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Artur Lescher Rio Máquina

DE 13.Ago.2009 A 12.Set.2009

Leia o texto da Exposição

A MÚSICA CALADA DE ARTUR LESCHER

No campo expandido da escultura do século 20, qualquer passo continua sendo um desafio, uma reconquista de território, uma declinação estética de seu litígio linguístico e cultural. Outros registros e suportes menos históricos não possuem (ainda) tanto essa dificuldade por não terem memória temporal tão atribulada nem semelhante simbolização universalista. Daí os trabalhos de Artur Lescher convocarem uma atenção especial. As obras têm uma visualidade retrospectiva e prospectiva da escultura em seu salto quântico , de certa memória da linguagem, de formas e operações. Ao mesmo tempo, têm um posterior despojamento com a transição de nosso olhar para uma experiência estética que vai além do conhecimento das raízes escultóricas modernas e contemporâneas (sejam neoconstrutivas sejam pós-minimalistas), metamorfoseadas sutilmente pelo artista. As nuanças estratégicas na construção de imagens, como pesquisas rigorosas e ascéticas, não visam os arredores retóricos do maneirismo contemporâneo. Mas, ao contrário, produzem avanços comedidos – formas-sínteses como instrumentos de precisão ou máquinas poéticas –, passos sigilosos frente a um abismo que sempre está diante de nossos olhos como parte da paisagem.

Não em vão, a construção imagética atingida não descansa nesses estritos achados de linguagem. Sem possuir a contaminação quase sociológica ou informativa de outras propostas artísticas de nossa época, a poética de Artur Lescher abriga, nunca de forma explícita, uma particular leitura do mundo, entrevisto através dos materiais, estruturas e procedimentos. A configuração de suas esculturas em regime de instalação tem estreito diálogo com o espaço e a arquitetura. O que significa que boa parte de sua última produção vem reclamando uma maior simbiose linguagem-mundo, sempre em perspectiva, nunca transparente ou correlata, como é o caso mais preciso do binômio cultura-natureza, uma de nossas polaridades mais constitutivas e conflitivas. Algo que já se confirmava na sua exposição anterior, Paisagem Mínima (2006), e já se adivinhava em Indoor Landscape (25ª Bienal de São Paulo, 2002).

Começa, então, outra conotação semântica no trabalho do artista, menos ensimesmada na objetividade, mais transversal e que transfigura a sua percepção, que equilibra a sua ajustada apresentação com um bastidor imagético menos puro, mais poroso. Assim, o lado "indicial" dos trabalhos estabelece um nexo maior entre materialidade e imagética – sendo mais insinuado no âmbito dos títulos, o que é reconhecido pelo próprio artista: "Eu me interesso pelo deslocamento da geometria para o orgânico".* Precisamente, as novas peças sintonizam a representação imaginária da distância com os elementos naturais: o que se oferece são mais conceitos derivados, como fluidez, potência, movimento, suspensão, do que visualidade entregada.

A obra de grandes dimensões da mostra na galeria Anita Schwartz, Rio Máquina (2009), e as peças quase móbiles de Metaméricos (2009) ou Cachoeira (2006) relatam uma presença da natureza sumamente elíptica – nada analógica ou mimética – e nunca definitiva. Por outro lado, a contaminação da natureza está presente em seu substrato pensante. Aqui, o registro de uma frequência: as esculturas-dobradiças de Lygia Clark se chamam Bichos e, coincidentemente, fundamentam o movimento por meio de dobras planares rotativas, assim como Metámericos é uma geometria de artrópodes, uma família de aracnídeos, crustáceos e insetos, cuja economia formal sintetiza esqueleto e extremidades.

No rigor dessa "geometria sonhadora" se apura uma sintonia indissolúvel entre matérias, formas, procedimentos e espaços: uma firme articulação que quer ser simbiótica. Assim, as peças oferecem uma intensa leitura espacial e arquitetônica-física, mas também reflexiva, já que a fisicalidade nunca é absoluta porque sabe manter uma margem de autonomia, além do espaço físico, suspenso como uma conquistada abstração. Essa alta aposta das obras, cada uma em seu espaço, acionadas com a nossa cúmplice percepção e passagem, não deve ser esquecida. As diversas e pontuais aparições escultóricas da mostra Rio Máquina são parte de um discurso que pontua o espaço – e qualquer espaço – a seu favor: escadas, cantos, paredes laterais, teto, elevador, pátio. Tal apropriação espacial e saber arquitetural –marcas do artista – produzem também uma sincronia extraordinária entre os ponti luminossi dos espaços e as peças (como peças-instrumento em um espaço-partitura). De tal modo que há vários acentos álgidos nas obras colocadas nas escadas, de diferentes naturezas e discursos, mas com a mesma procedência e precisão. Como peças que atingiram seu lugar: Cachoeira (2006), o cone de Sem Título (2008) ou a versatilidade dos Metaméricos (2009). Já Colchão D’água-mar (2008) pratica uma peculiar situação escultórica quando se converte no negativo do volume, e a densidade do interior vazio de um container fechado, como seu inusitado duplo espelhado.

