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Ana Holck, Angelo Venosa, Carla Guagliardi, Daisy Xavier, Gustavo Speridião, Nuno Ramos, Waltercio Caldas Matriz e desconstrução

Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta, a partir de 15 de maio de 2014, para convidados, e do dia seguinte para o público, a exposição “Matriz e Desconstrução”, que ocupará todo o espaço expositivo do edifício, com curadoria da crítica de arte Luisa Duarte, que selecionou trabalhos dos artistas Adriano Costa, Ana Holck, Angelo Venosa, Carla Guagliardi, Daisy Xavier, Gustavo Speridião, Waltercio Caldas, Wagner Morales, Nuno Ramos e Matheus Rocha Pitta.

DE 16.Mai.2014 A 05.Jul.2014

Leia o texto da Exposição

Matriz e Desconstrução

A coletiva “Matriz e Desconstrução” sintetiza desde seu nome uma situação pendular. De um lado, a herança construtiva da arte brasileira que se faz presente de maneira forte até hoje e dá à produção local uma face que mostra claramente uma preocupação formal, muitas vezes de natureza geométrica, rigorosa, calcada em uma pureza abstrata. Do outro, uma desconstrução desse rigor cuja raiz encontra-se na modernidade. No percurso do pêndulo, entre os dois polos, vemos instaurada uma geometria sensível, ou ainda uma figuração que atravessa o abstrato, deixando entrever a vida que passa, o tempo que corre, as horas que nos envelhecem, o mundo da vida lá fora, por entre linhas retas e grades precisas.

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“Homenagem a Fontana”, de José Bento, é um quadro feito de dezenas de pequenos retângulos de madeira. No meio dele, os cortes levantam o plano e formam relevos. O artista desfaz a geometria do trabalho, conferindo-lhe tridimensionalidade - em uma referência ao mestre ítalo-argentino Lucio Fontana - e permeia as fendas que geram o revelo de um sutil erotismo. A evocação ao sexo em meio a uma cena geométrica promove uma ruptura em relação à matriz cartesiana. Estão presentes assim, a um só tempo, aquilo que sinaliza para um rigor produtivo, que parece sempre ter um ponto de chegada ou um objetivo final à frente, e o erotismo, cujo significado é, justamente, um acabamento em si mesmo - “Jogo, perda, desperdício e prazer: isto é, erotismo enquanto atividade que é sempre puramente lúdica, que não é mais que uma paródia da função da reprodução, uma transgressão do útil, do diálogo ‘natural’ dos corpos.”¹

A dualidade continua em “Sem Título” (1990), de Carla Guagliardi, escultura/objeto que reproduz no espaço da galeria um grid. Mas aqui, essa forma tipicamente moderna, criada com barras de ferro paralelas, ganha um desvio. Dentro de um invólucro de plástico cheio de água, as barras oxidam lentamente, doando uma cor de cobre intensa para a obra. O grid, que uma vez já foi descrito pela historiadora e crítica Rosalind Krauss como o signo de um desejo de silêncio da arte moderna, como uma recusa ao discurso, é submetido à ação do tempo e dos elementos naturais. A água altera a obra, a deforma, a completa, e devolve o produto industrial à sua organicidade, sublinhando a dualidade entre matriz e desconstrução.

Daisy Xavier, com sua “Natureza em Expansão”, faz uma passagem para o universo no qual uma certa natureza artificial é posta em cena: como em um desenho tridimensional, árvores feitas delicadamente com fios de cobre são, simultaneamente, abstratas e figuradas. O rastro da mão de quem fez está ali, como memória vital, o que doa ao trabalho uma temperatura diversa; porém ao mesmo tempo surge como uma negação interna à própria obra. Existe um pensamento nesse fazer que é contrario a qualquer gesto expressivo, como se fosse preciso recusar o movimento da razão que finalizaria a obra.

As linhas de Wanda Pimentel em “Série Invólucro” (2003) possuem o vestígio das mãos que a desenharam. Por isso tremem ligeiramente. As mesmas foram traçadas com o intento do rigor, mas deixam ver aquilo que escapa. Não à toa, em meio ao desenho da grade encontra-se o traçado de uma mão, vestígio de uma pegada quente em meio ao fazer calculado.

A parede frontal da galeria traz uma espécie de tríptico, formado por trabalhos de três artistas diferentes. Feita de linhas de algodão e elástico, “Sem Título” (1967), de Waltercio Caldas, contém o DNA de todo um pensamento sobre o olhar caro à obra do artista. A concisão característica de Waltercio está presente, assim como sua capacidade de, com gestos mínimos, nos dar muito. Trata-se de uma economia que evidencia como no mundo de hoje há muita produção para pouca sensação. O trabalho pode se tornar um quadrado, um retângulo com um triângulo (que podemos figurar e ver uma “bandeira”); ou ainda inúmeras formas feitas com muito pouco que nos dão a ver o cheio e o vazio, o branco e o negro, e nos desconcertam em sua capacidade de formar enigmas poéticos para o olhar com tão pouco.

Logo após Waltercio, mas em primeiro plano, “Brasília TV”, de Erika Verzutti, é uma escultura/objeto que reúne a dicotomia que perpassa a mostra. Uma jaca feita de cobre - ou seja, uma fruta que nunca apodrece - é cortada de maneira que seu fundo, ou seu interior, não revela odores nem texturas, mas sim um branco de formas retas. A modernidade, que em nosso país possui Brasília como um de seus maiores ícones, é evocada desde dentro da jaca, fruta dos trópicos. Com alguma ironia, “Brasília TV” é, a um só tempo, narrativa e formal, figurativa e abstrata, nos dando a ver que tais dualidades são mais complexas do que pode se pensar numa primeira visada.

