Coletiva 3+1
DE 01.Mar.2018 A 31.Mar.2018
Recolhendo sobras
texto crítico de Agnaldo Farias
A trilha poética de Arthur Chaves está assentada na ambiguidade, no que a primeira vista assemelha-se a uma indecisão, posto que não se sabe ao certo se cada um de seus trabalhos, a maioria situada entre a pintura e a escultura, está a meio caminho do próprio fim ou, em estado larvar, apenas começam a se constituir. Das duas, uma: ou bem estão se desfazendo ou, ao contrário, a intenção do artista será organizá-los em construções mais limpas, escorreitas. Quem sabe?
Pois nem um nem outro. Por um lado parecem mesmo um tanto desfeitos, em virtude de serem compostos por pedaços de matéria no geral dócil, como tecidos e plásticos variados, alguns moles outros mais rígidos, como é próprio das sobras de produtos, dejetos industriais, em suma, coisas que se prestam à manipulação com relativa facilidade. Esse sentimento é tão forte a que simples visão de um conjunto deles, como este ora em exposição, pode lembrar um agrupamento de estandartes composto de matéria maltrapilha, acumulada, empilhada e alinhavada, precariamente apoiada em pregos, parcialmente retesadas em molduras, ou arranjadas em traves de madeiras, estruturas de ferro, tudo meio desconchavado.
Mas essa impressão desfaz-se em seguida, com a vista aproximada, a percepção de que os trabalhos nascem do arranjo cuidadoso entre padrões estampados, planos coloridos, imagens impressas, notícias de um mundo repleto de informação, engatados uns aos outros, sobrepostos em camadas despejando-se em quedas suaves ou dramáticas, pendendo em catenárias, resultante dos pesos próprios de cada uma das peças, de seus formatos irregulares, cheios de pontas, dobras, reentrâncias, frequentemente incorporando a parede que lhe deveria servir apenas como apoio. Aproximando-se ainda mais, as costuras se revelam, as linhas minúsculas e exatas produzidas pela mecânica minuciosa de uma máquina de costura, equipamento que o artista maneja com perícia. É possível imaginá-lo debruçado sobre o equipamento cuidando em juntar partes que em princípio não se adequam, quase que incompatíveis. E é bem provável que trabalhando assim no miúdo ele perca a noção do todo, o que faz que cada peça seja um resultado não previamente projetado. Um resultado que se obtém mediante a inteligência das mãos, em associação com materiais e equipamento. Em coerência com esse processo, as superfícies de suas obras são sempre baças, misteriosas, debaixo delas vêm uma carrada de elementos, imagens, cifras, outros signos; a matéria que corre como a que chega levada pela correnteza da água das sarjetas, o escoar contínuo pelo chão das arquiteturas desabitadas de Stalker, o inesquecível filme de Tarkovsky, levando consigo fragmentos indiscerníveis.
Com sua infância passada numa cidade pequena, Arthur Chaves veio para o Rio de Janeiro para fazer o curso de moda. Sua habilidade levou-o a trabalhar como assistente de diversos artistas, alguns deles, como Daniel Senise e Cadu, acreditando e impulsionando o evidente talento do jovem artista. O grande risco contido numa vivência como essa, no interior de estúdios de artistas senhores de sua linguagem, é que ela pode levar a alguém em formação a ter como seu os caminhos dos outros, incorporando soluções e rotinas. Nada disso contagiou nosso artista que deles, quando muito, aproveitou as sobras de suas oficinas. Isso porque a matéria prima de Arthur são as sobras, que de resto é o que mais se produz no mundo todo. Aquilo que é descartado, que tem por destino o anonimato do lixo, o que demonstra o pouco caso pelo tanto que ele carrega de memória e energia vital, é o que o nosso artista recolhe, reorganiza e, agora como um corpo pulsante, coloca diante de nós.