As canônicas características de volume, peso, matéria, escala são atravessadas por contingências de outra ordem, do espaço apropriado e criado, sempre na base de modulações escultóricas. Peças-máquinas que parecem inventar seu funcionamento visual e semântico independente: todo um sistema perceptivo próprio para ser contemplado. Aliás, grande parte dos trabalhos de Artur Lescher pratica uma música calada, silenciosa – como também a exercitam, a seu modo, Abraham Palatnik ou Waltercio Caldas. No caso de Lescher, o silêncio é interpretado, construído, pautado por meio de trabalhos modulados, com segmentos e interpretações diversas. As relações formais consequentes produzem seu próprio pensamento sonoro, essa qualidade "imaginante" quase audível (ruído, som, silêncio como vibração quintaessenciada numa sequencialidade visual modulada). Essa versatilidade formal e espacial faz parte do requinte semântico e instrumental da poética do artista, de sua partitura de imagens: de certo ar suspenso de seus trabalhos, até quando são de um peso abrumador ou de alta presença. Leveza e opacidade que, juntas, permitem abraçar a dupla condição do material e do imaterial, presença e ar.

A pele de malha metálica, a moiré de Rio Máquina, suas roldanas, alturas e pesos, mostram-se como uma engrenagem quimérica, rigorosamente bem desenhada e finalizada – como todas as obras do artista, exatas em seu resultado iconográfico –, que faz circular uma imaterialidade ou uma fluência abstrata das coisas – e, de passagem, certa ironia sobre credos positivistas ou racionalistas. Rio Máquina se apresenta, com seu ar neoconstrutivo e pós-industrial, como uma imagem totêmica que guarda seu último segredo, ainda que possamos escutar algo. Talvez seu ruído de máquina silenciosa, capaz de ressonâncias imagéticas livres, ou sua potência visual, que, como um engenho silente, está a ponto de ser ativado e rodar em nossas mentes.

A trama dessa peça categórica como construção civil ganha uma extensão inesperada, conceitualizada in situ, no meio da montagem: um pequeno vídeo "divisado" no próprio uso do elevador, fruto dos efeitos visuais produzidos com o movimento, e a trama metálica de uma das paredes do fundo: Ascensor (2009). A imprevista obra é um pequeno ápice visual, de menos de um minuto, mas que produz um notável efeito de ressonância. No vídeo, o efeito ótico reticulado sofre uma animação quase expressionista, mas também uma cinética fosca, que se religa com a rede metálica de Rio Máquina – e, por associação, com o sistema interno de polias, cilindros, pesos/contrapesos da peça, como também exige qualquer elevador.

O título da mostra alude a essas questões de mecânica da natureza, mas Rio Máquina também é um maquinário ignoto, abriga uma série de trabalhos que assumem a condição persistente de questionamentos visuais na chamada era da dúvida. O artista alimenta essa leitura como um limiar: "Reconheço certa sedução associada a um perigo. Uma beleza como a do início de uma tempestade".* O abismo anunciado nessas primeiras linhas é uma pesada herança posta em diálogo. E o olhar especulativo-construtivo e a escuta intuitiva de frequências-vibrações são os dois eixos operativos confessionais do artista, apresentados ao visitante para uma nova aproximação estética.

Se a poética de Artur Lescher guarda uma ironia com a manufatura pós-industrial, e até com a visualidade sedutora que emana do design, não é por acaso, é porque esta funcionalidade está em causa em sua obra, não funciona como estética aplicada: seu destino final é sempre outro. A gravidade em suspenso dessa obra tão enxuta deflagra uma gravitação de sensações espaciais, uma flutuação de vibrações perceptivas e conceituais: os contrapontos de rio e máquina, água e mecânica, estável e instável, sequências e intervalos, movimento e imobilidade. E, sobretudo, uma meditação estética sobre o suporte matérico e o equilíbrio entre o que se vê e o que se intui. A última armadilha dessas esculturas é, portanto, sua natureza/forma paradoxal: aparência detida, pousada, mas vibrante. O estado latejante que não visa ser definitivo, nem para elas nem para nós.

Adolfo Montejo Navas

Rio de Janeiro, agosto de 2009