Completando essa espécie de tríptico, vemos um trabalho de parede feito em tecido azul marinho, de Adriano Costa. “A Estudante” remete a uma saia plissada usada por moças jovens de antigamente. E não o é. Somos nós que figuramos isso? Pode ser

 

somente um pedaço de tecido cujas dobras rijas compõem uma insuspeitada geométria manca. Adriano doa para formas geométricas uma precariedade povera, delicada, que gera um cunho afetivo. O artista se referencia a capítulos da história da arte, criando assim sutis subversões que dessacralizam aquilo que o cubo branco soube tão bem sacralizar.

“Sem Título”, de Ana Holck, se situa também no lugar improvável em que construção e desvio se mesclam. Utilizando elementos constituintes do espaço - aço, concreto -, em uma espécie de arquitetura decomposta, a obra ultrapassa o aspecto utilitário da estrutura e apresenta-se como reflexão sobre suas possibilidades, suas florescências.

A mostra ganha uma inflexão com “Laje # 56 (peixes)” de Matheus Rocha Pitta. A sua verve conceitual, econômica, também nos é familiar. O concreto, elemento fundamental da arquitetura moderna, ressurge como lápide, signo da morte. A presença de recortes de jornais nos obriga a sair do embotamento do hábito que lê ou vê diariamente as maiores calamidades mas a elas se acostuma. Mas aqui já estamos mais distantes da raiz construtiva. Matheus olha o presente, o traz para um primeiro plano, mas na forma de um quase cadáver. Ou seja, o jornal e seus relatos do cotidiano, aquilo que é nosso presente diário, merece ser remexido e acordado, revirado. Cada uma de suas lápides, como um murmúrio grave, nos endereça esse chamado.

Gustavo Speridião faz um amálgama de apropriações. Entre fotos, colagens, recortes, pequenos escritos, o artista se debruça sobre o passado e o presente, Malevich, Mondrian, o empresário Jorge Gerdau e a seleção brasileira de futebol estão próximos formando uma narrativa tão improvável quanto coerente sobre um tempo que parece correr num presente continuo, sem passado e sem futuro. Os elementos reunidos tratam de um mundo no qual a história tratou de ora criar narrativa para tudo, tirando da forma sua potência discursiva, ora deixou a forma sozinha, falando do nada para lugar nenhum. O artista habita justamente o entre. Nuvem, aquilo que passa e é informe, mas para qual sempre tratamos de desenhar uma figura. No trabalho de Gustavo a nuvem surge como um quadrado no qual lemos a palavra nuvem. Que não é a coisa nuvem, mas a linguagem que a representa. Esse embate de apresentação e representação, abstração e figuração, núcleo central de “Matriz e Desconstrução”, é um dos vetores principais de toda sua obra.

Logo após a série “Cartazes de Agitação”, vemos “Pro Labore #15” (2008), uma colagem sobre papel de Iran do Espírito Santo, sóbria, objetiva, e de pequena dimensão. Grande parte do trabalho do artista é marcada pela convergência das duas vertentes da história da arte aqui discutidas - abstração geométrica e figuração, mundo da vida, no qual a narrativa vem à luz e um fazer de natureza cartesiana. Sem cair numa dualidade que as deixa em uma oposição, tão fácil quanto falsa, Iran, assim como Erika e outros artistas presentes aqui, articula de modo enviesado tal embate. O que temos é uma colagem que vai do preto ao cinza, muda de textura, de uma tal maneira que “entorta” levemente o que vemos. Temos linhas retas, mas fora de esquadro. Essa espécie de gag com a tradição, valendo-se dela mesma, é a volta irônica e fina, silenciosa, operada na discreta obra de Iran.

Composta de cera e chumbo, a obra de Angelo Venosa explora a carnadura do mundo, sua materialidade. Em uma junção de princípios antagônicos - expressionismo e construtivismo -, Venosa constrói algo semelhante a um organismo vivo, como uma boca aberta que devora a si mesma. Trata-se de uma boca essencial, reduzida aos seus elementos básicos - dentes e lábios - em que os materiais, a princípio moles, moldáveis, constituem essa engrenagem orgânica, em infinita autofagia.

A obra de Luiz Zerbini, “Tokyo Nigth”, é, por fim, uma colagem de inúmeros slides cuja origem encontra-se na cidade título. A ideia que temos de Tóquio e o aspecto do trabalho - no seu colorido e na forma que usa o material - evocam uma atmosfera pseudo alegre e contemporânea. Ao colorir slides antigos provenientes de Tóquio corretamente, em linhas, Zerbini nos dá a imaginar uma noite de Tóquio hedonista e ao mesmo tempo suave. A composição dos slides - um conjunto de retângulos, como pequenas janelas - remete também à configuração espacial da cidade: espaços contíguos subitamente interrompidos, jogos de cor e luz aleatórios e ao mesmo tempo harmônicos, como se o acidente ou o excesso, pela sua própria natureza, redundassem em uma sincronia imprevista e inédita.

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A dualidade entre matriz e desconstrução já foi colocada de maneira exemplar nas obras de Helio Oiticica e Lygia Clark. A permanência dessa questão hoje é signo do que há de melhor e mais complexo no campo da arte de nosso país, e atualiza dilemas fundamentais - políticos, culturais, históricos - para a constituição do que entendemos como arte brasileira; em poucas palavras, somos formados pela tensão entre esses dois polos. Aproximá-los, e perceber que é no embate entre ambos, ou no seu amálgama, que habita uma riqueza inaudita é o que desejamos recordar ao longo desse percurso. A partir dele podem, quem sabe, ser esboçadas as direções para o nosso futuro.

 

Luisa Duarte

¹SARDUY, Severo. Escrito sobre um corpo. São Paulo: Perspectiva, 1979. P. 77