O globo da morte de tudo
Anita Schwartz Galeria de Arte apresenta, a partir de 13 de novembro para convidados e do dia seguinte para o público, a exposição “O globo da morte de tudo”, mesmo nome de um trabalho de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska, dois dos mais inventivos e múltiplos artistas da cena contemporânea, amigos e parceiros de filmes e de canções. Este trabalho ocupará todo o grande espaço térreo da galeria, com 200 metros quadrados de chão e pé direito de mais de sete metros. No segundo andar expositivo, Nuno Ramos mostrará cinco desenhos inéditos da série “Schreber” – tinta a óleo, folhas de ouro e prata, carvão e tecido sobre papel.
DE 14.Nov.2012 A 14.Fev.2013
O princípio da perda
"Toda vez que o sentido de um debate depende do valor fundamental da palavra útil [...] é possível afirmar que o debate é necessariamente falseado e que a questão fundamental é eludida", sentencia Bataille em seu estudo de economia geral que denunciava, nos anos 1930, uma profunda incompreensão quanto aos princípios de produtividade/conservação e despesa/consumo, e o lugar por eles ocupado na história da experiência humana. A vida mesma é inútil, e um dos logros da modernidade - no duplo sentido da palavra: feito e ilusão -, do racionalismo econômico do modo de vida burguês, é tampar essa inutilidade, no fundo ontológica, com uma produtividade progressiva, exorbitante, e que hoje ameaça, dialeticamente, nos reconduzir ao vazio de que procurara escapar, só que agora como experiência real do fim do mundo, da morte de tudo.
Na esteira do célebre estudo de Mauss sobre a dádiva, Bataille revê a experiência de diversas civilizações chamando a atenção para o caráter histórico recente do privilégio máximo concedido aos princípios de produção e aquisição. Ao contrário, sociedades não modernas como as dos índios do noroeste dos EUA tinham sua economia social e pulsional orientadas pelo princípio do consumo e da perda. É esse, para evocar seu mais conhecido exemplo, o sentido do ritual do potlacht, pelo qual tribos engajavam outras tribos numa troca de dádivas cuja finalidade não era material, mas simbólica: ostentar o poder de perder, e humilhar e obrigar o outro, o rival, a perder ele também o mais que puder. Assim como os portugueses não puderam entender que os índios do pré-Brasil não queriam objetos sem fim, mas sim uma troca, um contato sem fim, também a economia clássica só enxergou nesse sistema de dádivas uma forma primitiva do comércio, quando seu sentido é o oposto. E esse sentido ensina e orienta necessidades humanas fundamentais. Pois é nesse âmbito de uma verdadeira economia geral que se situa a obra O globo da morte de tudo, de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska.
Não é por acaso que a obra se estrutura a partir de quatro categorias. A palavra aristotélica remete aos princípios fundamentais do ser, e na obra eles se apresentam em dois pares opositivos: Cerveja x Nanquim, Cerâmica x Porcelana. A categoria Cerveja, dizem-nos os autores, "prende-se à vida cotidiana - eletrodomésticos, troféus, instrumentos musicais, jogos". A categoria Nanquim "tem associações com a noite, a morte e o luto". A categoria Cerâmica "é uma coleção de objetos básicos, associados ao mundo agrário, à culinária, às coisas primárias". A categoria Porcelana "está regida pelo luxo e pelo kitsch - perfumes, produtos de beleza, porcelanas figurativas, vinhos de safra antiga". Pode-se dizer que, estruturalmente, essas categorias formam as seguintes oposições: pulsão de vida (Cerveja) x pulsão de morte (Nanquim), produtividade/conservação (Cerâmica) x consumo/despesa (Porcelana). São os registros fundamentais da experiência humana, e é a partir deles, com eles que as sociedades e indivíduos efetivam suas economias de vida. Que todos eles estejam submetidos, no estágio inicial da obra, a um acontecimento cujo horizonte é a destruição, isso, é claro, situa o gesto dos artistas num amplo desejo de despesa. Desejo de interferir na economia produtivista do mundo com um hino ao desperdício. E esse gesto desencadeia outras ambiguidades e dialéticas.
