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Daisy Xavier Sobre Como as Coisas Caaem

DE 07.Nov.2019 A 11.Jan.2020

Leia o texto da Exposição

Em queda livre 

a partir de "Sobre como as coisas caem", de Daisy Xavier 

 

Ao esboçar este texto, percebi que ele se endereçava a ti, Daisy, para que operasse como mais uma das conversas que o antecederam. Não empreguei outra forma. Não objetivo tom íntimo, sequer confessional, apenas percebi que este gesto se apresentava pois propositadamente escrevo desde o processo de preparação da mostra – não intenciono escrever algo que elucidaria o que pensamos e dialogamos sobre tua exposição. Carrego uma impressão nítida que só me ocorreu agora e este texto é uma tentativa de provocar mais uma leitura da mostra desde processo de sua preparação: tratam-se de trabalhos que operam no gerúndio 

 

Ao investigar "Sobre como as coisas caem", tua poética opera neste instante – um durante. Nos volumes tridimensionais de sua instalação e nas formas desenhadas, pintadas, gravadas, fotografadas, reproduzidas e impressas há uma sugestão de movimento em curso, experimentos da ação da força da gravidade.  Em constante movimento, como na geometria do Nu descendo a escada, de Duchamp. Ou na montagem do Salto no Vazio, de Yves Klein. Nos corpos moles e formas orgânicas de Ernesto Neto. Ou nas várias frações do tempo capturadas pelas múltiplas lentes de Eadweard J. Muybridge. Lá no corpo da matéria reside também o tempo, como nas mãos negativas de Lascaux ou nos audiovisuais de Bas Jan Ader. Num encontro dolorido com a terra firme, Ader especulou com seu próprio corpo relações de fracasso sob a força da gravidade que apontava para a terra. Pendulando na ponta de um galho de árvore, tombando num rio, soçobrando sobre um cavalete, caindo e caído, provocando a própria queda e deixando-se cair, o que culmina com seu desaparecimento no mar em 1975.  

 

Ao pensar no emaranhado dos volumes em latão que produziste, evocamos a Milha de Fio, de Duchamp, na Primeira Exposição Surrealista – ao mesmo tempo, comunicam-se e desencontram-se das tuas pesquisas com as redes: são formalmente similares, enquanto malha, mas a inconstância que os volumes pontiguados provocam na queda da instalação se diferem tanto da instalação que fizeste nas Cavalariças do Parque Lage, por exemplo –, apenas agora me ocorre pensar contigo sobre outros trabalhos desta constelação.  

 

Em seu texto "Da arte de se equilibrar numa ausência",  a Luisa Duarte escreve sobre teu trabalho partindo de uma "gramática da fluidez, do trânsito contínuo". Os versos do Paulinho da Viola que ela cita em sua epígrafe fazem vibrar isso no corpo: "A vida não é só isso que se vê / É um pouco mais / Que os olhos não conseguem perceber / As mãos não ousam tocar / E os pés recusam pisar". Por conta de outro trabalho, Ligia Canongia percebeu que tu estás "interessada em criar objetos poéticos que interrogam sobre suas próprias formas, no sentido de colocar em xeque sua estabilidade e suas determinações físicas, [...] está sempre a propor situações em trânsito, quebrando a diferença entre os opostos, e dando ao trabalho de arte uma potência fluida e desconhecida". Foi Agnaldo Farias, mirando outro trabalho seu, também quem percebeu: "O problema do movimento parece ser a pedra de toque da poética de Daisy Xavier." Farias foi preciso ao compreender que isto não é teu objeto de atenção enquanto artista, mas constituinte da própria ação artística. "A começar pela proposição da imagem, que se comporta como um duplo daquele que a observa". 

 

A arte dá consistência, espessura às percepções da vida cotidiana. Esta especulação sobre o fracasso e a falha se traduzem não apenas na sua observação de corpos em queda, mas no seu uso de materiais nesta mostra. Corrosivos, ácidos e abrasivos, materiais de gravura e bastões de massa de tinta ou combustível fóssil, intercalam-se em pedaços de papel e telas com as arestas à mostra. Chapas de cobre e metal apresentam-se já corroídas, amassadas, trabalhadas – excedem a moldura. Ali há um punho em riste em ação.  

 

Nossas outras conversas sempre foram mais povoadas pela menção a fenômenos naturais, leis da física, arquiteturas vegetais ou formas de aglomeração, coadunação e justaposição presentes em diferentes vegetais, bactérias, colônias, fungos e, sobretudo, insetos. Pergunto-me o porquê de me ver pensando agora teu trabalho a partir de referentes da história da arte ocidental e leituras críticas de teu trabalho – por muito tempo imaginava apenas os insetos, em meio ao mato, vizinhos do teu ateliê. Às vésperas de finalizar este parágrafo, retomo um alfarrábio de física e busco quais seriam as definições sintéticas para as contribuições de Albert Einstein, a quem tu dedicaste um dos desenhos que se encontram no terceiro andar. Pela força de emprego dos materiais, eles me fazem pensar em alguns dos desenhos de Joseph Beuys, artista que incluiu a alquimia, a simbologia da tradição cristã, a literatura, a antropologia e a ciência como recursos intelectuais para seus trabalhos. No texto científico, é possível ler que, segundo a teoria da relatividade, no espaço-tempo, matéria e energia se destacam, "gerando som e fúria: a gravidade". A poesia já está. 

 

Ulisses Carrilho