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Jeane Terra Mekong: Memórias e Correntezas

A exposição reúne seus trabalhos feitos a partir de uma viagem ao Laos, Cambodja e Vietnã pelo rio Mekong, o mais extenso do sudeste asiático, e que atravessa mais três países: China, Mianmar e Tailândia. Meio de transporte, de moradia, de pesca de subsistência e ainda território de conflitos, o Mekong abriga 24 hidrelétricas.

DE 21.Mar.2024 A 04.Mai.2024

Leia o texto da Exposição

JEANE TERRA – MEKONG: MEMÓRIAS E CORRENTEZAS

- Por que o rio Mekong?

- É um lugar impregnado de memória, ameaçado de desaparecer.

 

Dizem que somos atraídos por pessoas, lugares e situações por ressonância. Não à toa, a história do rio Mekong e sua população chamaram a atenção de Jeane Terra. Se há um tema que atravessa a produção da artista desde o início de sua trajetória, esse tema é a memória afetiva relacionada a lugares e pessoas que deixaram de existir. Memória conectada à morada, à terra, a lugares impregnados de lembranças, raízes de uma existência obrigada a se reinventar por razões alheias à sua vontade.

Essa história começou quando Terra se viu diante dos escombros da sua casa de infância, no interior de Minas Gerais. Para alguém que vivenciou perdas familiares muito próximas desde jovem, presenciar aquele momento foi como materializar a demolição de suas origens. Mas, ao invés de mergulhar na dor, a escolha foi trabalhar o sentimento através da arte. Fazer das ruínas, registro documental e poesia. Escombros ganharam novos contornos, viraram objeto de pesquisa e fonte de novas descobertas. Foi assim que nasceu a série sobre Atafona, cidade do litoral fluminense que vem sendo invadida pelo mar, obrigando moradores a deixarem suas casas, transformadas em ruínas à beira-mar. Na sequência, vieram as obras que trazem como mote as cidades do sertão baiano Casa Nova, Remanso, Sento Sé e Pilão Arcado, inundadas pelo rio São Francisco, durante a construção da hidrelétrica de Sobradinho, cujos habitantes foram forçados a se mudar para uma terra estrangeira às suas raízes, deixando para trás, a contragosto, não apenas os laços afetivos, mas também o conhecimento do ambiente e o senso de pertencimento.

Eis que, no desdobramento de sua pesquisa, um segundo tema entra no enredo e ganha protagonismo na produção de Jeane Terra: a resposta da natureza à exploração predatória do meio ambiente. As consequências de uma forma egocêntrica e destrutiva de consumo de recursos naturais que agora se apresentam. De diferentes maneiras, em diversos lugares, cada vez com mais força.

Sensibilizada com os relatos dos moradores do sertão baiano, Terra seguiu pesquisando lugares ameaçados por inundações. Foi quando encontrou uma matéria sobre o Mekong, um dos maiores rios do mundo que está sofrendo as consequências das questões climáticas globais e de um projeto de barragens que visa transformar a região na “bateria da Ásia”. Localizado no sudeste asiático, o Mekong nasce no planalto do Tibet e atravessa seis países, ao longo de seus 4.350 quilômetros de extensão: China, Mianmar, Tailândia, Laos, Camboja e Vietnam. Impulsionada pela crescente demanda de energia, a construção de barragens e seus impactos ambientais ameaça a subsistência das mais de 70 milhões de pessoas que residem no entorno. Populações ribeirinhas que, há milhares de anos, usufruem do rio para o seu sustento, através de atividades como a pesca e o plantio de arroz. Na fronteira entre Tailândia, Laos e Camboja, vilarejos inteiros estão sendo realocados, em alguns casos por conta das inundações resultantes da construção das barragens, em outros por conta da seca, consequência da redução no fluxo de água retida para alimentar hidrelétricas e do desequilíbrio ambiental. Motivo de disputa geopolítica, o Mekong está sendo sufocado não apenas pelas barragens, mas também pela poluição resultante da alta quantidade dos mais variados tipos de resíduos que nele são depositados, como lixo industrial tóxico e dejetos humanos, entre outros. Atraída por esse enredo cada vez mais familiar, lá se foi a artista desbravar o oriente distante para conhecer pessoalmente as histórias dessa população.

O corpo de obras apresentados em “Mekong: memórias e correntezas”, na galeria Anita Schwartz, é fruto dessa expedição. No andar térreo da galeria, o motivo predominante é o rio Mekong e as diferentes formas de interação dos moradores que vivem em suas cercanias com o rio. Mas Terra não quer simplesmente nos apresentar imagens documentais do rio e da população que com ele se relaciona. Ela nos transporta rio adentro para, imersos em suas águas, nos envolver nas suas histórias.

Somos recebidos por um grande painel despedaçado, com a vista aérea de uma região próxima ao vilarejo de Srae Skor, submerso pelo rio Srepok, afluente do rio Mekong, no Camboja. Uma monotipia sobre pele de tinta, cujo aspecto de pergaminho desgastado, recortado e incompleto imprime melancolia na retina e traz a densidade da devastação. A região foi inundada devido a construção da hidrelétrica Sesan Dam II, em 2017. Assim como no sertão baiano, uma comunidade inteira viu seus lares, suas referências e suas memórias cobertas pela água, sendo obrigadas a encontrar um novo destino. Submergimos, nós também, expectadores, em perguntas tentando imaginar a vida que ali existia antes da inundação. Como era o dia a dia dos moradores? De que forma se relacionavam com o rio? E, como que para nos trazer à tona novamente, somos rodeados por cenas corriqueiras de outros vilarejos da região, também ameaçados de semelhante destino.

