REVERTER
Reverter, uma palavra, duas direções. Sua etimologia aponta para o latim “revertere”: voltar, tornar. Direção um: retornar a um estado anterior, retroceder ao ponto de partida. Direção dois: transformar algo concreto ou abstrato em outra coisa, ser o resultado de, tornar-se. Assim Afonso Tostes nos conduz, através de suas obras, por onde transita o seu pensamento.
DE 06.Nov.2024 A 18.Jan.2025
Reverter, uma palavra, duas direções. Sua etimologia aponta para o latim “revertere”: voltar, tornar. Direção um: retornar a um estado anterior, retroceder ao ponto de partida. Direção dois: transformar algo concreto ou abstrato em outra coisa, ser o resultado de, tornar-se. Assim Afonso Tostes nos conduz, através de suas obras, por onde transita o seu pensamento.
Tostes tem por hábito a atenção ao entorno, a busca pela beleza, a observação das coisas simples. Colhe pelo caminho materiais descartados e os transforma em suporte e linguagem para as suas proposições artísticas. Pedaços de madeira, que um dia foram piso, porta, haste, voltam a ser matéria prima agora usada para esculturas, instalações e pinturas. Sujeito de olhar atento e percepção aguçada, se inspira em situações corriqueiras e incorpora a estética de objetos ordinários na criação de suas obras: técnicas construtivas primitivas, materiais e ferramentas de trabalho rudimentar, um remo, um barco, um caminhão. Soluções criativas dadas por pessoas que fazem trabalhos “invisíveis” com o que têm à mão, sem uso de tecnologia, despertam a sua curiosidade.
Em suas andanças, o uso indiscriminado da madeira, material tido como vulgar pela sua abundância em território nacional, o levaram a pensar sobre a questão ambiental. A ideia de reaproveitamento de materiais ganhou nova conotação, suscitando reflexões sobre o descaso e a exploração da natureza e sugerindo o questionamento sobre os tipos de relação que podemos ter com o meio ambiente, diferente da atual de cunho predominantemente predatório.
Em sua primeira exposição individual na Anita Schwartz Galeria de Arte, Tostes nos convida a percorrer o “não labirinto”, uma grande instalação em bambu, em formato espiral, e a descobrir o seu elemento central. No fluxo do “não-labirinto”, entramos por um lugar e saímos por outro, caminhando em sentido anti-horário por uma trilha que leva sempre adiante. Numa residência realizada na Casa Wabi, no México, em 2023, o artista estudou a questão física de como viabilizar o anti-labirinto durante um mês. Pensamento que se desdobra em diferentes camadas, conectadas a práticas pessoais e referências diversas. A forma espiral remete à imagem da galáxia e sua imensidão. Interessante lembrar que a Terra gira no sentido anti-horário em torno de si mesma. Numa roda de capoeira, os jogadores em momentos estratégicos fazem o movimento de “volta ao mundo”, circulando em sentido anti-horário pela parte mais extrema da roda: para acalmar o jogo, quando estão cansados, para se conectar com o plano espiritual e pedir proteção, ou quando há troca de participantes. O sentido anti-horário se conecta com a ideia de ancestralidade, muito presente e respeitada nas religiões afro-brasileiras. A volta ao passado, aos ancestrais, para rever ou homenagear quem esteve aqui antes da nós. Conecta-se com o simbolismo da Sankofa, que recorda os erros do passado para que não sejam cometidos novamente no futuro, servindo como fonte de adquisição de conhecimento e sabedoria. A forma do não labirinto dialoga ainda com a Spyral Jetty, de Robert Smithson.
No andar térreo da galeria, são apresentados também trabalhos em carvão, madeira e sisal, trazendo uma alusão mais direta à temática ambiental e urgente presente na exposição.
No segunda andar da galeria, o artista apresenta uma série de pinturas produzidas com pó de madeira. Rouxinho, mogno, peroba do campo, ipê e jatobá dão os tons de marrom aplicados nas diferentes telas. Sobras de madeiras usadas na produção de esculturas que Tostes, ao invés de descartar, guardou para serem reutilizados. Prática comum desenvolvida pelo artista, a de guardar materiais e objetos no ateliê e conviver com eles, até surgir uma ideia ou um processo no qual serão incorporados e ganharão vida nova. De forma espontânea e despretensiosa. Neste corpo de trabalhos, os tons de madeira e suas diferentes texturas são acompanhados de pinturas em cores primárias ou secundárias, algumas com aguadas descontroladas, e formam padrões geométricos inspirados em pinturas decorativas simples, aplicadas em objetos como remos, barcos, casas. Tostes as define como uma geometria incidental, que tem como referência pinturas indígenas, cabocas, afro-brasileiras. O berimbau dos antigos mestres da capoeira, por exemplo, trazia pinturas elaboradas, pensadas para embelezar o instrumento, como uma espécie de roupa, cujas cores realçam a sua beleza. Em relação à forma, as pinturas de Tostes incorporam telas e vazios, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio própria da escultura. O pensamento do artista é escultórico e, por isso, na sua prática, num movimento inverso ao tradicional, esculturas servem de desenho para pinturas e não o contrário. Tostes iniciou a produção desta série com uma ordem pré-estabelecida para as composições. Ao longo do processo, as telas se misturaram, o programado deu lugar ao inesperado e as pinturas ganharam novos formatos. Uma vez mais, o espontâneo se fez presente, dando às pinturas uma autonomia que seguiu fluxo próprio, conforme descreve o artista. Vendo os trabalhos prontos, é inevitável relacioná-los a uma articulação geométrica, histórica e à tradição neoconcreta brasileira. Mas, aqui, tais associações são secundárias. Nas camadas do pensamento e nas andanças do artista, essas referências estão guardadas e talvez até, inconscientemente, o tenha influenciado indiretamente, assim como todas as referências que trazemos conosco de alguma forma ajudam a moldar o nosso olhar. Mas nas pinturas de Tostes, a geometria é impensada, o popular se sobrepõe ao erudito, o foco está na simplicidade e na beleza.
Reverter para reconectar. Reverter para transformar. Despretensiosamente.
Cecília Fortes
Curadora
A VII
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 100 x 120cm
A II
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 120 x 120cm
A IX
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 100 x 117cm
A III
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 220 x 222 cm
A V
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 130 x 170 cm
A I
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 150 x 130 cm
A IV
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 140 x 160 cm
A VIII
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 90 x 73 cm
A VI
, 2024
Pó de madeira e acrílica sobre tela | Wood powder and acrylic on canvas 90 x 204 cm
Fruto #1
, 2024
Carvão, sisal e madeira sobre tela | Coal, sisal and wood on canvas 150 x 180 cm
Fruto #2
, 2024
Carvão, sisal e madeira sobre tela | Coal, sisal and wood on canvas 150 x 180 cm