Não escapou ao próprio Bataille que os rituais de perda eram movidos por um ganho em outro nível; um ganho simbólico. Perdiam-se, por meio de dádivas ou sacrifícios, bens materiais, mas se ganhava a posição hierárquica, a glória, o reconhecimento da virtude da liberação. Também nessa obra de destruição que é O globo da morte de tudo podem-se identificar princípios simultâneos de perdas e ganhos. No contexto do estatuto moderno da obra de arte, em cuja experiência convivem as lógicas da gratuidade e da mercadoria, é importante compreender esse tema de modo desassombrado. Numa primeira volta do parafuso, a instalação, com sua vasta recolha de objetos - que remete às Exposições Universais do século XIX, só que apresentando, não os objetos desconhecidos do presente que sinalizam o futuro, mas os objetos conhecidos de um mundo prestes a ruir -, sua escala grandiosa, seu alto dispêndio de tempo e dinheiro para a montagem, montagem afinal de uma obra efêmera, invendável, a instalação assoma como um antimonumento à dépense. Em outra volta do parafuso, entretanto, adentra a cena uma economia produtiva indireta (de que esse catálogo é uma das manifestações), e ainda uma economia imaginária (o lucro imaginário dos artistas, dos seus eus). Uma perspectiva vanguardista radical tende a ver nessas ambiguidades uma contradição. Mas uma determinada prática da economia geral não precisa anular alguns de seus elementos internos, e sim privilegiá-los ou diminuí-los, de acordo com seus valores. A obra destruída vive em registros. Utiliza-se de algum modo a utilidade recusada. É uma forma de economia sustentável, só que orientada pelo que a obra de arte privilegia, que sempre foi, é e será (se obra de arte for) o princípio não lucrativo.
Tão forte quanto essa dimensão performativa da instalação é a sua dimensão constativa. É óbvia a pertinência de uma obra que encena a morte de tudo no momento mesmo em que o mundo se vê obrigado a encarar a possibilidade de seu fim. Mas o comentário da obra se revela agudo a partir, mais uma vez, de seus elementos internos. As estantes abarrotadas indicam o mundo da produtividade exorbitante, e é por causa dela que o mundo poderá ter de encarar o seu fim. Não se consegue imaginar uma outra forma de vida que não seja orientada pelo sistema progressivo da produtividade (Zizek costuma dizer que hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo). Mas a produtividade, que ilude a morte com a sua produção incessante de objetos, ocupando a realidade, a percepção e os sentidos dos sujeitos, a ponto de muitos sentirem uma espécie de horror vacui ao ficar por instantes sem um gadget - essa mesma produtividade desenfreada é quem afinal ameaça os sujeitos com a experiência real da morte, em sua pior versão: o fim de tudo. Por um efeito dialético, assim como os nômades eram forçados a se deslocar justo por serem os mais sedentários dos povos (incapazes de se mover para cultivar), a civilização mais produtivista da história é ameaçada pelo real da improdutividade, a atingir a própria vida da espécie.
Tudo isso gira no Globo da morte de tudo. A tensão entre a matéria e o imaterial, a voz e o sentido, o signo e a opacidade, que atravessa, constituindo-a, a obra literária e artística de Nuno Ramos, apresenta-se, nessa parceria com Eduardo Climachauska, como um paroxismo e um paradoxo: há tanto mais sentido quanto maior a massa de matéria, as interpretações se avolumam apesar da violência aos objetos, essa espécie de disaster painting revela-se a um tempo mais brutal e mais sublimada. Afinal, é de arte que se trata, e a arte, como na esplêndida definição da Dialética do esclarecimento, é Ulisses amarrado ao mastro ouvindo as sereias. Se esse Globo da morte quer destruir tudo, é apenas para erguer uma criação que lembre ao mundo, a este mundo, que perder é uma verdade fundamental da experiência humana. E quem a acata está mais próximo da vida.
Francisco Bosco