Ao invés de destruição, encontramos vida. O que transparece nas imagens retratadas é uma outra forma de convivência com esse mesmo rio, que agora se faz alimento, morada, caminho e sustento. Há um quê de calmaria e beleza nessas pinturas que chamam a atenção. Seja pela paleta de cores, seja pela escolha da luz ou pela atmosfera harmônica com que Terra nos apresenta os personagens retratados. São homens trabalhando nas plantações de arroz e mulheres nas fazendas de flor de Lótus, no Camboja, casas flutuantes em Siem Reap, o mercado flutuante em Can Tho – delta do Mekong, canoas no Vietnam e barcos que funcionam como transporte coletivo de pessoas e mercadorias, transformando o rio em estrada, no Laos. O ar bucólico das obras destoa da ideia conflituosa e caótica que vem à cabeça de quem, à distância, imagina a região e a vida no entorno. Ao percorrer esses vilarejos, conviver com seus moradores e participar de atividades locais, Jeane Terra foi surpreendida pela atitude de aceitação dos habitantes diante das dificuldades enfrentadas. Pessoas felizes e conformadas com uma condição desfavorável, postura à qual a artista atribui à grande influência da religião (hinduísmo e budismo, principalmente) e da relação desses povos com o sagrado.

A forma escolhida para nos apresentar essas cenas não é aleatória. São pinturas que mais parecem fotografias analógicas pixeladas. Mosaicos de peles de tinta, recortadas em pequeninos quadrados de 1 x 1 cm, metodicamente organizados sobre canvas, usando a técnica do bordado em ponto cruz que aprendeu com sua avó e incorporou em sua prática. E que, apesar da materialidade física, tem suas nuances percebidas de forma mais evidente quando vistas através das câmeras de dispositivos eletrônicos, como aparelhos celulares e tablets. Em um tempo capturado pela aceleração digital, Terra faz registros com ares de passado de uma realidade presente que, ao que tudo indica, num futuro próximo deixará de existir. Uma mistura de tempos que embaralham os sentidos e nos envolvem em pura sensação.

No segundo andar da galeria, Jeane Terra nos apresenta imagens fantásticas de Angkor, no Camboja, situada ao norte do lago Tonlé Sap, que se conecta ao rio Mekong. As obras, monotipias sobre bases de pau a pique, trazem registros surreais de árvores gigantes agarradas às ruínas do templo de Ta Prohm. Um lugar construído no meio da floresta, posteriormente abandonado pelo homem e tomado de volta pela natureza. Como seres de ficção, as raízes das árvores se entrelaçam na arquitetura, reocupando o território de forma imperativa. A resposta de Gaia! O templo de Ta Prohm fica próximo ao templo de Angkor Wat, declarado patrimônio da humanidade pela UNESCO, em 1992. A região foi habitada entre os séculos IX e XV. Há uma mística no entorno, não existe consenso sobre as razões pelas quais a zona de Agkor foi abandonada: guerra, peste, fome, inundação e até mesmo seca são citados como possibilidades. Aqui, o relato mais marcante é da própria natureza, a forma como ela se sobrepõe às construções, numa demonstração de domínio e esplendor. Para expor esse enredo, Jeane Terra resgata um método construtivo antigo, o pau a pique. Numa alusão à arquitetura primitiva, cria bases utilizando elementos da própria paisagem.

Terra é uma artista alquimista. Engenhosa por natureza, faz da sua prática artística um laboratório criativo para investigações acerca de materiais, suportes e técnicas. Dessas experimentações nasceram as peles de tinta, os pixels analógicos e as monotipias em bases de pau a pique. Uma linguagem própria que desenvolveu para falar de temas que navegam o passado, o presente e o futuro, simultaneamente. Preceitos da física quântica incorporados à sua poética. Mecanismos que aguçam a curiosidade e convidam à reflexão acerca de proposições que nascem autobiográficas e se transformam em debates globais como a desterritorialização, as questões ambientais e as possíveis formas de relação do homem com a natureza.

 

Cecília Fortes


Mekong, O Grito , 2024
Monotipia sobre pele de tinta


Morada Errante , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


Travessia e Quimeras , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


Alma Flutuante , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


As Mulheres e o Rio , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


Jardim de Lótus , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


Paisagem de Lótus , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


A Colheita de Lotus , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


Mercado Flutuante , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


A Dádiva da Colheita , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


A Colheita , 2024
Quadrados de pele de tinta de 1 x 1 cm sobre canvas


A Majestosa , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Sublime Habitante , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Abraço 1 , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Abraço 2 , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Abraço 3 , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Alma da Floresta , 2024
Monotipia sobre pau a pique


Santuário Ressonante , 2024
Monotipia sobre pau a pique