há algo que me faz lembrar a disciplina do arco e da flecha na experiência Zen. Dizem que o arqueiro Zen acerta, depois da extrema concentração, quando o alvo desaparece diante de seus olhos: este instante de cegueira, átimo decisivo, nem antes nem depois, é o momento de soltar a corda retesada para que a flecha atinja o alvo. Aqui, em Mar Morto, não há alvo, tudo quer atenção, destruiu-se qualquer hipótese de ponto de fuga, mesmo provisório. É como se trouxesse para o espaço todo o drama do fim da representação: não apenas os barcos morrem nessa situação de arte. Morrem com eles todas as imagens. Hoje, o arqueiro Zen também está perdido porque não há alvo, e Mar Morto nos evidencia essa condição da existência. Sem alvo ou pontos de fuga, o que existe são as metas dos políticos e dos executivos. Na Roma antiga, meta era o sinal nas pistas dos circos que os carros, durante a corrida, deviam contornar. Triste fado este da meta, agora é mero ponto de chegada provisório que logo será substituído por outro na busca da produtividade, não há volta para o ponto de chegada como para as bigas romanas. Há em Mar Morto assinalado, com tristeza, esse destino do homem contemporâneo: ser sem meta, só desejo, sem vontade, sem retorno a um ponto de chagada, porque simplesmente não o conhece. Aqui não há produção, ao menos no sentido rebaixado a que se submeteu a vida de bilhões de seres humanos, o que existe é a realização de uma situação de arte. Por isso, por um instante, estamos perdidos, e como não estaríamos diante dessa galeria enclausurada pela arte, na qual não há saída nem entrada porque ou se está ou não se está: esta a situação. A situação de arte.

Estamos sempre em situação na existência, mas a situação de arte é uma situação-limite, como esta de Mar Morto. Para nos encontrarmos nessa situação é preciso errar. Mais do que suspender nossas certezas é necessário reaprender a caminhar sem destino, não como o flâneur na urbis moderna, mas como o velho lenhador sozinho com seu machado na floresta a procura da árvore certa para ser cortada; se não nos perdemos, se não erramos como o lenhador, não nos encontramos com a situação de arte. Errar é não ter medo de se perder: somente nas errâncias podemos começar a experiência da arte. Aqueles pistoleiros que sacam do seu revólver e acertam tudo não são capazes de errar. Seus alvos já existem antes da experiência do tiro. É preciso restaurar, por um momento, a perplexidade do arqueiro Zen que, diante de Mar Morto não encontra nenhum ponto no qual se concentrar como alvo. Essa falta do alvo, que anuncia dentro de nós mesmos os nossos brancos, as nossas lacunas, as nossas ausências, é a experiência da arte, o arqueiro sem alvo, o ser que descobre que não sabia o que vai descobrir. E essa experiência é inteira porque inteira é a obra no seu fluxo de vozes, coisas e sombras.

Rio de Janeiro, abril de 2009.