Sob a Luz de Outros Sóis
Estamos “Sob a luz de outros sóis”, em uma exposição onde a realidade é transmutada em sensação e a expressão em gesto pictural, forma ordenada e intenção sensível. As imagens apresentadas possuem um aspecto fluido, como o movimento das águas que correm incessantemente para reinventar a vida.
DE 23.Ago.2023 A 21.Out.2023
Orvalho sobre a grama no chão. Cheiro de terra molhada. O sol bate nas pedras por entre as folhas e beija gentilmente a superfície do solo fértil. Uma realidade descortinada em multicores nos é apresentada enquanto adentrarmos ao misterioso espaço Natural. Estamos “Sob a luz de outros sóis”, em uma exposição onde a realidade é transmutada em sensação e a expressão em gesto pictural, forma ordenada e intenção sensível. As imagens apresentadas possuem um aspecto fluido, como o movimento das águas que correm incessantemente para reinventar a vida. Verdes, ocres, violetas, azuis, compõem um lugar ideal para que um discurso seja exprimido ainda que silenciosamente. O vento que corre emite um som contínuo, quase inaudível. Na pintura de Esther Bonder, a Natureza dança.
Não seria possível prosseguir sem antes considerar que as obras em exposição sejam paisagens delicadamente pintadas pela artista. Mas, importa saber que paisagem, antes de tudo, é um conceito inventado a fim de classificar representações de elementos da natureza e amestrar o olhar humano ao longo dos séculos. A representação dos elementos naturais – a partir de um ponto de vista – é tema de interesse recorrente na pintura, ao menos, desde a Idade Média. Observar o mundo, suas nuances, perceber possibilidades de cenário, são ações comuns que fizeram da prática de figurar paisagens uma constante. Até o início do século XVIII, apreender o Natural em uma imagem significou estabelecer limites entre as dimensões humanas da imagem e seu entorno não humano. A lógica antropocêntrica introjetou nas representações um lugar secundário para a natureza – a real e a imaginada. Foi o conceito de paysage (termo em francês), definido no princípio da Era Moderna, que estruturou o modo como compreendemos e elaboramos ainda hoje as distintas apresentações da natureza.
A paisagem real se modificou ao longo do tempo. As cidades cresceram, as florestas diminuíram. Os temas abrangidos pelo conceito também foram alargados, uma vez que hoje há paisagens sonoras, virtuais, urbanas. Entretanto, a noção idílica de paisagem permanece, teimosamente, com suas folhagens, montanhas, vegetações. Afinal, há uma evidente conexão entre os seres humanos e os demais seres que este elege para representar. O interesse no elemento sensível, dotado de diferentes estruturas de vida, com formas outras de comunicar, reproduzir, permanecer, é um bordão que atravessa o tempo e mantém o humano conectado com o natural, apesar das violências operadas ao longo da história contra a natureza. Paisagem sempre foi o resultado do olhar de alguém para algo, uma captura do exterior circundante mediado por conhecimentos ou traços culturais. Nesta exposição a lógica se inverte.
Paisagem é conceito, mas é também matéria perene. Sofre transformações continuamente, sem nunca se perder de si mesma, impondo sobre sua continuidade a matéria que se desfez no passado para um refazer-se no futuro. Paisagem tem tempo próprio e não acata as urgências da lógica do tempo presente, ainda que sofra por isso. Paisagem é fluxo constante e lugar de encontro consigo e com os outros. A amálgama entre a pintura de Esther Bonder e o conceito de paisagem está localizada na capacidade que a artista possui de reapresentar, lançando mão de dispositivos materiais e filosóficos contemporâneos – como os pensamentos de Emanuele Coccia e Ailton Krenak –, um gênero de pintura histórica.
As cenas aqui verificadas são imagens criadas a partir de uma experiência sensível. Ao observarmos os trabalhos em exposição podemos perceber que Esther imprime um ritmo ligeiro, com pinceladas carregadas graficamente, que se permitem saber tanto ágeis, quanto precisas. A natureza apresentada nestes trabalhos pertence ao dentro, ao íntimo da artista que partilha o sensível conosco através de extensas áreas de vegetação trabalhadas com uma singular paleta de cor. Ora em tons terrosos, ora banhados em imensos verdes ou através das cores em profusão, todas as miragens são extensas e acolhem o nosso desejo de adentrá-las. Paisagem aqui é convite, acolhimento num espaço que compreende a importância da vida – seja ela humana ou não. Este proceder mimetiza os ciclos vitais das florestas, onde vida e tempo adotam um nexo particular e não acolhem os sintomas da vida contemporânea, como a angústia e a ansiedade.
Poderíamos afirmar que o procedimento utilizado pela artista se assemelha ao dos expressionistas que afirmavam em seus trabalhos a compreensão do mundo pelo filtro da interioridade. Como um horto cultivado, as paisagens de Esther são espaços de vida em plenitude. As imagens não são apreendidas fidedignamente do mundo, nem são cópias retiradas de manuais, fotografias ou sites, antes nascem de sua própria consciência e vivência. Portanto, podemos afirmar que as paisagens aqui apresentadas são mediadas por uma sensibilidade tocada pela atenção e experiência individual de um contexto ambiental adverso e risco permanente. Apesar da aparente simplicidade formal, o discurso que se estrutura a partir das imagens é complexo, pois aponta para os esgotamentos da vida, as belezas efêmeras e o destacado cuidado que há de se ter para que uma vida sensível permaneça e vigore no futuro.
Por fim, podemos considerar que a pintura de Esther Bonder transforma a imagem em um abraço caloroso que nos convida ao paraíso. Cena que ela mesma já representou em séries de trabalhos anteriores nomeadas como “As Bodas de Eva” e “A Vida Sensível”. Nas pinturas em exposição, a artista não apenas representa paisagens quiméricas, mas mimetiza a esperança mediada pelo sensível e imagina – no sentido de criar imagem mental – como o mundo poderia ser, não o que fizeram dele. Pintura-abraço, de sorriso largo, as representações de natureza multicoloridas da artista, dão corpo ao que Félix Guattari nomeia como “ser-em-grupo”. Pois, ao elaborar outras naturezas, a artista foge da lógica cartesiana que implica pensar para existir, uma vez que o pensar não é unicamente racional e humano, nem é entendido hoje como uma forma superior dentre os demais viventes. Seres vivos, que pensam – racionalmente ou sensivelmente – existem de diversas maneiras e é, justamente por esta ideação, que Esther Bonder nos indica novos horizontes, “sob a luz de outros sóis”.
Shannon Botelho
Antes da Maçã / Before the Apple
, 2020
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Sob a Luz de Outros Sóis / Under the Light of Other Suns
, 2023
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Sobre todas as cores / About All Colors
, 2023
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Terroso / Earthy
, 2023
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Aurora / Dawn
, 2023
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Socaba
, 2022
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Mapacho
, 2022
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Ayahuasca
, 2022
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Escotilha / Hatch
, 2023
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas
Rio Touro Morto / Dead Bull River
, 2021
Acrílica sobre tela / Acrylic paint on canvas